Retomando a missão de escrever para essa coluna, trago notícias: o clima aqui não está para os fracos. A aridez, a homogeneidade, a submissão e o desamparo estão estampados nos muros das prisões domiciliares, enquanto nas mesas, a oferta é grande, porém exige escolhas responsáveis (e não estou falando sobre vegetarianismo. Quase ninguém tem tempo ($) e ofertas de consumo para se dar ao luxo de comer plantbased shit and organic local hype food)
Caro leitor,
Faz tempo que não escrevo aqui. Eu poderia escrever longos parágrafos sobre como tem sido a minha vida, fazendo parecer que estou me justificando pela longa ausência. Mas vou te poupar dessa, só porque sei que aí do seu lado também tem um monte de questões sendo postas à mesa e no fim a gente vai ter de engolir tudo. Ou é isso ou é morte por inanição.
Então vamos digerindo sem pressa. Cada qual no seu quadrado temporal. Agindo onde dá, quando dá, e, principalmente, se a ação condiz com a realidade que queremos criar.
Ferida a gente trata com água fresca e limão espremido, sem açúcar. Logo de manhã, em jejum. Mas também dá pra tratar com chocolate, brigadeiro, docinhos e refri. Se a medicina ocidental fosse mesmo libertadora, permitiria aos próprios pacientes a escolha das ferramentas de cura, oferecendo a eles a responsabilidade pelas escolhas. Escolher antes de agir, depois de analisar os prós e contras.
De toda forma, com medicina libertadora ou não, aqui na nossa mesa comunal, tudo está posto. Todas as armas, todos os remédios, todos os antídotos, todos os venenos. Basta uma alteração no olhar (afinal, comemos com os olhos, com a pele, com os ouvidos, com todos os sentidos) para decidirmos quais armas vamos usar. Quais escudos nos servem melhor. Qual o prato posto à mesa vai me oferecer a maior satisfação possível e o menor número de danos. Mesa posta é um convite para a diversão.
Estou de volta à Goiânia, capital de Goiás, depois de meses imersa em uma quarentena paulistana que, “meo”, me desculpem se pareço egoísta, foi maravilhosa. Pois é, a primeira fase da minha Quarentena Real Oficial 2020™ foi maravilhosa. Não tenho outra palavra para descrever. Só tenho a agradecer aos envolvidos. Que no caso, tratam-se de duas pessoas: eu e outra. Isolamento social. Essa coisa não existe. Afinal, está aí a maior oportunidade de nossas vidas, a de entrarmos em contato com a humanidade que existe dentro de nós mesmos. A gente nunca está só. Tem gente que acha que é deus, outros acham que é esquizofrenia. Tudo depende da alteração que você dá para o seu olhar (e os outros sentidos).
E aqui em Goiás eu só penso em comida. Sei que é para preencher o vazio existencial que me aplaca sempre que pouso nessa terra cada vez mais estéril, seca, empoeirada, quente e desértica. Nasci aqui. Passei os primeiros 24 anos da minha vida morando aqui. Antes disso, nunca tinha viajado para o exterior. Praia? Apenas três vezes em 24 anos.
Eu conheço o cerrado como a mim mesma. E olha que eu me conheço bem, hein. Faço terapia. Recomendo.
E sobre o cerrado, trago más notícias. O cerrado não está em processo de cura. Não está fazendo terapia. O cerrado pega fogo constantemente. E quem bota fogo é gente. Se pega fogo sozinho, é porque tem gente queimando cerrado há séculos. Você acha que Anhanguera e seus capangas fizeram o quê? Sim, eles tacaram fogo em tudo, inclusive na água. Quanto mais secura, mais chance de pegar fogo. Este é o ciclo da vida. Ou da morte, tanto faz. E quem bota fogo nele é a gente.
