O jovem Lucas começou a usar drogas com 13 anos de idade. Amigos ofereceram para ele, que experimentou e acabou gostando. “É mais fácil que comprar um pão, se vende em qualquer beco ou rua do município. Se não é comprado na cidade, tem muitos que trazem pra dentro da comunidade para vender”, conta ele.
“Eu e meus colegas sempre levamos pra escola, para usar e vender. Tem muitos adolescentes que são usuários, por isso não respeitam mais os professores”, continua o rapaz. Ele relata que, de tanta vergonha que sente da família, pela situação que passa, pensa até mesmo em se suicidar às vezes.
Seria mais uma história entre tantas existentes hoje em grandes cidades do Brasil, se não acontecesse em uma aldeia indígena nos confins da Amazônia. Comunidades do povo Tikuna próximas ao município fronteiriço de Benjamin Constant, no oeste do Amazonas, alto rio Solimões, enfrentam há anos um problema negligenciado pelas autoridades policiais do estado, na visão das lideranças: adolescentes indígenas nas comunidades estão sendo aliciados pelo tráfico de drogas, tornando-se consumidores e até mesmo mão de obra para o crime.
Além disso, o descontrole trazido pelo assédio do tráfico tem gerado um ambiente de violência e furtos nas comunidades. Segundo lideranças e moradores, os jovens indígenas envolvidos ocupam as ruas nas comunidades no período noturno, praticando crimes e violências entre si e contra os moradores, que reclamam de assaltos e furtos, e de outros transtornos.
Izaque Almeida Bastos, cacique da comunidade Indígena Filadélfia, lembra que o problema é antigo, mas, nos últimos tempos, tem afetado adolescentes cada vez mais novos, de até 13 anos, como Lucas. “A maconha e a cocaína não fazem parte da cultura tikuna e por isso prejudicam muito a saúde mental dos jovens indígenas que acabam usando esse tipo de drogas”, afirma o líder comunitário.
O cacique associa essa situação ao avanço das tecnologias digitais entre os jovens. Para ele, celular, internet e redes sociais estão influenciando os jovens indígenas para que copiem uma cultura que não lhes pertence, como a música funk, levando-os ao uso de álcool e outras drogas. “A tecnologia e o acesso a internet influenciam muito os jovens a usarem drogas. Através da internet eles ficam vendo vídeos dos jovens da cidade usando drogas, e os jovens tikuna acabam imitando”, diz ele.
Bastos também associa o uso precoce aos exemplos em casa, pois percebe que vários jovens usuários de drogas pertencem a famílias em que os pais ou outros parentes são alcoólatras. Segundo o cacique, além do álcool, a droga mais comum na região entre os jovens é a maconha, e em segundo vem a cocaína, chamada pelos jovens de “brilho”. O cacique destaca ainda os efeitos do abuso de drogas para a saúde mental dos jovens. Ele associa o uso de drogas à ocorrência de furtos e diversas formas de violência.
Sem apoio das autoridades – sejam do município, da Polícia Militar ou mesmo Polícia Federal e Fundação Nacional do Índio (Funai) – para enfrentar o problema, as comunidades indígenas próximas à cidade, em especial, enfrentam dificuldades. Para tentar controlar a situação, os caciques dessas comunidades criaram, em 2009, uma iniciativa autônoma, o Grupo de Segurança, uma equipe de Polícia Indígena. O objetivo é tentar diminuir a violência e a entrada de bebidas alcoólicas e drogas nas comunidades. Como Benjamin Constant não tem uma base da Polícia Federal, o tráfico de drogas e as facções criminosas cresceram muito, na percepção do cacique, conseguindo, então, entrar nas comunidades indígenas. O cacique conta que ele e as demais lideranças já fazem denúncias há vários anos ao Ministério Público e à PF, e até agora não tiveram respostas.
