Quando Raquel puxou o canto para Iansã à capela, alguma coisa aconteceu nas fundações do edifício onde se realizava a roda das mulheres no samba. Talvez alguma fibra que garantia o equilíbrio das estações de cimento tenha se rompido com as ondas de seu entoar, ou pode ser que deus tenha ficado bravo ao perceber que os trovões, na verdade, vêm da terra, de baixo pra cima, e inundam o Olimpo. Tudo tremeu pela voz de Raquel. Raquel Tobias.
Quando Raquel puxou o canto para Iansã à capela, a ala da percussão se desconcentrou e a harmonia também deu seus escorregões. Nas notas finais do chamamento, na hora em que todo mundo sobe junto para a música evoluir, ninguém conseguiu subir. Estávamos todas as musicistas ali estupefatas com a grandeza da cantora, sua altivez, o negrume de sua pele tão densa quanto a noite, a alta madrugada, brilhante de estrelas.
Durante um segundo ficamos todas em suspensão. O silêncio veloz tomou conta do ambiente e logo em seguida voltamos à realidade, como se o desejo de honrar o canto de Raquel nos tivesse conduzido de volta à Terra. Corremos atrás do vácuo e pudemos reaver o tempo da batucada.
No bar, depois da grande roda, foi só o que se discutiu. Algumas de nós não aceitavam de forma alguma que mais de quarenta mulheres tocando tenham errado a entrada todas ao mesmo tempo justo na hora em que Raquel Tobias foi dar sua breve canja, e suficientemente dantesca, no evento. Outras achavam que não poderia ser diferente, quando Raquel canta à capela até mesmo o samba se dobra, a cadência pranteia comovida.
Toco clarinete, não opino muito sobre ritmo, minha história no samba é a melodia, além disso eu não tinha que subir junto. Nessa roda, por exemplo, eu tive o privilégio de poder arpejar no contracanto da Raquel, em notas agudinhas, para dar uma espécie de suporte contrastivo à voz dela. Não que isso seja necessário, é quase enfeite.
Meu tempo é lá no meio da canção, então posso ficar de bubuia ouvindo sua interpretação sem tanto me preocupar com o andamento da entrada.
Ao me dar conta disso, tomei um gole de cerveja toda me rindo de alegria, sem demonstrar às companheiras para não parecer que estava tripudiando da angústia de ordem rítmica que se erigiu no Ocidente depois de Raquel Tobias.
Entendo nossa angústia conjunta. A nós, jovens sambistas, cabe o exercício de apuração da escuta e controle das emoções para honrar nossas matriarcas inclusive do ponto de vista técnico. Mas valeu. O microssegundo de nosso atraso, para mim, foi o microssegundo em que fomos tocadas pelos dedos da poesia.
No final da roda eu me cheguei em Raquel e disse que sua voz era um dom divino. Ela sorriu, na pura simpatia de todas as horas, e apenas falou: deve ser mesmo, não é?
A ressonância de sua fala me gerou novamente aquela sensação. Aquela sensação que todos nós temos ao ouvi-la. A sensação de que caímos noite adentro de um jeito e ao raiar do dia, por causa d´Ela, despertamos igualmente inteiros mas inteiramente outros.
Vanessa Garcia
Tudo tremeu pela voz de Raquel Tobias