“O ano se despede de nós dando-nos a esperança de encontrar os que ainda faltam”. Assim comemorou Estela de Carlotto, presidente da organização Abuelas de Plaza de Mayo, na noite desta quinta-feira ao contar que foi encontrado o neto de número 131. O anúncio foi feito numa coletiva de imprensa realizada na Casa por la Identidad das Abuelas, um dos prédios do Espaço Memória e Direitos Humanos onde funcionou a Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), em Buenos Aires.
As Abuelas é um grupo de mulheres que busca desde 1977 os netos sequestrados durante a ditadura militar argentina. A última restituição havia acontecido há mais de três anos, em junho de 2019. Segundo estimativa das Abuelas, cerca de 500 crianças foram sequestradas durante a ditadura quando pequenas ou logo após o nascimento, entre 1976 e 1983.
O neto 131 é filho de Lucía Ángela Nadín e Aldo Hugo Quevedo. Nasceu quando a mãe estava sequestrada pelos militares. “São 131 casos resolvidos ao longo destes 45 anos de buscas casos resolvidos e seguimos trabalhando dia a dia com esperança e convicção de que vamos encontrar nossos netas e netos, que podem estar em qualquer lugar do mundo”, disse a responsável pela Abuelas.
O nome atual do neto restituído não foi divulgado. Trata-se de um procedimento praxe após as restituições, uma vez que as Abuelas respeitam o tempo que os netos e netas levam para absorver a informação e sua nova identidade. Também precisam escolher o nível de exposição que desejam ter e até mesmo se querem se envolver com a luta.
Estela de Carlotto detalhou que dados da investigação do caso levam a crer que o neto 131 pode ter nascido na própria ESMA. Lá funcionou um dos centros de detenção e tortura clandestinos operado pelos militares.
Hoje com 44 anos de idade, ele atendeu a um pedido da Justiça, e ontem (quarta-feira) a conclusão da científica da análise genética confirmou ser filho biológico de Lucía e Aldo.
Gravidez
A informação de que Lucía estava grávida enquanto esteve detida foi descoberta em junho de 2004 a partir de uma investigação feita pela Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (Conadi). O organismo é responsável por garantir o cumprimento da Convenção sobre os Direitos das Crianças.
Em 2005, parentes de Lucía e Aldo deixaram amostras de sangue no Banco Nacional de Dados Genéticos, que analisa e confirma vínculos biológicos entre familiares de desaparecidos da ditadura e seus possíveis filhos.
Segundo o comunicado lido por Estela de Carlotto, uma investigação conjunta entre as Abuelas e a Conadi identificou em 2015 um homem sobre o qual se suspeitava ser filho de desaparecidos. Quatro anos depois, a Comissão apresentou a denúncia a um tribunal em Buenos Aires que, em setembro de 2022, solicitou que esse homem deixasse uma amostra de sangue no banco de dados genéticos. Ele atendeu ao pedido da Justiça, possibilitando a identificação do neto 131.
Claudia Carlotto, diretora da Conadi e filha de Estela, relatou que o órgão está acompanhando o novo neto identificado. Ela disse que o homem recebeu a notícia com choque e emoção. “Ele é igual ao seu pai”, afirmou Claudia para a imprensa.
“É um trabalho constante, silencioso, mas realizado com muito amor. Mas ainda faltam muitos (a serem descobertos) e o tempo não para. Nestes (últimos) anos tivemos que nos despedir de nossos queridos colegas (integrantes das Abuelas que faleceram) e muitos não puderam alcançar o merecido abraço”, afirmou a presidente da organização.
Os pais biológicos
Lucía, chamada de Chiquita, nasceu em 13 de dezembro de 1947 na cidade de Mendoza e Aldo, conhecido como “Dipy”, em 26 de novembro de 1941 na cidade de San Carlos, província de Mendoza. Ambos foram sequestrados em Buenos Aires em outubro de 1977. Militavam no Partido Revolucionario de los Trabajadores – Ejército Revolucionario del Pueblo (PRT-ERP). A jovem estava grávida de três meses.
Depoimentos de sobreviventes mostraram que Lucía fora retirada do Centro Clandestino de Detenção El Banco entre março e abril de 1978 para dar à luz. Hoje o prédio abriga a XI Brigada Feminina da Polícia da Província de Buenos Aires.
O neto 131, natural de Buenos Aires, é formado em Filosofia e Letras. Mesmo curso que seus pais biológicos cursavam antes de serem desaparecidos pelos militares.
A próxima etapa desse processo é promover o encontro dele com a família de seus pais biológicos, além de promover o conhecimento de toda a história de seus pais.
O neto 130
A última restituição feita pelas Abuelas ocorreu há três anos e meio. Em junho de 2019 foi identificado Javier Matías Darroux Mijalchuk, que fora sequestrado quando tinha cinco meses de idade, em dezembro de 1977.
