Foi em Lisboa, durante a 13ª Cimeira Luso-brasileira, que o atual presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), discursou depois de firmar 13 acordos bilaterais com o governo português.
Diante de uma comitiva com mais de 300 jornalistas e profissionais de comunicação credenciados, o chefe de Estado brasileiro disse ter sido recebido com muito carinho pelo primeiro-ministro, António Costa, e pelo presidente da República portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, salientando ainda que estava se sentindo em casa desde que pisou em território lusitano.
Dentre os acordos assinados, destacam-se a validação de diplomas do ensino fundamental e médio, que vão facilitar o acesso de estudantes brasileiros ao nível superior em Portugal, além da validação mútua das carteiras de habilitação, permitindo assim que tanto brasileiros quanto portugueses possam conduzir sem ter que realizar exames locais.
Outros importantes acordos de cooperação abrangem as áreas de saúde, energia, tecnologia espacial, proteção de testemunhas de crimes, boas práticas e direitos de pessoas com deficiência, pesquisas biométricas, parcerias audiovisuais, turismo e comunicação.
Notava-se, na sala de conferência, uma grande diversidade explicitada na figura dos ministros que integravam a comitiva do governo brasileiro. Após quatro anos sem que tais presenças tivessem o devido espaço e reconhecimento, foi na terra dos colonizadores que o Brasil voltou a ser enxergado por sua vasta pluralidade étnica e cultural.
Na delegação estavam presentes as ministras Margareth Menezes (Cultura), Anielle Franco (Igualdade Racial), Luciana Santos (Ciência, Tecnologia e Inovação), Nísia Trindade (Saúde) e os ministros Silvio Almeida (Direitos Humanos e Cidadania), Camilo Santana (Educação) e Márcio Macêdo (Secretaria-Geral).
“Dá para imaginar a irresponsabilidade de quem governou o Brasil nos últimos anos. Na nossa primeira conferência em seis anos, assinamos 13 acordos. Imagina se nós pudéssemos assinar uma média de 13 acordos a cada cimeira? Significa que deixamos de assinar com Portugal, no mínimo, 66 acordos que já poderiam fazer com que a nossa relação fosse mais extraordinária.”, explicou Lula com um certo tom de desabafo.
Depois de anunciar a abertura de um escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) em Lisboa e voltar a defender o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, o presidente surpreendeu a todos quando demonstrou gratidão a Portugal por ter ido “descobrir” o Brasil e “miscigenar” o nosso povo. Isso em pleno dia 22 de abril, data que marca a invasão portuguesa à América do Sul.
“Quando eu chego na frente daquele monumento em que (Pedro Álvares) Cabral saiu daqui, fico emocionado… Porque imagino que há 520 anos atrás alguém pegava um barquinho, que não era grande coisa, para encontrar um novo mundo, encontrar o Brasil. E ajudaram a fazer do Brasil o que ele é hoje, esse povo extraordinário, resultado da miscigenação do povo europeu – começando com os portugueses – com os nossos índios e com os nossos negros, que foram trazidos durante 350 anos para o nosso país.”, declarou.
Apesar do comentário que causou certo desconforto, o presidente brasileiro também reiterou a sua gratidão ao continente africano reforçando que a dívida do Brasil com a África não se paga com dinheiro. “A gente tem que pagar em solidariedade e fraternidade, em transferência de conhecimento, em transferência de eficiência e tecnologia. Quero voltar a visitar a África para poder renegociar. E tudo isso passa por uma conversa com Portugal, porque Portugal é o grande aliado nessa relação. Então quero dizer que saio daqui feliz!”
Lula também recordou que a extrema direita está crescendo novamente em ambos os países. Disse ainda haver um renascimento do extremismo no mundo e afirmou que Brasil e Portugal são duas democracias que, neste momento, estão “ameaçadas pela violência e pelo discurso de ódio.”
“Política é uma coisa um pouco química. A relação humana é uma relação química. Se as pessoas não se conhecem e não conversam olho no olho, não se abraçam, não se tocam na mão, a política perde muito valor. A política feita por fake news não é política, é monstruosidade, porque temos a prevalência da mentira e não da verdade.”, concluiu.
Twitter/Lula – Foto de Ricardo Stuckert
Presidente do Brasil, Lula, e seu homólogo português, Marcelo Rebelo de Sousa
Já o primeiro-ministro português, António Costa, reconheceu a importância da retomada das relações com o “país-irmão” e disse que a entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque marcará uma “virada de página” nesses tempos difíceis que dificultaram e distanciaram bastante a relação entre as duas nações.
“Com a assinatura dos acordos temos muito o que trabalhar em conjunto. E tem a ver com as pessoas, desde logo com a equivalência de notas dos ensinos que levam ao superior.”, ressaltando ainda a importância do combate ao racismo e à discriminação em Portugal.
