Apesar do histórico conflituoso da gestão do presidente Jair Bolsonaro com a China, maior parceiro comercial do Brasil, e de divergências com a Índia, Fausto Godoy, que atuou como diplomata por 40 anos, com passagens por esses dois países, não acredita que esses atritos pesem nas atuais dificuldades enfrentadas pelo Brasil quanto à obtenção de doses e insumos para a produção de vacinas contra a covid-19. Embora certamente não ajudem.
“A China está desgostosa, ofendida. Mas ela credita às pessoas que estão no poder o descarrilamento do trem, e ela aposta nas relações de longo prazo”, afirma o diplomata, que se aposentou como embaixador em 2015. Hoje, coordena o núcleo de estudos asiáticos da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e é membro da Diretoria da Câmara de Comércio Brasil-Índia.
Godoy destaca as prioridades tanto da Índia quanto da China de vacinar suas populações de mais de 1 bilhão de pessoas e de dar preferência a exportações para países vizinhos como fatores determinantes para a importação tanto de doses da Índia quanto de insumos da China. Mas faz uma ressalva quanto a Pequim.
“Evidentemente, se a gente tivesse um relacionamento mais simpático, mais fluido, certamente a posição da China seria mais proativa. Tem uma série de fatores que criam essa situação, a começar a esses ataquezinhos (à China de autoridades brasileiras), o que é absolutamente infantil”, comenta.
O Brasil se vê às voltas em tratativas para obter insumos da China para produzir vacinas no Instituto Butantan e na Fiocruz. Nesta quinta-feira (21/01), o presidente do Butantan, Dimas Covas, afirmou que a matéria-prima já está quase esgotada no Brasil. Em coletiva de imprensa, Covas pediu que o presidente e o ministro das Relações Exteriores ajudassem a “aplainar a relação com a China”.
No histórico de relações diplomáticas entre o Brasil e o país asiático há uma série de atritos desde 2019. Em março de 2020, por exemplo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), declarou que a China era a culpada pela pandemia. No mês seguinte, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, insinuou que o país asiático teria ganhos com a disseminação do coronavírus Sars-Cov-2 e fez piada com o sotaque chinês.
À época, o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, manifestou repúdio e exigiu um pedido de desculpas por parte do governo brasileiro.
Em outubro, Jair Bolsonaro afirmou que não compraria a vacina chinesa – em claro embate com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB) – e que a mesma não seria segura. A seguir, seu filho Eduardo acusou a China de fazer espionagem por meio de sua rede 5G. A embaixada reagiu novamente com repúdio.
Além de matéria-prima, o Brasil ainda aguarda a chegada de 2 milhões de doses de imunizante da Oxford/AstraZeneza da Índia, que finalmente tiveram a exportação autorizada nesta quinta, após o Ministério da Saúde ter anunciado que chegariam no último domingo. No final de semana, autoridades indianas afirmaram que o governo brasileiro estava se precipitando, e que ainda não exportaria vacinas. Na terça, a índia começou a exportar, mas apenas para vizinhos.
A liberação veio após o Brasil recuar, nesta semana, de um posicionamento contrário para neutro, à proposta indiana e sul-africana para quebra de patentes de produtos relacionados ao combate do Sars-Cov-2 na Organização Mundial do Comércio (OMC). Godoy, no entanto, não vê uma relação direta entre a liberação indiana com esse recuo.
Em entrevista à DW Brasil, ele fala também da amplitude das relações com os parceiros comerciais e do que considera falta de maturidade política por parte da gestão Bolsonaro.
AFP/S. Lima
Os presidentes Xi Jinping e Jair Bolsonaro em encontro do Brics em Brasília, em novembro de 2019
DW Brasil: Em que medida a política conduzida pela gestão do presidente Jair Bolsonaro em relação à China, incluindo postagens em redes sociais de aliados políticos, afetam as relações diplomáticas entre os dois países?
