Pode parecer não fazer nenhum sentido como começa essa história. E talvez por isso mesmo ela seja tão interessante.
Pode parecer um conto de terror, mas o fato é que o Partido Democrata nasceu racista, apoiador de supremacistas brancos, defensor de impostos baixos e da pouca intervenção estatal na economia. Se estivéssemos em 1800 e pouquinho, sim, Donald Trump seria o candidato dos sonhos do Partido Democrata.
Mas duzentos anos não são duzentos dias. Nos anos 2000, o Partido Democrata fez história, em 2008, elegendo o primeiro presidente negro dos EUA, Barack Obama. Em 2016, lançou a primeira mulher com chance real de chegar à presidência e em 2020 os democratas têm uma mulher negra e descendente de indianos como candidata ao posto de vice-presidente.
Sim, os partidos mudam. E não há nenhuma dúvida: o Partido Democrata de hoje é um partido muito melhor que o Partido Democrata em sua origem.
O que a gente vai contar aqui é um pouco da história dessa bem sucedida autocrítica, ou seja, de como os democratas deixaram de ser o partido dos escravocratas para se tornar o lugar de progressistas como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez.
Em 1828, o maior partido dos EUA, o Democrata-Republicano (nada a ver com o Republicano que conhecemos hoje) estava fraturado: uma corrente, autointitulada democrata, fazia campanha para Andrew Jackson. Outra, a dos nacionais-republicanos – ou, como eles gostavam de se chamar, os antijackson, queria a reeleição do então presidente John Quincy Adams. E, sim, Jackson e Adams eram do mesmo partido.
Jackson, que havia perdido quatro anos antes para Adams em uma eleição decidida pelo Congresso foi à forra: venceu Adams de lavada. Com a vitória, seus apoiadores fundaram o que hoje conhecemos como o Partido Democrata.
Foi uma vitória marcante e com resultados que perduraram: dessa eleição até 1860, o partido só perdeu duas eleições.
A plataforma dos democratas de antanho: intervenção mínima do governo na economia e uma forte autonomia dos Estados da federação em relação ao governo da União, o governo federal. E, mais importante, o uso de escravos como mão de obra.
A escravidão era generalizada em especial no sul do país, onde as monoculturas dominavam a agricultura e os democratas eram muito fortes. A ascensão ao poder de um antiescravista como o republicano Abraham Lincoln, em 1861, fez com que os Estados do sul declarassem independência, iniciando a Guerra Civil Americana. O conflito durou de 1861 a 1865.
A guerra foi vencida pelo Norte e a escravidão, abolida. Isso reforçou ainda mais a posição dos democratas no Sul, já que defendiam que Washington interferisse o mínimo possível nos Estados. Entre o final da guerra, em 1865, e a eleição de Woodrow Wilson, em 1912, os democratas só conseguiram ocupar a Casa Branca por oito anos.
Neste período, no entanto, o partido começa a sofrer influências progressistas. Em três oportunidades, o deputado William Jennings Bryan tentou a presidência e perdeu. Além de candidato democrata, Bryan também foi o indicado à presidência pelo Partido do Povo, conhecido como Populista, agrário e de esquerda. Após a derrota de Bryan em 1896, o partido se fundiu aos democratas.
Em 1912, essa corrente mais progressista, que defendia medidas como o fim do trabalho infantil e maior intervenção do governo na economia, conseguiu impor seu candidato e vencer a eleição com Woodrow Wilson.
Ele implantou políticas como a regulação de grandes empresas – e chegou a indicar Bryan secretário de Estado, cargo responsável pela política externa nos Estados Unidos. A feroz oposição republicana, que passava a defender os interesses das grandes corporações, e os efeitos políticos da Primeira Guerra Mundial, minaram a popularidade de Wilson, e o partido perdeu a eleição de 1920 de lavada.
Nos anos 1920, os Estados Unidos contavam com um forte movimento operário, influenciado por uma tradição anarquista que vinha do século 19 e pela revolução russa. Não por acaso, o grande repórter da Revolução de 1917 é um comunista norte-americano, John Reed, autor do livro Dez dias que abalaram o mundo.
