O caminho de volta para casa não foi menos tortuoso do que aquele que percorreu quando migrou fugindo do bloqueio econômico imposto à Venezuela pelos EUA. Depois de percorrer 705 km de bicicleta, durante 12 dias seguidos, o ex-bombeiro, Ronaldo Ugueto, de 30 anos, chegou à cidade colombiana de Cúcuta, na fronteira com a Venezuela. Ele e outros quatro venezuelanos saíram do município de Montería, no estado colombiano de Córdoba, na região caribenha, e o destino final eram os Vales do Tuy, região metropolitana de Caracas.
O serviço migratório da fronteira da Colômbia com a Venezuela está fechado para o trânsito comum, mas existe um corredor humanitário que permite o ingresso dos imigrantes venezuelanos e, com a crise provocada pela pandemia da covid-19, muitos estão regressando à Venezuela. Isso porque a maioria dos venezuelanos que migraram trabalhava sem registro, em situação economicamente vulnerável.
Desde o mês de março, cerca de 105 mil imigrantes entraram na Venezuela pela fronteira terrestre com Colômbia, segundo as autoridades colombianas. Outros 40 mil ainda estão tentando voltar nesse momento, saindo de diferentes departamentos colombianos, mas também de outros países da região como Chile, Peru e Equador, passando por território colombiano, de acordo com dados do governo da Colômbia.
Na Venezuela, o governo fornece assistência social e tratamento gratuito para as pessoas contaminadas pela covid-19, o que faz com que muitos desses venezuelanos preferissem estar em seu país durante a pandemia.
Ronaldo é um desses venezuelanos que, sem dinheiro, decidiu voltar para casa de bicicleta. A Colômbia não lhe havia proporcionado as oportunidades que esperava quando saiu de seu país dois anos atrás. Trabalhava vendendo café nas ruas de Montería, mas, com a quarentena, a situação, que já era difícil, ficou insustentável.
No entanto, nos últimos meses, alguns venezuelanos estão denunciando nas redes sociais e na imprensa certas dificuldades impostas pelas autoridades ao longo desse trajeto de regresso. “Encontramos policiais que nos insultavam, não queriam deixar a gente passar e não queriam que a gente transitasse pelo país. Explicamos que ficamos sem trabalho e que precisávamos voltar”, diz Ronaldo.
O venezuelano relata inclusive uma ameaça. “Depois de seis dias, estávamos no meio do caminho, em uma região chamada Pelaya. Um grupo de policiais nos abordou. Um deles disse que não queria a gente ali, que se eles voltassem no lugar depois de alguns minutos e a gente ainda estivesse nessa região iriam jogar a gente em um calabouço”. Tomando em conta o histórico de violência dos policiais e militares colombianos, sobretudo nos últimos meses, os viajantes preferiram não duvidar e saíram da região.
Outro imigrante venezuelano, Daniel José, saiu de Bogotá de carona com um caminhoneiro e descreveu o cenário que viu na rota entre a capital colombiana e a fronteira da Venezuela. “Vimos dois grupos grandes de venezuelanos caminhando no acostamento da rodovia em direção à fronteira. Os dois estavam com crianças pequenas. Muito triste ver essa situação e não poder ajudar. As autoridades colombianas proíbem motoristas de dar carona. Se o dono do caminhão fosse flagrado com imigrantes venezuelanos levaria uma multa de mais de 1 milhão de pesos colombianos [cerca de R$1.420]”.
Daniel conta que só conseguiu passar pelos controles policiais porque o caminhoneiro dizia que ele trabalhava como seu ajudante. Essa foi a forma que o venezuelano encontrou para voltar, já que as linhas de ônibus e os voos foram interrompidos durante a pandemia.
Gobierno de Venezuela
Desde março, cerca 105 mil imigrantes deixaram o território colombiano e retornaram à Venezuela
Fronteira: zona de tensão e perigo
Para Ronaldo, a chegada a Cúcuta foi até mais hostil do que os problemas que enfrentaram ao longo do caminho. “Chegamos às 20h e a fronteira já estava fechada, devido ao horário. Os policiais que fazem a segurança da zona próxima à Ponte Internacional Simón Bolívar disseram que não tinham certeza se no dia seguinte as autoridades venezuelanas iriam abrir a fronteira”, conta o venezuelano. Vale lembrar que, durante os seis meses de quarentena, a Venezuela não fechou o corredor humanitário em nenhuma ocasião.
Segundo o ex-bombeiro, os próprios policiais colombianos dificultaram o acesso ao corredor humanitário da Ponte Internacional Simón Bolívar. “Nesse momento fomos abordados por trocheiros [como são chamados os homens que controlam as passagens ilegais dessa fronteira]. Eram uns 15 homens e ficavam rondando essa área da barreira de segurança. Nesse ponto tem uma barricada, estávamos a alguns 300 metros da ponte, e os próprios policiais sugeriram que a gente aceitasse a oferta dos trocheiros para cruzar pelos caminhos alternativos”.
Mas os imigrantes insistiram que queriam entrar na Venezuela de forma legal. Decidiram esperar o dia seguinte. Os policiais do serviço migratório colombiano não permitiram que eles dormissem nas ruas da cidade. Tiveram que sair do casco urbano, votar dois quilômetros e dormir na beira da rodovia.
“No dia seguinte, pela manhã, fomos à fronteira novamente. Os policiais colombianos informaram que não poderíamos passar, pois as autoridades venezuelanas não haviam aberto a ponte naquele dia. Nos aconselharam a falar com os trocheiros outra vez”, diz o imigrante.
Depois de quase dois dias de espera e impedidos de se aproximarem da Ponte Simón Bolívar pelos policiais colombianos, Ronaldo e seus amigos decidem cruzar a fronteira pelos caminhos ilegais.