O cacique da comunidade de Filadélfia também lamenta a falta de projetos sociais voltados para crianças e jovens indígenas, tanto nas cidades-sede dos municípios como nas aldeias. Ele observa também que falta apoio psicológico aos jovens indígenas que saem das comunidades para estudar em universidades como a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e a Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Com isso, observa que muitos acabam desistindo dos estudos ou têm dificuldade para concluir seus cursos, envolvendo-se com o consumo abusivo de álcool e outras substâncias no contexto urbano.
O depoimento de um dos jovens que já trabalharam no transporte de drogas como a maconha e a cocaína dentro de uma das comunidades indígenas ajuda-nos a entender como acontece o tráfico dentro das comunidades.
O jovem tikuna tem 25 anos de idade é de Benjamin Constant, mas mora em uma das comunidades indígenas que pertencem ao município. Ele transportava o “produto” (como ele prefere chamar) para a comunidade indígena depois de pegar o produto na cidade. Depois de caminhar pela estrada que vai para uma das comunidades, ele chegava ao porto, onde já havia um bote esperando por ele. O motorista era outro jovem e estava acompanhado de outro rapaz, que, armado, atuava como segurança do grupo. Eles faziam esse serviço à noite, devido à ausência de fiscalização ou ronda da polícia fluvial no período. Por meio do rio, então, eles chegavam ao porto da comunidade e lá ele deixava o produto com outra pessoa que o venderia aos jovens usuários indígenas.
Questionado se ele não tinha medo de ser capturado pela polícia enquanto navegava no rio, ele responde: “A única coisa que a gente temia não eram os policiais, mas sim a outra facção fazer uma emboscada pra nós e levar o produto, ou aquele grupo de piratas que sempre faz assaltos no rio”. Segundo ele, esse grupo de piratas inclui indígenas e não indígenas.
Facções
Gel (nome fictício), 27 anos, outro jovem indígena morador de uma das comunidades de Benjamin Constant, conta que ele e diversos outros integrantes de sua família envolveram-se com o tráfico atraídos pelo retorno financeiro. “Meus pais vivem da agricultura e pesca, mas o que eles ganhavam através disso não era suficiente para nos manter”, relata ele. “Tenho vários irmãos e irmãs, então tivemos que buscar algo alternativo para ajudar meus pais para sustentar a nossa família.”
Inicialmente, Gel conta que ele e os familiares tentaram o comércio de bebidas alcoólicas, mas, depois, acabaram optando pelas drogas ilegais. “As oportunidades de trabalho aqui são bem difíceis. No início começamos a vender as bebidas alcoólicas, mas nós percebemos que já havia vários usuários de entorpecentes, daí começamos a vender desse tipo de coisas”.
O jovem diz não ter ideia de como surgiu o consumo de drogas nas aldeias. “Não sabemos onde os jovens e os adolescentes indígenas começaram a usar, só estamos vendendo pra ganhar dinheiro”, resume ele. “No início a gente só comprava e revendia, mas, agora que fazemos parte da facção, já é bem fácil, e o preço é bem menor agora para comprarmos e revendermos aqui na comunidade”.
Segundo ele, não há maiores dificuldades no transporte das drogas até as comunidades. “Nós trazemos bem fácil pra dentro da comunidade. Às vezes vamos buscar de canoa (bote) ou de moto mesmo, pela estrada. Não tem nenhuma fiscalização e facilita muito a entrada tanto como as bebidas alcoólicas e drogas”, relata. “Ninguém vai saber o que estamos trazendo dentro das mochilas, e depois nós mandamos adolescentes ou jovens indígenas que querem ganhar dinheiro vender pra nós, ou eu mesmo vou vender de noite nas ruas.”
Os ganhos, segundo o depoimento de Gel, são expressivos: “Às vezes faturamos mais ou menos R$ 5 mil por semana, ou menos, dependendo do movimento, e por mês faturamos de R$ 15 mil a R$ 20 mil”. “A maioria da droga vem do Peru, e algumas vem de Colômbia. No Peru é mais fácil de ser comprado e é mais barato”, conta. “A gente vende nas comunidades que ficam distantes também, mandamos alguém ir lá para vender.”