A crise da Bolsa de Nova York, em 1929, e o fracasso da resposta liberal do partido republicano, levaram, em 1932, o democrata Franklin Delano Roosevelt ao poder, com apoio, inclusive, de parte dos socialistas norte-americanos. Ele põe em prática, então, o New Deal, uma proposta de intervenção forte na economia, com o investimento em obras públicas e distribuição de renda para os desempregados.
O New Deal mudou fundamentalmente a economia norte-americana e levou os republicanos, definitivamente, para a defesa do estado mínimo. Roosevelt foi reeleito duas vezes e ficou no cargo até morrer, em 1945. Seu vice, Harry Truman – responsável pela decisão de lançar as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki na Segunda Guerra Mundial – assumiu e foi reeleito, garantindo uma sequência de 20 anos de democratas no poder.
Houve então dois mandatos do anticomunista Dwight Eisenhower, o Ike, e o partido democrata voltaria à Casa Branca ao ganhar as eleições de 1960 com John Kennedy.
Nesta época, a Guerra Fria escalava de maneira intensa e o anticomunismo era uma bandeira comum de democratas e republicanos. Três grandes acontecimentos marcaram o governo Kennedy: a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, em 1961, que terminou com vitória de Fidel Castro e humilhação para os norte-americanos; a construção do Muro de Berlim, em agosto do mesmo ano.
Em 1963, Kennedy foi assassinado. Seu vice, o texano Lyndon Johnson, assumiu o cargo. Nessa época, o movimento de direitos civis pelo fim da segregação racial nos Estados do Sul (que, lembre-se, ainda eram controlados em sua maioria pelos democratas) era bastante ativo.
Em uma vitória da ala mais progressista do partido, Johnson consegue aprovar, em 1964, uma nova lei de direitos civis, proibindo a discriminação com base em gênero, raça, sexo, religião ou origem. A lei desagradou justamente os eleitores que formavam a base social dos democratas em seu início: os brancos com pouca escolaridade do sul.
O movimento dos direitos civis e a lei aprovada por Johnson deram o empurrão final em um movimento que já tinha dado seus primeiros sinais: entre 1968 e 1988, com exceção de 1976, os democratas perderam sistematicamente os Estados do Sul ou para candidatos republicanos, ou para segregacionistas.
Em 1976, Jimmy Carter, até então governador do estado da Geórgia, venceu por pouco a eleição contra Gerald Ford, que havia assumido a presidência após a renúncia de Nixon no escândalo de Watergate. O fato de Carter ser do sul ajudou a reconfigurar o mapa eleitoral.
Carter fez um governo bastante progressista. Ele foi responsável, por exemplo, pelo acordo de paz de Camp David entre Egito e Israel. Carter também cobrou o respeito aos direitos humanos mundo afora.
Mas o democrata enfrentou um vendaval na economia e na área internacional. Carter governou durante o choque do petróleo dos anos 1970, o que desestabilizou a economia norte-americana e levou a inflação a dois dígitos no final da década. Sua atuação na crise de reféns do Irã, em que comandou uma operação frustrada para resgatar norte-americanos presos no país persa, fez sua popularidade despencar.
Em 1980, os republicanos lançam o ex-galã campeão da propaganda anticomunista Ronald Reagan à presidência. Reagan vence e adota um programa neoliberal, que reduz os gastos do governo em áreas sociais e os faz explodir na área militar. A crise soviética dos anos 1980 fortalece seu discurso, e ele elege seu sucessor, George Bush pai.
Bush tem de lidar com o descontrole de gastos e não se reelege. Em. 1992, vence a eleição o governador democrata do Arkansas, Bill Clinton.
Na era Clinton, a globalização se acelerou, o que traz repercussões políticas e econômicas até hoje. Apesar da alta popularidade, Clinton sofreu uma perseguição política incansável de um procurador, Ken Starr, e quase caiu em decorrência de um escândalo sexual.
Clinton entregou o cargo para o republicano George W. Bush, o Bush filho, ao final de dois mandatos.
