Entre os meses de janeiro e abril de 2023, foram contabilizadas 42,2 mil entradas de imigrantes na União Europeia por meio da rota do Mediterrâneo Central, principalmente vindos da Líbia e Tunísia, segundo informações da Frontex, agência do bloco para controle de fronteiras. O número é quatro vezes maior comparado ao mesmo período do ano anterior e o mais alto registrado desde 2009, ano em que o órgão europeu começou a coletar materiais.
Os dados são confirmados, em entrevista a Opera Mundi, por Giorgia Linardi, porta-voz do Sea Watch na Itália, organização internacional para resgate de migrantes e refugiados no mar Mediterrâneo em direção à Europa.
Para Linardi, há uma crise migratória ocorrendo nessa rota, que pode ser entendida, de acordo com a italiana, a partir da quantidade de pessoas que estão se deslocando em um período de tempo pequeno.
Isso porque, ainda segundo Linardi, uma crise é definida, normalmente, por sua “excepcionalidade e sua magnitude em termos de diferentes fatores que afetam tanto as pessoas que se deslocam, quanto os países que recebem essas pessoas”.
Apesar da afirmação, a representante defende que, se existe uma crise migratória, “é como resultado da abordagem que a União Europeia tem usado até agora para lidar com o fenômeno”.
Apenas entre os anos de 2016 e 2017, conforme dados do Sea Watch, há registros parecidos com os de 2023. No caso de 2016, a União Europeia registrou 30 mil imigrantes, já em 2017, 37 mil. Nos anos seguintes, até 2022, os números ficaram abaixo de dez mil.
Os números fazem Linardi questionar se apenas o dado isolado de 43 mil entradas na União Europeia em 2023, contrariando os dados dos últimos anos, pode definir a mais nova crise migratória na região.
“A baixa de entradas na União Europeia depois de 2017 está relacionada a uma política específica, marcada por um entendimento bilateral entre a Itália e a Líbia, que basicamente implementa uma política mais ampla em nível europeu. Chamamos de ‘política de externalização’, porque a responsabilidade da União Europeia sobre a migração ao delegar a interceptação dos navios ou barcos. Não podemos chamar essa política de resgate, porque as pessoas são levadas de volta à Líbia, que é exatamente o país do qual elas estão tentando desesperadamente escapar”, explicou a representante.
Suas críticas caminham no entendimento que o acordo “não fornece nenhuma solução para o gerenciamento dos fluxos migratórios”, fazendo, na realidade, com que traficantes, responsáveis por rotas ilegais no Mediterrâneo, explorem a mesma pessoa diversas vezes.
“Toda vez que alguém é interceptado no mar e enviado para seu país de origem, provavelmente estará de volta em um barco sem condições de navegar e tentará novamente cruzar o Mediterrâneo, pagando novamente a um traficante à custa de extorsão, tortura, abuso, detenção arbitrária, escravidão ou exploração sexual”, disse.
Para a representante do Sea Watch, apenas o aumento de pessoas chegando à União Europeia nos primeiros meses de 2023 não é suficiente para definir a crise migratória no Mediterrâneo sem levar em consideração “os esforços que tentam tornar a Europa inacessível”.
Falando especificamente da região da Sicília, onde grande parte dos refugiados resgatados chega à procura de asilo na Itália, ela afirmou que se “absteria de chamar a situação que enfrentam de crise migratória”, pois não há qualquer tipo de “missão europeia de busca e resgate no mar”.
Políticas migratórias que tornam a Europa inacessível
Na análise de Linardi, as constantes medidas adotadas pela União Europeia não são políticas que gerenciam as migrações, pois, segundo a porta-voz do Sea Watch na Itália, “tentam colocar a migração embaixo do tapete, fingindo que não existe”.
“Já fazem cerca de 30 anos que estamos enfrentando o fluxo de pessoas através do mar Mediterrâneo Central. É um fenômeno que nos preocupa e que nos preocupará no futuro”, afirmou, explicando que o cenário seguirá caso o bloco continue a considerar o assunto migratório apenas como uma emergência, que só deve ser contornada.
De acordo com ela, a União Europeia regulamenta os assuntos migratórios por meio de ferramentas legislativas chamadas “decreto-lei”, usadas em situações emergenciais em busca de soluções imediatas.
Além do já mencionado acordo bilateral entre Itália e Líbia de 2017, Linardi afirmou a Opera Mundi que há uma política que impede a presença de atores da sociedade civil para realizar resgates no mar, que tentam preencher a lacuna deixada pelas instituições governamentais.
Já em terra, quando se trata de recepção e integração dos migrantes, “há uma falta de solidariedade em nível europeu”. Ela mencionou os Tratados Fundamentais da União Europeia (TFUE), consagrando o princípio da solidariedade especificamente nas questões de asilo, migração e controle de fronteiras. Porém, a Europa não é “particularmente solidária com os países que estão mais expostos”.
A representante do Sea Watch contou ainda que as organizações de resgate respondiam casos de socorro sinalizados pelas próprias autoridades, em particular, pelo Centro de Coordenação de Resgate de Roma, mas que essa modalidade “mudou drasticamente” em 2017, quando o acordo entre Itália e Líbia foi imposto, capacitando a Guarda Costeira libanesa a interceptar barcos no mar e retorná-los para seu território.
Linardi contou que, desde 2017, a Itália teve quatro governos e, segundo ela, cada um deles, de maneiras distintas, tentou impedir a presença de ONGs no mar.