Existe uma possibilidade de fogo provocado por não-humanos, e ela é o raio. A descarga elétrica que acontece antes de uma chuva. Ou seja: se um raio cai numa árvore e ela começa a pegar fogo, a chuva que cai da nuvem pesada e eletrificada que gerou o raio apaga o fogo rapidinho. Pois é, a natureza sempre trabalha pela redução de danos.
No imaginário popular, cerrado é tipo savana. África e tal. Pois trago fatos: cerrado é floresta. Floresta densa, uma floresta tropical intermediária, entre os troncos grossos e antigos da Amazônia e os troncos finos e repletos de orquídeas e líquens da mata atlântica. Cerrado é vida abundante. Tem veado, onça, anta, jacaré, cobra e seriema. Uns bichos cada vez mais difíceis de serem vistos. Umas árvores cada vez mais retorcidas pelo fogo. Uma secura relativa do ar cada vez mais árida.
O cerrado está na UTI. Se a medicina ocidental fosse um pouco mais digna, as UTIs não seriam galpões herméticos com camas, pouco espaço, pouco conforto e iluminação artificial. Se a arquitetura ocidental fosse um pouco mais digna, teríamos construções maravilhosas, dessas que imaginávamos quando éramos crianças.
Quer dizer, eu imaginava. Não sei você, caro leitor. Desde criança, sou atraída pelo diferente. Gostava muito de encontrar casas diferentes, mas nunca encontrei nada na Vida Real™ que fosse tão lúdico quanto a minha imaginação – que perdura até hoje. Só que, na nossa sociedade ocidental e cada vez mais apropriada para o capitalismo vencer, o sonho da casa própria deixou de ser um espaço de diversão para dar lugar a um bloco de concreto cinza abafado com janelas pequenas, onde é possível surtar sem ser visto e escutado pelos vizinhos. Privacidade. Outra falácia neoliberal.
Wikimedia Commons
Estou de volta à Goiânia, capital de Goiás, depois de meses imersa em uma quarentena paulistana
Nos anos 1980, um político da região metropolitana, chamado Iris (que é casado com uma mulher também chamada Iris, veja só que case de sucesso para pautas sobre diversidade de gênero eles dariam. Porém, aqui é Goiás e na terra da monocultura isso nunca aconteceu), criou um projeto de habitação popular que o alavancou ao posto de chefão da política da capital goiana. O projeto chamava-se “mutirão da cidadania”. A diversão do velho Iris (naquela época ele já era velho – nada contra, apenas admiro a capacidade de insistência dele) era aparecer nas fotos com as mangas arregaçadas da camisa de linho branco e mangas curtas, trabalhando no mutirão da casa própria, que consistia basicamente em empilhar blocos de concreto com janelas basculantes para os The Sims goianos.
E assim foi estabelecida a arquitetura goiana. Que já era meio freak, com suas casas abafadas de corredores enormes, quartos quentes e porões de meio metro de altura, destinados aos escravos. Essas casas existem até hoje, basta visitar qualquer uma delas na cidade histórica de Goiás. Os quintais dessas casas parecem pequenas chácaras, de tão grandes e cheios de pés de frutas plantados pelos descendentes dos Anhangueras e seus capangas. Com a abolição, os porões desses casarões finalmente foram abandonados. No caso da minha família, tornou-se um depósito ideal para a coleção de revistas Playboy do meu avô. Com a abolição, os pretos e pobres construíram suas casas ao pé do morro da cidade, com arquitetura parecida com a dos colonizadores, porém com muito menos espaço. Ou seja: casas insuportavelmente quentes para o microclima quente e úmido da cidade, por causa da abundância de rios e por se situar no vale da Serra Dourada.
Com exceção da cidade de Goiás, que é tombada pela Unesco, ou seja, protegida por leis internacionais de ser destruída para dar lugar ao novo (aliás, uma das entidades mais arcaicas do estado – a família Caiado – é descendente desses capangas do Anhanguera), a arquitetura goiana evoluiu: além das casas quadradas de bloco de concreto e janelas pequenas, os quintais são cimentados e tudo isso é cercado por muros altos, ricamente decorados com concertina e cercas elétricas. Estou falando também das cidades do interior, onde o medo instaurado por programas pseudojornalísticos como Cidade Alerta, Aqui Agora e afins, pega direitinho na antena parabólica e também no 3G.
