“Falar de jornalismo comunitário é falar em defender a terra. Isso não se desvincula porque ele nasce a partir da defesa da vida, em comunicar o que se passa com os direitos das pessoas e dos territórios”, é o que afirma Ketzali Awalb’iitz Pérez, repórter e editora da revista feminista guatemalteca Ruda, em entrevista a Opera Mundi. A jornalista esteve presente no Encontro Continental “Mulheres, territórios e liberdade de expressão”, que reuniu comunicadores latino-americanos na Guatemala para debater liberdade de imprensa, feminismo e direitos humanos.
Pouco mais de uma semana após a comemoração do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, as notícias em relação à perseguição de jornalistas na América Latina, que trabalham em defesa de seus territórios e direitos humanos, ganharam mais espaço na imprensa brasileira e internacional.
Diante da realidade histórica de colonialismos e exploração do território no continente americano, em um “sistema dominante que valoriza apenas o enriquecimento de poucos acima do bem-estar e da vida das grandes maiorias”, como sinaliza a Declaração do Encontro Continental, o jornalismo comunitário “visa romper com a forma tradicional de noticiar e contar”.
Segundo o documento, iniciativas como os jornalismos comunitário e feminista funcionam como ferramentas para “quebrar a hegemonia da narrativa dominante”, a fim de reivindicar direitos.
Para Awalb’iitz Pérez, o jornalismo é um instrumento indispensável para comunicar o que acontece nas comunidades indígenas, quando a parte “central” da comunicação está olhando para outros lugares.
“A maioria dos meios de comunicação estão centralizados em outros tipos de notícias e o tema da defesa das terras e da vida é o que menos importa para eles, não só por causa do classicismo e racismo, mas também porque falar de defesa de território é tocar em estruturas hegemônicas e econômicas poderosas”, conclui.
A jornalista aponta que quebrar essa hegemonia significa correr certos riscos. Como o caso de Anastasia Mejía, jornalista da comunidade guatemalteca de Maia-k’iche e diretora da rádio Xol Abaj Radio e Xol Abaj TV, que foi presa em 2020 ao fazer uma cobertura das manifestações que terminaram em um incêndio no gabinete do prefeito do município de Joyabaj, no departamento de El Quiché, área central da Guatemala.
Durante o Encontro, Mejía disse que a liberdade de expressão “não existe na Guatemala”, mas afirmou sua persistência no jornalismo pelo “compromisso” que tem para “ajudar a mudar este país”.
Além de Mejía, o jornalista e ativista Bernardo Caal Xol também foi perseguido por realizar trabalhos na denúncia de abusos aos territórios e direitos na Guatemala. Libertado em 24 de março, saiu da prisão após passar quatro anos em cárcere por defender a comunidade Maya Q’eqchi, que foi afetada com uma construção hidrelétrica no rio Cahabón.
A Prensa Comunitária reconhece a existência de uma “cultura de impunidade” em relação aos casos de perseguição, principalmente os relacionados ao jornalismo alternativo e popular. Somente em 2021, a agência registrou 125 ataques a comunicadores guatemaltecos.
Por conta dessa realidade, Awalb’iitz Pérez defende que a imprensa alternativa da Guatemala realiza um papel para evidenciar de “como a ação dessas empresas extrativistas é uma violação de direitos”.
Liberdade de imprensa na América Latina
Não apenas na Guatemala, mas em toda a América Latina, comunicadores reconhecem os desafios e a importância do jornalismo comunitário em seus territórios – principalmente quando liderados por governos não favoráveis ao trabalho da imprensa alternativa.
Twitter/Prensa Comunitária/Nelton Rivera
Encontro Continental ‘Mulheres, territórios e liberdade de expressão’ aconteceu entre os dias 25 e 29 de abril, na Guatemala
Como os governos, segundo a Prensa Comunitária, de Alejandro Giammattei, na Guatemala, Nayib Bukele, em El Salvador, e Jair Bolsonaro, no Brasil, no qual a comunicação, especialmente a alternativa e popular, é atingida por essas “novas autocracias”.
Para a jornalista María Waldh¨uter, do grupo editorial argentino Marcha Notícias, a imprensa alternativa se faz importante quando comunidades e povos sofrem algum tipo de vulnerabilidade. “Se há algum direito humano ou da natureza desrespeitado, é necessário prestar atenção para que um relato seja construído. Não existe democracia sem meios comunitários, populares e alternativos”, afirma Waldh¨uter a Opera Mundi.
Na mesma linha, a jornalista da agência de comunicação alternativa Colombia Informa Juliana Toro Jiménez declara que uma das características intrínsecas da imprensa comunitária é o posicionamento “a favor dos povos”.
“Há uma ideia falsa de que o jornalismo tem que ser neutro e objetivo. Ser neutro no mundo capitalista é basicamente se colocar do lado do opressor, de quem faz silêncio frente às injustiças”, completa a comunicadora.
Diante das perseguições generalizadas à imprensa na América Latina, Jiménez analisa a importância do trabalho interligado entre jornalistas comunitários no continente. “É importante para dar visibilidade de forma internacional ao que acontece nos outros países, como a violação de nossos direitos e da liberdade de imprensa. Temos que ser como um mesmo território, para fazer uma luta conjunta, porque são problemáticas muito parecidas”, concluiu.
Além da falta de elementos de proteção para que jornalistas comunitários exerçam suas profissões, os comunicadores reconhecem a autossustentabilidade desses meios como uma das maiores dificuldades para a imprensa alternativa.
Para a guatemalteca Awalb’iitz Pérez é um “grande desafio” o processe de como “financiar-se sem interferir na linha editorial dos meios, mas também permitir sustentar-se e remunerar os comunicadores de forma digna”.
“Tragédia espantosa”
Um dos diversos trabalhos do jornalismo comunitário é a defesa dos povos indígenas e de seus territórios. Nesse sentido, as repórteres consideram essencial que a cobertura desses grupos sejam realizadas “da maneira mais próxima possível”, dando o exemplo da recente denúncia do assassinato de uma menina indígena de 12 anos por garimpeiros que exploram ilegalmente a região dos Yanomami.
O presidente brasileiro do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye'kwana (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami, denunciou no final de abril o estupro e morte da criança .
Waldh¨uter aponta o caso como uma “tragédia espantosa”, dizendo ser necessário entender não apenas o que aconteceu, mas “por que aconteceu algo tão grave quanto isso”, quanto Jiménez alerta para a necessidade de humanizar a cobertura: “os números são importantes para mostrar a dimensão do problema, mas é preciso humanizar. Contar a história da comunidade e como viviam, por exemplo, para que as pessoas que lerem sintam identificação e indignação”.
Já Awalb’iitz Pérez, que faz parte da comunidade indígena guatemalteca Maya Poqomam, considera a importância de “ir atrás de respostas e ações” ao comentar sobre o caso dos Yanomamis no Brasil.
“Jornalismo é uma forma de acompanhar as lutas. Então, as narrativas mudam quando buscamos dar empatia e solidarizar-se com essa injustiça. Através do conteúdo, podemos chamar atenção para a defesa de territórios”, completa a jornalista.