De acordo com informações das Abuelas, Mijalchuk foi encontrado numa calçada no cruzamento das ruas Ramallo e Grecia no dia 27 de dezembro de 1977. Este ponto fica a três quarteirões da ESMA.
Na manhã daquele mesmo dia, sua mãe biológica, Elena Mijalchuk, fora vista com o bebê naquela região. Depois nunca mais foi localizada. O pai, Juan Manuel Darroux, trabalhava no setor administrativo da Universidade de Morón, em Bueno Aires. Ele desapareceu também em dezembro de 1977.
Naquela época, a esposa, Elena, que estava grávida de dois meses, recebeu uma carta assinada por Manuel. Estava indicado um local e uma data para eles se encontrarem. Ela foi ao ponto no dia e horário descritos na carta levando no colo Javier Matías, que tinha cinco meses.
O bebê foi dado pelos militares para adoção legalmente, a uma família em Buenos Aires, que nunca escondeu que ele era adotado. Em 1999, o rapaz mudou-se para Córdoba, onde iniciou as buscas pelos pais biológicos.
Roberto, o tio biológico, nunca desistiu de procurar o sobrinho desaparecido. Em junho de 2019, quando foi localizado, Javier Matías emocionou a todos durante a coletiva de imprensa para anunciar o neto restituído nº 130, ao agradecer o tio Roberto. “Obrigado, tio, por não ter parado de nos procurar”, disse.
Twitter Abuelas
Evento de anúncio da recuperação do Neto nº 131, na sede das Abuelas de Plaza de Mayo
Comemorações
“É uma alegria infinita fechar o ano dessa forma. Como dizem, estamos entusiasmados com o fato de que cada vez mais homens e mulheres podem recuperar sua identidade como os 131 que já o fizeram. Obrigado para sempre, vovós”, escreveu o presidente da Argentina, Alberto Fernandez, em suas redes sociais.
A vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, também divulgou mensagem em sua rede social comemorando a identificação do neto 131. “A poucas horas do Natal, o direito à Memória e à Identidade renasce mais uma vez: as Abuelas voltaram a encontrar um novo neto, o número 131. Grande alegria e um grande abraço a essas mulheres, exemplo de luta e humanidade”, disse.
O secretário de Direitos Humanos do governo argentino, Horacio Pietragalla, fez questão de destacar que “as avós não poderiam realizar esta tarefa sem a ajuda da sociedade”. Ele pediu que as campanhas de busca aos netos sequestrados pelos militares e apropriados tenham continuidade e ampla divulgação, além do apoio de todos. Mencionou ainda o apoio que os jogadores da seleção argentina de futebol deram às Abuelas. “Esta é a maior conquista que as queridas Abuelas de Plaza de Mayo nos dão a cada neto que recupera sua identidade”, disse Pietragalla.
Ainda no governo argentino, o ministro do Interior Eduardo Wado De Pedro e a ministra do Desenvolvimento Social Victoria Tolosa Paz, também comemoraram a restituição do neto 131. Os dois, filhos de desaparecidos políticos durante a ditadura, compartilharam mensagens em suas redes sociais.
Enrique De Pedro, pai de Eduardo, foi assassinado pelo Exército em abril de 1977 quando o filho tinha poucos meses de idade. Em 11 de outubro de 1978, sua mãe, Lucila Adela Révora, então com 25 anos de idade, foi detida dentro de casa e conseguiu proteger seu pequeno filho colocando-o dentro da banheira e protegendo-o com seu corpo. Mesmo assim ele foi levado pelos militares. De Pedro ficou pelo menos três meses nas mãos dos agentes da ditadura argentina antes de ser recuperado pela família. Lucila continua desaparecida até hoje.
Victoria Donda Pérez soube em outubro de 2004 que tinha nascido na ESMA. As Abuelas conseguiram identificá-la através de uma denúncia sobre o caso do registro de uma menina como se fosse filha biológica do um ex-militar da Marinha, Juan Azic. O caso foi parar na Justiça. Exame de DNA determinou que Victoria era filha de José María Laudeano Donda e de María Hilda Pérez. Os pais biológicos haviam sido sequestrados e desaparecidos pela ditadura em 1977.
“Mais uma vez confirmamos que os quase 300 homens e mulheres que vivem com a identidade falsificada estão entre nós, e estamos animados novamente com um 2023 com mais restituições”, destacaram hoje os integrantes das Abuelas.
Estela de Carlotto fez ainda um apelo à sociedade: “Convocamos a sociedade a se somar, porque qualquer informação suspeita é suficiente para nós. Não guardem a informação, não fiquem com a dúvida, rompam o silêncio. Nossos netos e netas nos esperam”.
No Brasil
A ditadura militar brasileira também sequestrou filhos de opositores políticos nas décadas de 1960 e 1970. Até agora estão comprovados 19 casos. Onze deles são relativos à Guerrilha do Araguaia, filhos de guerrilheiros e de camponeses. Os demais casos foram registrados no Rio de Janeiro, Paraná, Pernambuco e Mato Grosso.