Fausto Godoy: Nossa percepção sobre a China é muito desfocada, e isso se reflete nas pessoas que ocupam o poder. É um país que está se tornando a maior potência do planeta e que tem 4 mil anos de história. Onde os brasileiros entram? Com ataques, com esses achincalhamentos. Revelam falta de maturidade política e de sólida envergadura política essas declarações e a maneira tosca de ver um país como a China.
Você tem nas autoridades federais e no governo pessoas que tiveram atitudes muito radicais. Você tem um deputado, presidente da Comissão de Relações Exteriores (Eduardo Bolsonaro), que criou uma briga absolutamente inútil. Eu sei que o embaixador da China, em qualquer lugar do mundo, não teria palavras ásperas se não houvesse autorização explícita do governo chinês. A manifestação dele foi excessivamente veemente para o perfil diplomático da China, então é claro que China ficou ofendida. Mas até onde vai essa ofensa?
A China sabe pesar as coisas, ela mandou as cartas (de repúdio), e está repensando momentaneamente as relações com o governo brasileiro, mas não com o Brasil. Isso quer dizer que ela vai romper? Não, porque o Brasil é muito importante para ela, porque tem a questão do agronegócio, das matérias-primas. A China tem uma parceria estratégica com o Brasil desde 1993.
Em que medida a atual dificuldade de obtenção de insumos para vacinas vindos da China é resultado da política externa brasileira conduzida desde 2019?
A China está desgostosa, ofendida. Mas ela credita às pessoas que estão no poder o descarrilamento do trem, e ela aposta nas relações de longo prazo. Ela está prejudicando o Brasil com a [questão dos insumos para a] vacina? Não. Não se esqueça de que a China também tem 1,3 bilhão de pessoas para vacinar. Outra coisa: a China tem compromissos com vários outros países, com o continente africano, importante para ela. Ela vai atender o Brasil? Vai, mas no ritmo dela.
Agora, evidentemente, se a gente tivesse um relacionamento mais simpático, mais fluido, certamente a posição dela seria mais proativa, e não simplesmente uma posição profissional. Tem uma série de fatores que criam essa situação, a começar por esses ataquezinhos, o que é absolutamente infantil.
No caso da negociação com a Índia, a afirmativa de que o país exportaria ao país veio apenas na quinta-feira, após o Brasil recuar de sua posição na OMC na questão das patentes. É possível correlacionar esses dois fatos?
A prioridade da Índia é a Índia, e ela tem 1,3 bilhão de habitantes para vacinar. Ela é a maior produtora de vacinas do mundo, mas você imagina o que é vacinar com urgência toda essa população. Outra coisa é a vizinhança e a presença da Índia na região. Qual é a prioridade da Índia no mundo? A região próxima. E ela priorizou Ilhas Seychelles, Bangladesh, Myanmar, etc.
Nós é que fomos afoitos em, antes de fechar isso de maneira consolidada, sair alardeando aos quatro ventos. Isso é imaturidade das autoridades, principalmente um assunto de tamanha importância. Resultado: isso criou uma pressão sobre o primeiro-ministro, Narendra Modi, que teve que aceitar essa situação. A Índia tem muito empenho conosco porque o Brasil é um mercado crescentemente importante para eles. Mas antes de atender a importância do Brasil, ela tem que atender suas necessidades internas. Nós é que fomos afoitos dizendo que estava líquido e certo.
Então não há relação direta com a postura do Brasil na OMC?
Que país pode tomar uma atitude baseada nisso ou naquilo? Talvez tenha influenciado em algo, mas isso define uma atitude de política externa? Uma coisa é pensar, eles devem ter ficado de uma certa maneira pensando sobre, mas eu acompanho os jornais indianos e não tenho lido nada disso, não vi nada disso sobre a OMC e o Brasil. Eles têm as prioridades deles.
De maneira geral, pode-se afirmar que, nesses casos específicos, a condução da política externa brasileira não foi definidora para gerar as dificuldades, mas também não ajudou?
Sim, nesses casos específicos é isso. As relações internacionais não são preto ou branco, são vários tons de cinza. Não é nem sim nem não, depende. O que move os países não é amizade, é interesse. Se você tem interesses que coincidem, então eles são amigos.