A participação e responsabilidade do Estado brasileiro no sequestro, tortura e morte do diplomata José Jobim pelas forças de repressão da ditadura militar em 1979 só foi reconhecida em 2018, após anos de batalhas judiciais travadas principalmente pela filha do ex-funcionário do governo, Lygia Jobim, que contestava a hipótese de suicídio forjada pelos militares.
A jornalista e advogada, membro do coletivo Memória, Verdade, Justiça e Reparação, conversou exclusivamente com Opera Mundi nesta sexta-feira (26/06), data em que se celebra o Dia Internacional de Luta Contra a Tortura, instituída pela ONU em 1997.
Além da dimensão pessoal sobre o tema como familiar de uma vítima da ditadura, Lygia falou da disputa pela memória sobre o período, sobre manifestações de orientação fascista, da postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à história do país e da batalha mais recente em que se envolveu: um processo contra a ex-secretária de Cultura Regina Duarte por apologia à tortura feita em entrevista à CNN Brasil.
Além de R$70 mil por danos morais, quantia que Lygia faz questão de sublinhar que “será doada em partes iguais para o Instituto Vladimir Herzog e para o Instituto Marielle Franco”, o processo também pede retratação pública da antiga secretária de Bolsonaro.
“Ao ver a entrevista, fiquei estarrecida. Não conseguia deglutir a forma descontraída como ela naturalizou a tortura. Não podia deglutir seu gesto de arrastar um corpo. Eu precisava que soubesse que não arrasto meu pai nas costas”, afirma Lygia.
A ativista também abordou a necessidade de revisão da Lei de Anistia, assinada em 1979, que perdoou os crimes cometidos pelos agentes da repressão do regime militar. Para Lygia, a lei foi um “grande acordão que, ao deixar impune os torturadores, deixou livre o caminho para a continuidade dessa prática ignóbil, generalizada e ancestral em nosso país que[…] continua a se manifestar, sobretudo contra os negros e os menos favorecidos”.
“Em primeiro lugar é necessário que se faça uma reinterpretação da Lei de Anistia. Os arquivos militares têm que ser abertos. O ensino nas academias militares tem que ser reformulado. O ensino da ditadura nas escolas tem que ser ministrado de forma mais profunda e verdadeira. Enquanto não fizermos uma campanha maciça de informação e educação nada vai mudar”, diz.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: Como filha de uma das vítimas da ditadura militar brasileira, como vê a importância que o Dia Internacional de Luta contra a Tortura?
Lygia Jobim: A importância dessa data extrapola minha condição de filha de vítima da repressão. Quando a ONU a instituiu, em 1997, o fez no mesmo dia em que, dez anos antes, foi assinada a Convenção contra a Tortura, convenção essa que foi assinada por grande parte de seus membros, inclusive o Brasil. Tem uma dimensão internacional, já que a prática é utilizada em larga escala no mundo todo. Infelizmente não sou a única filha que teve o pai morto sob tortura. O apoio às suas vítimas e a nós, que sofremos esse crime como reflexo, é fundamental, pois deixa marcas indeléveis.
Como analisa a forma elogiosa com que o governo de Jair Bolsonaro trata o tema da tortura e da ditadura?
Não vou dizer que é um caso de psicopatia, pois não quero abrir margem para que depois aleguem sua inimputabilidade, bem como a daqueles que o sustentam. Acho que devemos tomar muito cuidado com isso. Nossa Constituição, em seu artigo 5º, define a tortura como crime inafiançável. A apologia a ela é crime tipificado no artigo 287 do Código Penal. Da mesma forma é criminosa a apologia que o capitão, ocupante do Planalto, faz de torturadores.
Como vê a prática da tortura no Brasil desde a redemocratização? Houve uma ruptura ou uma continuidade? Ainda existe tortura?
A Lei de Anistia de 1979 foi um grande acordão que, ao deixar impune os torturadores, deixou livre o caminho para a continuidade dessa prática ignóbil, generalizada e ancestral em nosso país. Os porões continuam aí, nas delegacias, nos presídios e na forma como a violência do Estado continua a se manifestar, sobretudo contra os negros e os menos favorecidos.
Como os familiares de vítimas da ditadura analisam o governo Bolsonaro sob uma perspectiva histórica? Quais ameaças ele representa à memória do país?