Sem o voto branco do sul, que havia sido sua força desde o surgimento, os democratas passavam a depender, cada vez mais, do voto dos negros, dos latinos e dos imigrantes, que sofriam cada vez mais os efeitos das políticas de estado mínimo implantadas pelos republicanos desde Reagan.
Quando chegou a eleição de 2008, mesmo ano da pior crise econômica desde 1929, um carismático senador negro, de primeiro mandato, viu uma chance: com uma campanha cuja palavra central era “hope”, “esperança”, Barack Obama se tornou o primeiro presidente negro dos EUA. Em 20 de janeiro de 2009, Obama e seu vice, Joe Biden, tomaram posse.
Enquanto lidava com os efeitos da crise de 2008, Obama fez mudanças fundamentais na política externa do país – uma das mais notáveis veio no final de seu governo, na reaproximação com Cuba. A foto de Obama cumprimentando o então líder cubano Raúl Castro durante uma reunião de cúpula entrou para a história.
Mas Obama não foi exatamente uma maravilha. O país continuou envolvido em ocupações no Iraque e Afeganistão, apoiaram alguns dos piores episódios da “Primavera Árabe”, fortalecendo grupos reacionários na Líbia e no Egito e, pior de tudo, apoiando rebeldes sírios ligados à Al Qaeda na guerra civil no país. Também sob Obama, os Estados Unidos espionaram descaradamente a presidente Dilma Rousseff, fato revelado por Edward Snowden.
Obama ficou oito anos no cargo e, em 2016, sua antiga adversária nas primárias e ex-secretária de Estado Hillary Clinton parecia ser a favorita para garantir a candidatura democrata. E ela era a favorita, pelo menos do establishment do partido. Só faltava combinar com os russos – no caso, os eleitores.
O senador progressista de Vermont Bernie Sanders disputou a indicação com Hillary e mobilizou milhares de pessoas pelo país, simbolizando o desejo de renovação e crítica à direção do partido, fortemente ligada ao mercado financeiro e a grandes empresas.
Com Sanders, o Partido Democrata iria mais à esquerda. Com ele, a palavra socialismo – quase no sentido europeu, de social-democracia – deixava de ser um palavrão.
A direção do Partido Democrata manobrou forte, e Hillary acabou vencendo a disputa interna. Todas as pesquisas apontavam larga vantagem de Hillary, que enfrentava o empresário Donald Trump, representando a ultradireita do Partido Republicano. Contra a ultradireita, uma candidata de centro, com experiência gigantesca, branca, com forte trânsito entre eleitores negros e latinos… Hillary parecia imbatível.
Pelo menos, as pesquisas diziam isso. Faltou combinar com os eleitores.
Em uma campanha marcada por fake News, Trump triunfou. Venceu no Sul, como era de se esperar, mas também surpreendeu nos Estados do Norte que não votavam havia décadas em republicanos, como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin.
Com seu discurso falastrão, misógino e cheio de ódio, o empresário galvanizou a insatisfação dos trabalhadores brancos e de baixa escolaridade destas regiões industriais, muitos deles vivendo de subempregos depois que a globalização dos anos 1990 levou as fábricas embora.
Chega 2020 e os democratas têm a missão civilizatória de derrotar Trump. Sanders lançou-se novamente candidato, mas o comando político democrata novamente jogou pesado e forçou um candidato de centro, parecido com Hillary, só que homem: Joe Biden, ex-vice de Obama.
Como vice, ele escolheu uma de suas adversárias na primária, a senadora negra pela Califórnia Kamala Harris. Biden, branco, velho conhecido dos eleitores, é a esperança democrata de recuperar os Estados do norte perdidos em 2016 e, quem sabe, alguns do Sul.
E é assim que os democratas, em quase 200 anos, passaram de partido escravocrata ao partido que se pretende representante das “minorias”: mulheres, negros, latinos e comunidade LGBT.
Esses grupos serão suficientes para tirar a Casa Branca das mãos dos mais reacionários republicanos? Ou será que, na hora agá, vai faltar, nesse discurso, um pitada de classe social e do “socialismo” de Bernie Sanders?