Segundo Gel, antigamente o grupo vendia a chamada “pasta-base” ou “papeleta”, substância mais barata que, depois de processada, é transformada na cocaína. Atualmente, comercializam maconha e cocaína.
Apesar do alto faturamento, o jovem admite que o temor dos traficantes é constante. “Sim, sempre estamos com medo, porque tem facções rivais que sempre estão de olho. Por isso temos armas de fogo em casa para nos proteger”, conta ele. “Nunca estamos tranquilos, a gente sempre tem esse medo dentro da gente. Eu já fui preso, mas minha família pagou a fiança e saí. Nunca encontraram provas suficiente para incriminar a minha família de vez.”
Apesar de seu papel no tráfico, o jovem indígena se diz triste pelo envolvimento de seu povo com as drogas: “Da minha parte, isso realmente é muito triste, ninguém gosta e ninguém gostaria de ver um dos seus irmãos ou da família se envolver com esse tipo de coisas ou se tornar viciado em drogas. Eu nunca quero ver meus irmãos se tornarem viciados. Eu não gosto do que eu faço, mas, quando vejo dinheiro, já não penso mais nisso, a gente faz isso é só por questão de negócios e dinheiro”.
Wikicommons
Alto rio Solimões, na Amazônia
“Muito fácil”
Outro jovem indígena, Bucü – nome fictício –, morador de uma das comunidades de Benjamin Constant, conta que experimentou maconha com 15 anos de idade – ele tem hoje 17. “Foi por causa da curiosidade. Meus amigos me falavam que era bom, que a sensação é muito boa, que era melhor que a bebida. E eu acabei experimentando e achei bom”, conta.
Ele relata que o acesso às drogas é simples: “É muito fácil de encontrar aqui mesmo dentro da comunidade, pois tem pessoas que vendem. É escondido, nós não podemos revelar quem é e onde ele mora, pois nós temos medo que alguém denuncie a ele ou a nós para a polícia. Nossos pais nem desconfiam que a gente usa esse tipo de droga”.
O jovem conta que, em função do envolvimento com as drogas, seu desempenho nos estudos piorou. “Me atrapalhou muito sim, não conseguia mais prestar atenção nas aulas e tirava sempre notas baixas. Fugia antes do tempo acabar e por fim acabei desistindo”, conta ele, que ainda explica que a situação é comum entre seus conhecidos. “Da minha parte, comecei a roubar e vender coisas dos meus pais pra conseguir comprar a maconha pra eu usar ou usar com amigos.”
Para consumir as bebidas alcoólicas e outras drogas, os jovens, na comunidade dele, se dirigem a um igarapé afastado das casas, “no caminho da roça”. “A gente fica lá só curtindo e fumando, tem meus colegas que gostam de beber e levam a bebida deles, ficamos lá o dia todo e quase todos dias a gente faz isso.”
O dinheiro para o consumo vem do fato de que vários jovens são filhos de indígenas assalariados: “A maioria dos que usam aqui são filhos dos funcionários públicos e por isso eles têm dinheiro pra comprarem a bebida ou a maconha”.
Segurança indígena
Odimar Penha Lopes e Judite Alfonso Eleutério são casados e fizeram parte da segurança indígena durante 14 anos na comunidade de Vila Betânia – Mecürane. Para Judite, o atual problema com as drogas entre os adolescentes começou vários anos atrás com a circulação de álcool nas aldeias: “Não são peruanos nem nenhum estrangeiro quem trouxe essas coisas para a comunidade [bebidas e outras drogas]. Tudo começou com as bebidas. Quando só consumiam as bebidas alcoólicas não tinha tanta violência ou suicídio dentro da comunidade. Quando bebem e começam a usar drogas, começa a desordem. Tivemos vários casos de suicídio. Tem um jovem que tirou a própria vida com uma espingarda de caça”.