A negociação com o grupo de trocheiros foi tensa. “Quando chegamos ao lugar vimos vários homens armados. Então a gente tinha que negociar com eles o valor. Como estávamos sem dinheiro, porque gastamos tudo pelo caminho, negociamos as bicicletas como forma de pagamento. Eram quatro no total. Eles aceitaram”, conta o venezuelano.
Apesar do medo, tudo deu certo. “Quando chegamos do lado venezuelano os trocheiros voltaram para a Colômbia. Caminhamos um pouco mais e logo fomos parados por militares venezuelanos que faziam patrulha na zona. Contamos o que havia acontecido, perguntamos onde ficava o ponto de controle sanitário”.
Os venezuelanos foram levados aos acampamentos sanitários construídos pelo governo da Venezuela na zona fronteiriça para a realização do teste de covid-19 e quarentena. Os imigrantes seguiram todos os protocolos de saúde. Segundo as autoridades venezuelanas, existem casos de imigrantes que optam pelos caminhos ilegais por não quererem passar pelo longo processo de checagem de saúde para controlar a pandemia no país.
A Ponte Internacional Simón Bolívar, onde ficam as autoridades migratórias venezuelanas e colombianas, funciona das 8h às 16h, com uma cota limite de pessoas por dia, nesse momento entre 300 e 400. É obrigatório submeter-se ao teste de covid-19 e cumprir quarentena. Se o paciente testar positivo, passa por uma segunda avaliação médica para saber se possui sintomas e precisa de tratamento.
Os casos negativos precisam fazer quarentena de cinco dias. Depois desse período, são submetidos a um novo teste e se o resultado for negativo novamente podem seguir viagem. Porém, quando chegam ao destino final, precisam cumprir quarentena obrigatória de 15 dias. Todas as despesas médicas, de estadia e alimentação durante esse processo são custeadas pelo governo venezuelano, assim como transporte desde a fronteira até suas casas.
Denúncia contra policiais colombianos
“Os caminhos ilegais da fronteira tornaram-se um grande negócio para os grupos armados que controlam essa região, entre eles paramilitares, narcotraficantes e pequenas guerrilhas. E os policiais participam desse lucrativo mercado ilegal. As trochas [caminhos ilegais] converteram-se no negócio mais rentável da fronteira”, afirma o diretor da ONG colombiana Fundación Progresar, Wilfredo Cañizares, que atua na área de defesa dos direitos humanos e monitora a situação dos imigrantes venezuelanos na região.
A informação foi confirmada pelo represente do governo da Venezuela no estado de Táchira, Freddy Bernal, um dos homens fortes do chavismo. “Estamos denunciando permanentemente como a Polícia Nacional da Colômbia bloqueia o acesso à Ponte Internacional Simón Bolívar. Tive uma audiência com o diretor de Migração da Colômbia, onde denunciei casos desse tipo e ele nos garantiu que iria investigar. Estamos esperando que isso realmente ocorra”.
Para Bernal, a fiscalização na fronteira é uma tarefa diária que requer o desmantelamento de inúmeros caminhos ilegais criados a cada semana. “Nós fazemos flagrante de irregularidades quase todos os dias. Recentemente descobrimos um caminho ilegal que tinha até um teleférico improvisado para cruzar por uma região de mata fechada e com rio caudaloso”. Táchira possui 164 km de fronteira terrestre com a Colômbia, em território que abriga selva, rios e montanhas.
Um camponês da zona rural de Boca Del Grita, no município venezuelano de Ureña, também fronteira com Cúcuta, explica que “os trocheiros costumam cobrar entre 30 e 100 dólares por pessoa para fazer a travessia ilegal”.
“Os grupos armados da região, como paramilitares, pequenas guerrilhas, narcotraficantes, controlam dezenas de trochas na fronteira. Mas também tem muita gente comum que está participando desse negócio para ganhar um dinheirinho”, conta o camponês, que aceitou falar em condição de anonimato, por medo dos grupos armados. Como em outras fronteiras pobres da América Latina, nessa região entre a Colômbia e a Venezuela a desigualdade social é uma realidade e a economia ilegal uma das poucas alternativas de “trabalho” para sobreviver.
Nesse momento o Estado venezuelano possui um efetivo de 7 mil soldados vigiando a linha fronteiriça colombiana, com 46 postos de controles. Além dos riscos da pandemia, essa é uma das zonas mais violentas da Venezuela, pois é onde opera um dos mais perigosos grupos paramilitares colombianos chamado Los Rastrojos. No ano passado, o governo venezuelano declarou “guerra” ao grupo e prendeu 123 membros, entre os quais estavam três dos principais líderes, segundo Bernal.
Opera Mundi entrou em contato com o departamento de Migração e com a Polícia Nacional da Colômbia, por e-mail e telefone, mas não teve resposta até o fechamento dessa reportagem.
Para Cañizares, existe uma escalada de violência contra venezuelanos na Colômbia. Segundo levantamento da Fundación Progresar, entre 2017 e 2019, foram registrados 378 homicídios contra imigrantes do país vizinho.
No primeiro semestre desse ano, no município de Cúcuta, foram assassinados 40 venezuelanos, dos quais 30 foram executados. Estes assassinatos representam 30% das mortes violentas na cidade colombiana. No ano passado, foram assassinados 65 venezuelanos em toda a Colômbia e outros 17 morreram em acidentes.
Entre os crimes mais comuns praticados contra venezuelanos na fronteira estão o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, sequestro para trabalho escravo em fazendas controladas pelo narcotráfico para produção de cocaína, roubos, assassinatos e crimes raciais com características xenófobas.