Uma multidão expressiva marchou neste domingo (24/03) na histórica Praça de Maio, em Buenos Aires, na Argentina, a 48 anos do último golpe militar no país (1976-1983). Como marco da luta pelos direitos humanos diante dos crimes de lesa humanidade praticados durante esse período, a cada 24 de março, a Argentina comemora o Dia da Memória, Verdade e Justiça em todo o território nacional.
Foi a primeira marcha durante a gestão de Javier Milei, atual presidente do país. Portanto, além do sempre presente lema do Nunca Mais e fotografias dos ainda desaparecidos durante a última ditadura argentina, a marcha foi abandeirada com mensagens contrarias a atual gestão.
Cartazes esboçavam a rejeição social provocada pelo abarcativo Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) do presidente, que afeta especialmente aos setores públicos e recorta aposentadoria, salários, medicamentos e importantes auxílios sociais, como é o caso do Potenciar Trabalho, um complemento de renda e equipamentos para trabalhadores informais de baixa renda. Milhares de beneficiários já foram cortados do programa social.
As ruas adjacentes à praça, lotadas, também eram palco de diversas manifestações com imagens relacionando Milei e sua vice, Victoria Villarruel, aos militares da ditadura. Diante das falas negacionistas de ambos desde a campanha eleitoral, a Argentina atravessa um momento até então inédito, desde a redemocratização, de validação da chamada “Teoria dos dois demônios“, que busca equiparar os crimes de lesa humanidade aos ataques que grupos guerrilheiros perpetuaram contra militares em resistência à ditadura.
Carola Vega, psicóloga e professora universitária, vai todos os anos à marcha, e identifica um significado particular na deste ano.
“Este ano tem mais peso porque há um retorno disso tudo que vivemos, em outras formas. Mas não deixa de ser um retorno e uma ameaça à liberdade coletiva – mais do que a individual, que tanto eles pregam“, afirma.
A manifestante faz referência, neste caso, ao lema do movimento autodenominado libertário, que caracteriza a extrema direita argentina liderada por Javier Milei, que preza por um Estado mínimo e um discurso de liberdade individual que tende a beneficiar os setores mais ricos da sociedade.
Em apenas três meses de governo, portanto, foram diversas medidas extremas que cumprem o que o presidente prometeu em campanha: zero gradualismo e diminuição drástica do Estado. Já foram extintos meios públicos de comunicação, que garantiam que as notícias chegassem a todo o país, e instituições importantes, como o Inadi, o Instituto Nacional contra a Descriminação, a Xenofobia e o Racismo.
Por isso, não à toa o jornalista argentino Rodolfo Walsh, e sua Carta à Junta Militar, que lhe custou a vida durante a ditadura, são relembrados com forca nestes dias. Primam agora, em novos moldes, o mesmo modelo econômico e o autoritarismo que buscavam os militares naqueles tempos.
“Temos que conservar a memória coletiva individual, digo isso como psicóloga“, completa Carola Vega. “Temos que lembrar uns aos outros e a nós mesmos do horror que vivemos. É uma homenagem aos 30 mil desaparecidos“, ressalta.
A estudante de literatura Catalina Pastori, como parte da universidade pública em Buenos Aires, ressalta a importância maior de estar presente na marcha pelo Dia da Memória neste ano.
“Esse ano {e muito mais importante que qualquer outro. A 48 anos desse horror, estamos de novo com a democracia sob ameaça. A universidade está extremamente afetada por essas políticas, a economia estudantil sob risco e nós mesmos, como estudantes“, afirma a universitária.
Ela sustentava um cartaz em referência a uma frase de Villarruel sobre Milei, em que, em uma entrevista nos últimos dias, referiu-se ao presidente como um “presuntinho“ que estaria no meio de duas “mulheres bravas“: ela e Karina Milei, irmã do presidente.
Dezenas de organizações de direitos humanos se reuniram na Praça de Maio neste domingo. A organização Madres de Plaza de Mayo – Linha Fundadora concentrou-se mais cedo na Praça, e as Avós da Praça de Maio chegaram ao final. O governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof (União pela Pátria) o estava presente no caminhão com as avós e militantes da agrupação.
No documento final de parte das organizações da histórica marcha, voltaram a pedir justiça pelos desaparecidos, a abertura dos arquivos ainda ocultos dos militares e, em uníssono em toda a praça na calorosa tarde deste domingo, não ao DNU e às políticas de fome de Milei.