A reação do governo tunisiano foi imediata: pouco depois da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, e da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, visitarem no domingo (17/09) o centro de acolhimento na ilha italiana de Lampedusa, as autoridades da Tunísia expulsaram centenas de migrantes de países subsaarianos que estavam no porto de Sfax.
Esse relato foi feito pela organização de direitos humanos Fórum Tunisiano para os Direitos Econômicos e Sociais (FTDES) à agência de notícias AFP. Segundo a entidade, as autoridades tunisianas esvaziaram uma praça na cidade portuária onde se reuniam cerca de 500 migrantes. Os migrantes foram levados para áreas rurais e outras cidades, disse o FTDES.
Sfax é considerado um afunilamento das rotas de migração da África para a Europa. Dali partem vários barcos, a maioria deles com destino a Lampedusa – uma distância que, em linha reta, é de apenas 188 quilômetros. Devido a tal proximidade, muitos migrantes chegam ao território da União Europeia através da Tunísia. No caso de Lampedusa, em especial, a grande maioria vem de lá.
Isso confere ao governo da Tunísia um enorme poder de negociação com a Europa, algo que o país testou e demonstrou diversas vezes nas últimas semanas.
A visita de Meloni e Von der Leyen a Lampedusa surgiu em resposta ao elevado número de refugiados e migrantes que chegaram à ilha nas semanas anteriores. A retirada de parte deles do porto de Sfax sinalizou então aos europeus que a Tunísia pode de fato influenciar o número de migrantes no país que chegam à Europa a partir de lá.
A situação atual teve como precedente uma visita de altas autoridades da União Europeia a Túnis em julho, quando ambos os lados chegaram a um acordo sobre um futuro pacto de migração. O objetivo principal, pela perspectiva europeia, é prevenir a migração ilegal para a Europa.
Na ocasião, a União Europeia concordou em disponibilizar cerca de 100 milhões de euros anualmente para operações de busca e salvamento, assim como para a repatriação de migrantes. O pacote – que ainda não foi ratificado e é politicamente controverso – também inclui numerosos acordos de ajuda econômica e de cooperação com a Tunísia. Pela formulação atual, o país deverá receber cerca de 900 milhões de euros ao longo de alguns anos. Após as negociações com Von der Leyen e outros líderes europeus em julho, o presidente tunisiano, Kais Saied, disse que estava “determinado” a implementar o acordo “o mais rápido possível”.
Insatisfação de ambos os lados
Até agora, porém, o acordo não parece ter dado grandes frutos. A situação se mostrou particularmente dramática na terça-feira da semana passada (12/09), quando mais de 5 mil migrantes chegaram a Lampedusa vindos da Tunísia. Segundo dados do Ministério do Interior italiano, mais de 123.800 pessoas chegaram à Itália em barcos desde o início do ano, quase o dobro na comparação com o mesmo período de 2022, que registrou 65.500 migrantes vindos pelo mar. Tal volume ameaça superar até mesmo o recorde de 2016, quando foram registradas 181 mil chegadas.
Para Johannes Kadura, chefe do escritório da Fundação Friedrich Ebert em Túnis, o fato de o presidente Saied ter mandado levar os migrantes de Sfax para outras partes do país deve ser visto como um recado. “Certamente, não é nenhuma coincidência que as autoridades estejam tomando medidas mais duras contra os migrantes justamente agora. Obviamente, elas querem mostrar que são capazes de tomar medidas contra os contrabandistas e impedir o embarque de migrantes”.
No entanto, não se pode descartar que a Tunísia também esteja enviando sinais contrários. Alguns observadores acreditam que o governo em Túnis está insatisfeito com a forma como o acordo de migração com a União Europeia foi estruturado até agora, avalia Kadura, e avaliam que o governo tem até mesmo deixado as pessoas embarcarem propositalmente a fim de pressionar a Europa. Assim, o governo estaria enviando sinais em ambas as direções: cooperação e enfrentamento. “Dessa forma, Túnis sinaliza que quer manter diferentes opções em aberto”, diz Kadura.