Imigrantes brasileiros em luta
Na manhã deste domingo (23/04), a ministra Anielle Franco e os ministros Silvio Almeida e Márcio Macêdo participaram de um encontro com diversos movimentos sociais e instituições ligadas às causas da comunidade imigrante em Portugal e na Europa. O presidente da Embratur, Marcelo Freixo, também compôs a mesa.
A reunião contou com a participação de entidades importantes na luta pelos direitos dos trabalhadores imigrantes: Coletivo Revolu, Movimento T (de travestis migrantes em Portugal), Núcleo de Estudantes Luso-brasileiros e porta-vozes das comunidades brasileiras na Espanha, Irlanda e França.
O Movimento Brasileiros Emigrados reivindicou ao governo a criação de um conselho de direitos de brasileiros emigrados, e a Casa do Brasil de Lisboa entregou uma carta aos ministros com sugestões e propostas para fortalecer a comunidade brasileira em Portugal e na Europa.
Além de relembrar de conquistas importantes celebradas durante os 31 anos da associação (como o “Acordo Lula” de 2023, que regularizou mais de 20 mil brasileiros e brasileiras e motivou esse mesmo processo em outros países), o documento também corrobora que Lisboa é o maior colégio eleitoral no exterior e que o trabalho de coletivos e organizações foram fundamentais para a vitória do presidente Lula nas eleições de 2022.
Combate ao fascismo
A necessidade de se criar soluções práticas e efetivas contra o racismo e a xenofobia também passam pelo combate às forças fascistas que estão em ascensão em diversos países do mundo. No caso de Portugal, em particular, nota-se um impulsionamento desse fenômeno com o crescimento de igrejas evangélicas no país associado ao discurso racista e xenófobo, cada vez mais “institucionalizado” por políticos e representantes da extrema-direita no país.
Anielle Franco assegurou o compromisso e a responsabilidade do governo com o tema ao dividir com os presentes sobre as tratativas com a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares de Portugal, Ana Catarina Mendes, durante as atividades da 13ª Cimeira Luso-brasileira realizada neste sábado (22/04).
Segundo Franco, uma das propostas foi o termo de cooperação que passa pelo Observatório do Racismo e Xenofobia de Portugal com alguma universidade do Brasil para que estudos e pesquisas sejam compartilhados, além do acordo de cooperação com as boas práticas de combate ao racismo e à xenofobia. “Mesmo entendendo as dificuldades do lugar em que estamos, do conservadorismo, da repúdia que houve e do argumento de que não há racismo aqui, nós vamos continuar falando e não vamos desistir dessa resolução”, frisou.
Anielle também anunciou que participará nesta segunda-feira (24), ao lado de Janja da Silva, de um encontro com mulheres no Consulado do Brasil para falar a respeito dos problemas que têm acontecido com imigrantes em Portugal. “As políticas de igualdade social não cabem somente em uma Secretaria. Eu disse ao presidente Lula que é a primeira vez que a gente consegue pautar racismo e xenofobia em Portugal, e isso é um feito histórico”, comentou.
Já o ministro Silvio Almeida ressaltou a missão de reconstruir as formas de participação social na elaboração e aplicação de políticas públicas à frente da pasta de Direitos Humanos e Cidadania, lembrando da indicação da antropóloga Letícia Cesarino para comandar a criação do Plano Nacional de Cidadania Digital.
“Nós precisamos fazer a disputa ideológica e entender o funcionamento das formas de disseminação do discurso de ódio e do fascismo, que é fluído e consegue se espalhar em várias camadas da sociedade. Por isso, vamos criar protocolos para identificar pessoas que estão radicalizadas pela extrema-direita”, explicou.
Após anos de destruição, Silvio salientou que o trabalho desenvolvido pelo ministério deve ser baseado em uma política de Estado, e não apenas de um governo, fortalecendo e criando soluções de reparação e proteção. Uma dessas iniciativas é o “Projeto Mandela”, que visa reorientar a condição do sistema penitenciário brasileiro em um trabalho conjunto com governadores em todo o Brasil, além da aposta na criação de concursos para servidores de carreira especializados em Direitos Humanos.
Ao citar Angela Davis, a ministra da Igualdade Racial disse ainda que a raiva é um sentimento legítimo capaz de mover uma sociedade inteira, principalmente quando ela vem de uma mulher preta. Ressaltou a emoção de chegar em Portugal e se deparar com tantas homenagens à sua irmã, Marielle Franco, brutalmente assassinada em 2018. “A política deve ser feita com afeto, olho no olho, sem que nunca a gente se esqueça de onde veio”, finalizou.