Valdemiro Marcos Izaque, delegado da segurança indígena da Comunidade Vila Betânia, que pertence ao município de Santo Antônio de Iça (AM), trabalha na área há 16 anos. Ele conta que há oito anos a prefeitura do município contribui financeiramente com o trabalho dos agentes indígenas – o atual vice-prefeito, Alberto Gomes Chavier, é tikuna e morador de Vila Betânia. Nem todos os municípios da região do Alto Solimões têm a mesma postura, por isso há áreas onde a segurança é feita de forma voluntária por agentes indígenas.
Izaque aponta que, hoje, em Vila Betânia, o problema das drogas está associado à presença de pessoas de fora que montam comércios na comunidade – algo que foi permitido pelas lideranças em função das dificuldades das famílias para fazer compras na cidade, pois a sede do município fica a cerca de 13 quilômetros de distância. “O pessoal que traz as bebidas alcóolicas e drogas dentro da minha comunidade são os estrangeiros que vêm do Peru e também os brancos que vêm do município e se casam com algumas das nossas moças tikuna“, resume ele.
Recentemente Valdemiro, como delegado, expulsou dois estrangeiros que estavam levando bebidas alcoólicas e drogas para dentro da comunidade. “Além de eles trazerem as drogas para a comunidade, eles exploram o nosso lago ilegalmente e levam peixe para Peru ou vendem no município.”
Ele reclama que a Funai e a Polícia Federal não fazem nada para tentar controlar ou diminuir a situação das drogas dentro das aldeias, que tem causado aumento dos casos de furtos, entre outros problemas. A prefeitura municipal e a Polícia Militar, segundo ele, contribuem com rondas esporádicas.
Quem são os Tikuna?
Os Tikuna são o povo indígena mais numeroso no Brasil – eram 46,1 mil no Censo de 2010. A etnia tikuna se expande na região das três fronteiras, entre Brasil, Peru e Colômbia. Há comunidades tikuna nesses três países. No território brasileiro, os Tikuna sofrem com a invasão dos estrangeiros, principalmente dos comerciantes peruanos, que muitas vezes acabam desrespeitando regras, leis e costumes do povo. É relativamente fácil a entrada de estrangeiros nos territórios indígenas do Alto Rio Solimões, pois a fiscalização da Funai inexiste.
Além disso, alguns Tikuna peruanos e colombianos considerados refugiados acabam cruzando as fronteiras, e a Funai facilita a naturalização deles. Esses Tikuna refugiados são vítimas de exploração dos traficantes no Peru, onde os plantadores de coca e maconha têm invadido comunidades indígenas para expandir sua produção.
Jovens tikuna brasileiros têm sido atraídos por esses traficantes para trabalharem como lavradores nessas plantações, com promessas de altos salários. Alguns jovens acabam ficando por lá e nunca mais voltam. As notícias que recebemos é que se viciam em cocaína, perdem o emprego e acabam ficando no Peru, sem condições de voltar para o Brasil.
E esse tipo de situação é bem comum por aqui, pois a Funai e PF não estão nem ao menos fiscalizando o cruzamento do trajeto dos rios, e a capitania raramente faz esse tipo de fiscalização. Quando fiscalizam, apenas acabam prejudicando os pescadores indígenas que vão em busca de peixe nos rios do Peru ou Colômbia, ou consumidores que fazem compras nas cidades peruanas que são vizinhas dos municípios brasileiros, para driblar a alta de preços que tem ocorrido no país.
A maioria dos lagos com abundância de peixes ficam depois da fronteira com o Peru, pois na parte do Brasil nenhum desses lagos fica na terra indígena demarcada, sendo explorados facilmente pelos pescadores do município. Por esse motivo, os pescadores tikuna cruzam a fronteira em busca de peixes para manter suas famílias.
Outro lado
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Polícia Federal foram procuradas para comentar as críticas das lideranças tikuna, mas, até o fechamento desta reportagem, não responderam à Agência Pública.
(*) Reportagem publicada originalmente no portal da Agência Pública, por meio do edital Microbolsas Pública – Repórteres Indígenas