Presidência da Tunísia
Presidente da Tunísia, Kais Saied, diz estar determinado a implementar novo acordo
Aumento do fluxo migratório
De fato, as expectativas na Tunísia são altas, diz Christian Hanelt, especialista em Oriente Médio e Norte da África da Fundação Bertelsmann. “Meloni e o presidente tunisiano são uma espécie de dupla unida pelo destino”, avalia, acrescentando que Saied provavelmente espera de Meloni, que prometeu aos eleitores italianos uma limitação significativa da migração, um apoio orçamentário direto e incondicional. “E ele também espera que a União Europeia apoie mais as autoridades de segurança e a guarda costeira da Tunísia”.
Por meio de negociações com Meloni e outros políticos europeus, Saied busca ainda superar o isolamento diplomático em que caiu devido à sua política interna autoritária, diz Hanelt. Apesar de ver Meloni como favorável para Saied no contexto diplomático, o especialista alemão ressalta que ela não pode ajudá-lo a obter ajuda orçamentária da União Europeia, uma vez que isso está ligado a padrões políticos e de direitos humanos, bem como ao compromisso da Tunísia de implementar reformas apresentadas pelo Fundo Monetário Internacional. “E Saied se opõe a isso”, disse Hanelt.
O fato é que o fluxo migratório rumo à União Europeia continuará a aumentar – inclusive como reflexo dos esforços atuais para limitá-la, afirmou Christian Hanelt. Muitos refugiados consideram os eventos recentes, como as conversas entre os líderes europeus e o presidente da Tunísia ou as discussões sobre novos acordos de parceria na região do Mediterrâneo, como sinais de alerta de que a migração pode se tornar mais difícil no futuro.
A situação econômica ruim, bem como declarações negativas feitas no passado pelo presidente tunisiano contra os migrantes da África, também têm feito com que cada vez mais pessoas cheguem a Lampedusa de forma irregular, aponta Hanelt. “É difícil dizer se Saied está usando isso a seu próprio favor. Não se pode descartar a possibilidade de as autoridades de segurança tunisianas estarem fazendo vista grossa. Mas também é necessário destacar: não há evidências disso até o momento”.
Cada vez mais ciente de seu poder
Embora ainda inconcluso, o acordo de migração com a Tunísia já foi alvo de inúmeras críticas em nível europeu. Um dos principais pontos levantados é a incerteza quanto à sua capacidade de impedir a migração ilegal de forma significativa. Por outro lado, a Tunísia também tem sido criticada por sua forma de lidar com os migrantes. No início de julho, por exemplo, as autoridades tunisianas abandonaram cerca de 800 migrantes desprotegidos em uma área deserta na fronteira com a Líbia. Meses antes, Saied também vociferou publicamente contra os migrantes da África subsaariana.
Até o momento, o governo tunisiano tem reagido de maneira bastante indiferente às críticas – e muito ciente de seu poder. Em meados de setembro, por exemplo, Túnis recusou a entrada de cinco membros do Parlamento Europeu que queriam ter uma ideia da situação dos direitos humanos na Tunísia. Citando Saied, a imprensa árabe disse que ele rejeita qualquer interferência externa em assuntos domésticos e que missões de vigilância como essa são indesejáveis na Tunísia. Outro indício de que o presidente está ciente de sua margem de manobra em relação à União Europeia.
‘Europa não pode se esquivar de suas responsabilidades’
Johannes Kadura, da Fundação Friedrich Ebert, considera isso problemático.
“A União Europeia não pode fingir que isso não poderia ter sido previsto e que agora está surpresa”, diz o especialista.
“Quando se concluem tais acordos, também é preciso garantir que os migrantes que forem barrados na travessia voltem para casa – e de uma forma humana. A Europa não pode se esquivar de suas responsabilidades”, acrescenta.
Teste de força
A Tunísia também sabe disso. No geral, portanto, as negociações sobre a contenção da migração ilegal podem ser vistas como um confronto entre o país do norte da África e a União Europeia. A Tunísia tem os meios para aumentar o fluxo migratório sobre a Europa e sabe que os políticos europeus temem um maior fortalecimento das forças populistas de direita e antimigração no continente.
A União Europeia, por outro lado, pode dar à Tunísia acesso, mesmo que parcial, aos recursos financeiros de que o país tanto precisa – ou vincular tais financiamentos a condições ou mesmo retê-los. Resta saber, porém, se ambos os lados podem realmente estar interessados em bloqueios mútuos.