Em 2 de janeiro de 1896, nascia, dentro da cidade de Białystok, hoje parte da Polônia, Denis Arkadievitch Kaufman, que mais tarde viria a ser conhecido como Dziga Vertov, um dos principais cineastas e documentaristas da União Soviética. Seu nome artístico é composto, respectivamente, pela palavra ucraniana que significa “roda que gira sem cessar” e pelo verbo russo vertet cujo significado é “girar” ou “rodar”.
Vertov, que advogava pelo registro de cenas não-ficcionais, foi uma das figuras centrais do início do cinema soviético, ao lado de Sergei Eisenstein, com quem debateu sobre estética, técnica e a função política do cinema em diversos momentos ao longo da vida.
O cinema do soviético divergia das obras de Eisenstein ao rejeitar simbolismos e montagens que ele julgava como artificiais. O cineasta buscava retratar a realidade da forma mais crua possível, sem encenações, atores ou edições que pudessem alterar o sentido original das cenas. E se empenhava, portanto, pelo direito de fazer filmes não atuados e com uma missão documental.
Neste sentido, é preciso lembrar do conceito de Kino-Glaz (cine-olho, em tradução livre), inventado por Dziga Vertov, que contribuiu para a linguagem cinematográfica, já que se tornou nome tanto de um de seus longas quanto de um movimento fundado por ele.
Para o diretor, a câmera seria um instrumento parecido com o olho humano, que deveria ser utilizado para enxergar os acontecimentos da vida, mas, com uma vantagem: a de ser dinamicamente geométrica, podendo criar representações da realidade por meio de perspectivas que os olhos humanos jamais conseguiriam atingir, se desfazendo da imobilidade humana e criando uma visão objetiva do real.
O longa que recebeu o nome de Kino-Glaz, por sua vez, foi lançado em 1924. E, por meio de seu formato documental, mostra as atividades de um grupo de jovens pioneiros em uma vila soviética que passavam seu tempo colando cartazes e distribuindo folhetos para que as pessoas comprassem produtos das cooperativas.
Dentro dos longas do cineasta, muitas vezes captados em ruas de grandes cidades soviéticas, enxerga-se a vida urbana dentro do país durante o final da década de 1920 e o início de 1930, altamente impactada pela modernização e pela industrialização, que eram relativamente recentes.
O personagem principal da maioria destes filmes é, portanto, o cenário urbano. É o caso de um de seus longas mais famosos, Um Homem com uma Câmera, de 1929, que, sem enredo, é praticamente uma coletânea de imagens captadas em Moscou, Odessa e Kiev, que mostra o cotidiano de quem vivia nestas cidades.
No caso específico de Um Homem com uma Câmera, também pode-se interpretar o próprio instrumento cinematográfico como um personagem, que viaja com o homem (Mikhail Kaufman, irmão de Vertov) para diversas locações. Na obra, o telespectador presencia pessoas trabalhando, praticando esportes, se casando, se divorciando, nascendo e indo a um funeral, por exemplo.
Com registros como estes e um esforço quase jornalístico, Vertov foi capaz de eternizar imagens comuns que se tornariam amostras históricas e parte do imagético soviético.
Domínio público
Cena do filme ‘Um Homem com uma Câmera’, de Dziga Vertov, de 1929
Sinfonias urbanas, as cidades e Kino-Pravda
Algo similar havia sido feito na Alemanha por Walter Ruttmann, diretor de Berlim, Sinfonia da Metrópole, de 1927, e, em São Paulo, por Adalberto Kemeny, que dirigiu São Paulo, Sinfonia da Metrópole, em 1929.
Estes dois filmes e Um Homem com uma Câmera pertencem ao gênero semi-documental chamado “sinfonia urbana”, trazendo cenas do cotidiano urbano de metrópoles sem que haja narrativas para acompanhar as imagens.
Vertov, no entanto, apontou que a sua experimentação com as formas de registro do cotidiano soviético e busca pela documentação do urbano se fez presente em seu trabalho desde o início da década de 1920, quando trabalhava na série Kino-Pravda (Cine-Verdade, em tradução livre), em que filmava fragmentos, por vezes com câmeras escondidas, de rotinas em bares, escolas, mercados e outros espaços de uso comum.
No total, 23 filmes curtos foram produzidos para a série. Atualmente, 22 deles estão disponíveis em versão restaurada pelo museu Österreichisches Filmmuseum, de Vienna.
Ao longo de sua carreira, o diretor se aproximou do jornalismo, tendo usado o neologismo “cine-correspondente” para nomear os colaboradores externos do seu coletivo de cineastas – os kinoks.
Eles desempenhariam, para o diretor, um papel similar ao de um correspondente jornalístico, por registrarem, com as câmeras, acontecimentos reais que mais tarde poderiam ser utilizados em seus filmes.
Morte e legado
Em fevereiro de 1954, em Moscou, o cineasta morre deixando um legado que foi detalhado no texto A revolução permanente de Dziga Vertov, de François Albera, professor da Universidade de Lausanne, na Suiça.
Albera recorda que, anos após a morte do cineasta, um arquivo com cópias de textos, fotografias e diversos materiais foi montado pelo historiador Viktor Listov, ao lado de Elizeta Svilova, viúva de Vertov. Além de apontar que reflexões sobre seus filmes já foram realizadas por filósofos como Jacques Rancière, Gilles Deleuze e Jean-Pierre Cometti.
Além disso, o autor lembra que os princípios e conceitos encabeçados por Vertov influenciaram movimentos inteiros, como o Cinéma Vérité, de Jean Rouch e Edgar Morin, e o Cinema Direto norte-americano.
Seu cinema chegou a influenciar Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, que criaram o chamado Groupe Dziga Vertov. Utilizando o diretor como exemplo de cinema de intervenção e revolucionário, produziram filmes como Pravda, sobre a Primavera de Praga, de 1969, e Letter to Jane (Carta para Jane, em tradução livre), documentário sobre uma fotografia de Jane Fonda no Vietnã narrado por ela mesma, de 1972, que marcou o fim da colaboração entre Godard e Gorin.
No contexto brasileiro, pouco se produziu sobre o cinema de Vertov e seu pensamento sobre a sétima arte. Um cenário que dá sinais de mudanças, já que a publicação Cine-Olho: manifestos, projetos e outros escritos, da Editora 34, traduzido e organizado por Luis Felipe Labaki, traz manifestos, roteiros, artigos, projetos, cartas e poemas do diretor.