É atribuída ao escritor norte-americano Kurt Vonnegut Jr. (1922-2007) uma célebre recomendação sobre o jogo de aparência a que determinados homens se submetem. “Cuidado com o que você finge ser”, dizia Vonnegut. “Porque, no fim das contas, você se torna o que finge ser.”
Primeiro presidente do Brasil a não vencer uma disputa à reeleição, Jair Bolsonaro (PL) se iguala ao ex-presidente norte-americano Donald Trump, de quem é admirador declarado e que tampouco se reelegeu à Casa Branca. Embalados como outsiders, tinham chegado ao poder, ambos, no curso de uma inédita onda de extrema-direita com apelo popular. Foram derrotados, entre outras razões, porque negligenciaram o enfrentamento à pandemia de covid-19 e porque não deram respostas à altura à crise econômica.
Em 8 de setembro, a menos de um mês do primeiro turno das eleições no Brasil, Trump foi às suas redes sociais para manifestar apoio à sua versão tupiniquim. “O presidente Jair Bolsonaro do Brasil, o ‘Trump dos Trópicos”, como é carinhosamente chamado, fez um GRANDE trabalho para o maravilhoso povo do Brasil. Quando eu era presidente dos EUA, não havia outro líder de país que me ligasse mais do que Jair”, tuitou Trump. “O presidente Bolsonaro ama o Brasil acima de tudo. Ele é um homem maravilhoso, e tem meu Endosso Completo e Total!!!”
No mesmo dia, a tradicional revista britânica The Economist ressaltava, em matéria de capa, que o presidente do Brasil se parecia com Trump no pior sentido possível – o de governante autoritário, de costas para o Estado Democrático de Direito. “Ganhando ou perdendo, Jair Bolsonaro representa uma ameaça à democracia brasileira”, afirmou The Economist.
Segundo a revista, ante a derrota, Bolsonaro poderia “incitar uma insurreição, talvez como a que a América sofreu quando uma multidão de apoiadores de Donald Trump invadiu o Capitólio em 6 de janeiro de 2021 – ou talvez até pior”. Daí o título sugestivo da reportagem: “The man who would be Trump” (“O homem que seria Trump”).
Em Fogo e Fúria, biografia não autorizada escrita pelo jornalista Michael Wolff e lançada em 2018, sobram revelações das mais desconfortáveis para o líder norte-americano. Uma delas aponta que Trump jamais acreditou sinceramente no projeto presidencial, nem mesmo quando superou com ampla vantagem seus concorrentes nas primárias do Partido Republicano.
Ele chegou à eleição de 8 de novembro de 2016 com a convicção de que seria derrotado, seja por ser “o pior candidato da história política moderna”; seja pela popularidade do então presidente Barack Obama – que apoiava a candidata democrata, Hillary Clinton –; seja porque a imensa maioria das pesquisas previa seu insucesso. Uma vez vencido, Trump poderia voltar à vida de magnata e apresentador de TV em Nova York.
“Até as últimas semanas da corrida eleitoral, o quartel-general da campanha de Trump (a Trump Tower) era um lugar desanimado”, escreve Wolff. Na visão da coordenadora da campanha, Kellyanne Conway, o candidato republicado “talvez pudesse segurar uma derrota por menos de seis pontos percentuais, o que seria na verdade uma vitória substancial”.
Para acalmar os seguidores ufanistas, havia, de antemão, uma denúncia: “a eleição tinha sido roubada!”. Segundo a biografia, “Trump e seu minúsculo bando de asseclas de campanha estavam preparados para perder com fogo e fúria. Não estavam preparados para ganhar”.
Mas sobreveio a inacreditável vitória. Trump “parecia ter visto um fantasma”, afirmou seu filho Don Jr. Num “intervalo de pouco mais de uma hora”, conforme o relato do guru Steve Bannon, “um Trump atordoado se metamorfoseou em um Trump descrente e logo em um Trump apavorado. Mas a transformação final ainda estava por vir: de repente, Donald Trump se tornou um homem convencido de que merecia ser presidente dos Estados Unidos e de que era plenamente capaz de exercer o cargo”.