O goianiense médio (ou seja, o morador de Goiânia) é um ser que vive em um deserto plano e sem contato com a terra, porque ela recebeu uma boa camada de cimento ou asfalto. O céu virou uma janelinha, possível de observar quando viramos os olhos 90° em direção ao alto da cabeça. O goianiense médio vive em prisões domiciliares. Resta o quê, então? Beber. E comer, também.
A oferta de distribuidoras é generalizada. Qualquer biboca no meio do nada tem uma loja que vende exclusivamente bebidas alcoólicas, industrializadas e cigarros. Às vezes, uma ou outra acaba vendendo produtos de mercadinho, como bolachas e leite. Aqui em Goiás a gente apelidou esses estabelecimentos de “distriba”. É comum as pessoas se encontrarem na “distriba” no fim da tarde para tomar uma cerveja, sempre gelada. Véi, que delícia. Informalidade, que chama. Fuga, também.
A comida goiana também é uma delícia. Cada vez mais pobre, mas, ainda sim, deliciosa. Somos criativos na cozinha. Somos muito criativos. Eu amo a criatividade gastronômica da minha terra seca. Mesmo quando não tem fartura, tem algo para comer. Herança dos colonizadores, aqueles tropeiros que chegaram aqui tropeçando na própria fome. Com um toque do que restou da culinária indígena, com seus peixes de água doce enrolados nas palhas que também serviam de telhado, e assados na brasa da fogueira. Também com o toque dos dedos africanos e as suas pimentas que levantam até gente pálida. Anhanguera e seus capangas deveriam ser taurinos, sei lá. Tocaram o terror, o fogo, e fizeram uma bagunça tão grande na cozinha que a gente também teve de engolir tudo isso que eles trouxeram. A gente engole com satisfação, porque não tem coisa melhor do que arroz-de-puta-rica.
E o pequi, hein? Está chegando a época. Basta chover. O algoritmo é ótimo: foi só pousar aqui que meus amigos goianos começaram a aparecer mais nos feeds e as notícias goianas, também. Li uma notícia de que a chuva chegou em Jataí. Para a alegria dos porcos que queimaram os pastos para plantar soja.
Pois bem. Daqui a pouco chega a primavera e, tomara, as chuvas. Porém a gente, que busca informação através da ciência, que usa uma estrutura de pensamento lógico com menos riscos de criar ilusões, sabe que o Aquecimento Global Real Oficial™ vai promover temporadas de extremos: não vai ser só chuva, vai ser temporal.
Imagina o que vai acontecer nessa cidade cimentada da cabeça aos pés. A mesma coisa que acontece em Duque de Caxias, cidade pobre da região metropolitana do Rio de Janeiro, todos os anos. Alagamento.
Pois é, caro leitor. Daqui pra frente a coisa vai só degringolar. Então vamos cuidar da mesa. Da casa. Do corpo. Da família. Dos queridos. O resto é o resto. A gente vai até onde dá. Sem pressa, sem pressão.
Aproveito para contar uma novidade: juntei um grupo de amigas e vamos lançar em breve o corpalavra.com. Sabe como é: a gente precisa botar paixão nas coisas que a gente faz. Inclusive no trabalho. Inclusive nas relações com os nossos “quarenteeners”. Senão a vida fica sem “tempêrro”, como diz aquele chef de cozinha francês e carnavalesco.
Prometo voltar mais aqui. Quem sabe até antes da primeira colheita do pequi. Daqui a pouco é eleições, né. Boulos e Erundina contra Bolsodoria e Russominions? Com certeza estarei nessa tour.