Cabe a nós manter viva a memória do país, pois este governo, adepto do negacionismo histórico, quer implantar como verdade fatos e versões criados por eles para embasar sua política de arrasar todo nosso legado, possibilitando assim a criação de um estado fascista. Faço parte do Coletivo Memória, Verdade, Justiça e Reparação (RJ), que tem por objetivo preservar a memória do passado e lutar contra os absurdos do presente.
Reprodução/Memorial da Resistência
No Dia Internacional de Luta Contra a Tortura, Opera Mundi entrevista Lygia Jobim, filha de uma das vítimas do regime militar
Gostaria de falar sobre o processo contra a ex-secretária Regina Duarte. Quando a senhora decidiu processá-la?
Ao ver a entrevista [à CNN Brasil] fiquei estarrecida. Durante dois dias, sua fala não me saía da cabeça. Não conseguia deglutir a forma descontraída como naturalizou a tortura. Não podia deglutir seu gesto de arrastar um corpo. Eu precisava que soubesse que não arrasto meu pai nas costas. Carrego a dor de um país que passou por isso dentro de mim. Percebi então que a única forma de me livrar desse mal-estar físico e emocional era processá-la. A ela e à União, pois quem ali falou foi uma então representante do Estado brasileiro.
Para isso, apesar de jornalista e advogada, contratei o escritório de Carlos Nicodemos, especializado em Direitos Humanos, pois não se deve misturar ação com emoção. Na ação, é pedida uma indenização material e uma retratação pública. Caso obtenhamos êxito, a indenização material será doada em partes iguais para o Instituto Vladimir Herzog e para o Instituto Marielle Franco. Não ficarei com um tostão pois tenho certeza de que eles saberão, melhor do que eu, usar esses recursos para lutar pelo que acredito.
Qual é a importância de um processo como esse quando o Brasil é governado pela extrema direita?
Tenho consciência que uma só andorinha não faz verão, mas uma revoada de andorinhas pode desconsertar um gavião. Fiz a parte que me cabia, assim como outros estão fazendo o que lhes é possível. E muitos com mais capacidade e gestos maiores do que o meu. Tenho certeza de que o Brasil um dia voltará a caminhar de uma forma mais civilizada – o que, aliás, não é difícil. Mas achei necessário marcar uma posição, que não é apenas minha, contra essa violência que a extrema direita prega.
Como analisa as manifestações que pedem a volta da ditadura e uma guinada mais autoritária do governo Bolsonaro?
Na reunião ministerial do dia 22 [de abril], o capitão afirma que a população deve ser armada para resistir aos prefeitos e determinou que a portaria sobre a liberação de munição fosse assinada imediatamente. A isso o então ministro da Justiça, Sergio Moro, não se furtou, não tendo sido esse o motivo de seu pedido de demissão. Isto me preocupa, pois, ao que parece e segundo a imprensa vem noticiando, a ligação da família Bolsonaro com milicianos é bastante estreita. Mas não vejo clima para uma intervenção militar tradicional. Os militares já perceberam que amarraram seus cavalos em lugar errado.
Quanto aos manifestantes, duas coisas me parecem engraçadas. A primeira é que alguém faça uso do direito de se manifestar para pedir algo que vai proibi-lo de se manifestar e não perceba nisso uma contradição! A segunda é que, por falta do Cercadinho do Alvorada, os 300, que na verdade eram 30, sumiram.
Como a sociedade pode voltar a encarar a ditadura militar e as torturas que ocorreram nesse período após o governo Bolsonaro? Acredita em um processo de reeducação sobre o tema?
Algumas coisas são indispensáveis para isso. Em primeiro lugar é necessário que se faça uma reinterpretação da Lei de Anistia de 1979 para que os torturadores sejam punidos pelo menos moralmente, tendo em vista que muitos já morreram. Os arquivos militares têm que ser abertos. O ensino nas academias militares tem que ser reformulado. O ensino da ditadura nas escolas tem que ser ministrado de forma mais profunda e verdadeira. A sociedade não vai mudar se nome de ditadores continuarem a ser nome de escolas. Não vai mudar se não lhes for dito que a ponte que Rio-Niterói tem nome de ditador e que por isso vai mudar de nome. Precisamos construir nossa memória coletiva, inclusive através de memoriais e museus sobre esse período. Enquanto não fizermos uma campanha maciça de informação e educação nada vai mudar.