Twitter/Giorgia Linardi
Desde janeiro de 2023, mais de 40 mil pessoas procuraram asilo na Europa
Segundo Linardi, após a queda do governo de Giuseppe Conte, que tinha o direitista Matteo Salvini como ministro do Interior, as investigações criminais contra as organizações foram retiradas porque não obtiveram resultados e eram de alto custo.
Na análise da representante, a estratégia anti-migratória utilizada após essas manobras são mais “silenciosas e sutis”, tornando mais “difícil de explicar à opinião pública do que investigações criminais”.
Agora, com Giorgia Meloni no poder italiano, com um governo de extrema direita, é esperado mais complicações no que tange às questões migratória no país.
No último novembro, seu governo vivenciou o primeiro entrave com as organizações de resgate. A administração italiana não designou portos seguros para que três navios humanitários – inclusive um da Sea Watch – com mais de 800 migrantes atracassem em sem território. Além disso, implementou o “decreto Piantedosi”, que leva o nome do atual ministro do Interior da Itália, Matteo Piantedosi, e chegou a atuar como chefe de gabinete de Salvini quanto este liderava a pasta.
“Por meio desse decreto-lei, as organizações são designadas para os portos de embarque imediatamente após um único resgate, em vez de esperar por dias como era anteriormente, mas de uma forma que impede a realização de mais operações em uma área em que provavelmente há mais de um barco que precisa ser socorrido. Mas também, são portos designados propositalmente muito distantes de onde o navio de resgate está”, explicou Linardi sobre o decreto Piantedosi, também informando que, caso haja mais de duas infrações desta norma, o navio pode ficar preso no porto por 20 dias, e em uma eventual terceira infração, o barco de resgate é confiscado.
Enfrentando a realidade de 43 mil imigrantes chegando em território italiano desde janeiro, Meloni tem chamado pela “responsabilidade europeia” diante do assunto das migrações. Na análise do Sea Watch, a premiê italiana está correta, mas também usa o discurso para não se responsabilizar pelas ondas migratórias.
Após anos de decretos anti-migratórios e tentativas de tornar a Europa inacessível, Linardi acredita que “os governos europeus não têm a menor ideia de como implementar políticas de migração de uma maneira diferente”.
A representante ainda apontou que a Itália, dentro de sua nova lei sobre migrantes, tem a intenção de reabrir centros de repatriação e que já foram condenados por não dar acesso a procedimentos de asilo e desrespeitar os direitos humanos dos imigrantes.
As ONGs de resgate e as acusações sobre máfia
Linardi conta que o procedimento para resgate de um barco começa nas missões de patrulhamento e busca no mar. No momento que um barco em perigo é avistado, embarcações menores verificam a situação, colocando todos os migrantes em segurança, distribuindo coletes salva-vidas e examinando a existência de emergências médicas. Em seguida, todos são transportados para o barco principal, dando prioridade a pessoas doentes, crianças e mulheres grávidas.
“Depois, solicitamos a designação de um porto de segurança para desembarcar essas pessoas, que não pode ser a Líbia, porque isso estaria violando a lei internacional, que proíbe o envio de pessoas de volta a um lugar onde sua vida possa estar em perigo. Por isso só aceitamos portos de segurança que estejam no lado europeu”, informou.
Além das buscas e patrulhamento diretamente no mar, Linardi contou que existe uma linha de telefone direta para as organizações, a qual pessoas em perigo no mar podem ligar em busca de ajuda. Mas informações também podem ser compartilhadas por aeronaves civis ou mesmo o monitoramento aéreo do Sea Watch.
Mencionando as acusações criminais de que esses órgãos de resgate facilitavam a migração ilegal, Linardi questionou os fundamentos dessas acusações, uma vez que “a primeira coisa que fazemos quando vemos alguém em perigo no mar é informar as autoridades e pedir ajuda”.
Para além dos processos criminais, muitas vezes as ONGs eram acusadas de estarem inseridas em organizações criminosas. “Esse é um dos mais graves no sistema criminal da Itália, porque ele é qualificado como crime da máfia. Aqui esse assunto é muito sensível porque fomos um país muito afetado pela máfia. Assim, é muito sério considerar representantes da sociedade civil que estão apenas se esforçando para salvar vidas no mar de serem organizações criminosas. Acho que é um grande insulto, e não é nada digno”, confessou Linardi.
Quais são as soluções?
A representante da organização de direitos humanos admite que criar alternativas de caminhos seguros e legais para migração não é fácil. Diante de ondas migratórias, é comum que uma das soluções propostas pelos governos europeus seja investir nos países de origem das pessoas migrantes.
Linardi identificou essa tentativa como “cooperação para impedir as partidas ou levar as pessoas de volta por meio da repatriação, mas nunca há um esforço na cooperação com países terceiros que se concentre na criação de vias legais das pessoas migrarem para a Europa”.
Desta forma, ela afirmou que o problema precisa ser “abordado de diferentes maneiras, em soluções de curto, médio e longo prazo, mas ao mesmo tempo”.
Já a cooperação com os países de origem dos migrantes deve acontecer com foco “na criação de rotas alternativas à migração irregular”, de forma que elas cheguem à Europa em segurança.
“Para nós, o mais urgente é garantir que mais pessoas não percam suas vidas no mar. Basicamente não podemos continuar tendo pessoas morrendo na frente de nossas praias. É preciso ter certeza de que a capacidade de busca e resgate é suficiente para reduzir a perda de vidas no mar”, explicou.