Wikicommons
Entre derrota de Jair Bolsonaro pelo Lula nas urnas do último domingo (30/10), é possível traçar paralelos entre candidato derrotado e Trump
Quatro anos depois, ao disputar a reeleição, o presidente norte-americano foi derrotado por Joe Biden, do Partido Democrata – e, enfim, pôs em prática o plano de contestar o pleito. Desta vez, eram outros os humores e caprichos de Trump. Ao contrário do que ocorrera em 2016, ele estava certo de que seria vencedor em 2020. Ganhara uma autoconfiança quase irracional. Tudo que era blefe e blague – como a descrença em pesquisas – virara certeza em sua cabeça.
Voltemos ao Brasil e ao “Trump dos Trópicos”. Neste domingo (30/10), com uma vantagem de pouco mais de 2,1 milhões de votos – ou 1,8 ponto percentual de votos válidos –, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) derrotou Bolsonaro e pôs fim à aventura ultradireitista no Planalto. Passadas 36 horas do anúncio oficial da vitória do ex-presidente, ainda não sabemos o que o atual mandatário fará.
Em silêncio até o momento, Bolsonaro não deu um único pronunciamento público, não postou nada em suas redes, nem sequer fez o tradicional telefonema de cortesia a Lula. Na noite da derrota, um ajudante-de-ordens informou que o presidente foi dormir mais cedo – as luzes no Palácio da Alvorada, a residência oficial, efetivamente estavam apagadas às 22 horas. Já nesta segunda-feira (31/10), Bolsonaro permaneceu longe dos holofotes, permanecendo em reuniões na Alvorada e no Palácio do Planalto.
Mesmo o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), seu primogênito – o filho “01” –, em geral falastrão, só comentou o resultado das eleições no fim da tarde desta segunda. Para os padrões do bolsonarismo, o tom, conquanto inconclusivo, foi moderado. “Obrigado a cada um que nos ajudou a resgatar o patriotismo, que orou, rezou, foi para as ruas, deu seu suor pelo país que está dando certo e deu a Bolsonaro a maior votação de sua vida!”, tuitou. “Vamos erguer a cabeça e não vamos desistir do nosso Brasil!”
Poucos minutos depois, Flávio acrescentou: “Pai, estou contigo pro que der e vier!”. O post foi interpretado em Brasília como um alerta a aliados ávidos a desembarcarem logo do bolsonarismo mais radical. É o caso do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (PL-SP), eleito deputado federal em 2 de outubro. Ao UOL, nesta segunda, Salles usou uma frase que irritou essa ala mais fiel ao presidente: “Não há o que espernear”.
Aliados mais próximos, com o apoio da equipe de marketing da campanha, ofereceram a Bolsonaro o rascunho de um discurso para, segundo a Folha de S.Paulo, “manifestar respeito ao regime democrático”, sem “deixar os militantes bolsonaristas órfãos”. O presidente reconheceria o resultado eleitoral, mas reclamaria de supostas “injustiças” sofridas na luta pela reeleição.
Se queria ou não queria fingir ser Trump, fato é que Bolsonaro, em 2018, estava menos confiante na vitória do que seu entorno. Ao fim do primeiro turno, quando a apuração lhe dava uma contundente vantagem, Bolsonaro teve uma espécie de estupefação. Embora imaginasse que sua rejeição era um impeditivo para superar qualquer adversário num eventual segundo, ele se dera conta, de uma hora para outra, de que podia até vencer em um único turno.
Em 2022, seu sentimento se inverteu. Apesar de ter moldado o discurso e a ação no segundo turno, atendendo a apelos de seus auxiliares, Bolsonaro via aliados abandonarem o barco, uns de forma explícita, outros de modo discreto. Mas ele próprio, tal como Trump, alardeava na reta final que a reeleição era inevitável, ostentando uma confiança incomum em sua candidatura.
Por ora, Bolsonaro não questionou as urnas eletrônicas ou a vitória de Lula. Quem esteve com o presidente desde domingo usa palavras como “triste”, “abalado”, “cabisbaixo” e “perdido” para descrevê-lo no pós-derrota. Setores do bolsonarismo tentam o golpe, mas é cada vez mais improvável que essa opção prospere.
Antes de tentar tumultuar o País, Bolsonaro precisa se recuperar psicologicamente. O “Trump dos Trópicos” talvez esteja mais para aquela moça da música que “brincava de princesa” e “acostumou na fantasia”. Seus delírios têm data para acabar: 31 de dezembro, o último dia do mandato. Até lá, esperamos que Bolsonaro cumprimente Lula – ou ao menos reconheça que sua própria fantasia acabou.