Será disputada nesta quarta-feira (14/12) a última partida com ingredientes políticos desta Copa do Mundo no Catar. As seleções do Marrocos e da França se enfrentarão a partir das 16h (horário de Brasília) no Estádio Al Bayt, na cidade de Al-Khor, em confronto válido pela semifinal, ou seja, quem ganhar garante vaga para enfrentar a Argentina na grande decisão do torneio.
Fora de campo, Marrocos e França possuem décadas de história em comum e um presente que reflete as luzes e sombras, talvez mais luzes que sombras, produzidas em todas essas décadas.
Durante 44 anos, entre 1912 e 1956, o Marrocos foi um protetorado da França, a partir de um tratado que encerrou um processo de décadas de conflitos políticos no país africano – conflitos que não foram provocados pelos franceses, mas alimentados por esses que viam na crise marroquina uma forma de impor seus interesses na região.
Esse período só terminou após a Segunda Guerra Mundial, mas suas consequências ainda são percebidas: existem uma grande comunidade marroquina vivendo nas principais cidades francesas, a qual é alvo de hostilidades e preconceitos.
Desde setembro de 2021, Paris impôs uma nova lei migratória que resultou em uma redução na concessão de vistos a pessoas dos países do Magrebe, entre eles o Marrocos. A medida, segundo a imprensa francesa, é uma resposta à relutância das autoridades consulares destes países em readmitir os seus imigrantes em solo francês.
Segundo a jornalista marroquina Lamia Oualalou, que foi membro da equipe fundadora de Opera Mundi, essa situação é uma das principais problemáticas atuais das relações entre os países. “Um cidadão do Marrocos que deseja ir à Europa encontra muito mais dificuldades agora, tanto na Espanha quanto na França, e nesse segundo caso é devido a essa lei de 2021”, comenta em entrevista à reportagem.
Ademais, a crescente migração africana para a Europa, que encontra no território marroquino uma de suas vias naturais, também acaba sendo freada pelas novas legislações dos países do sul europeu, o que acaba aumentando o número desses imigrantes que precisam encontrar alternativas para suas vidas no próprio Marrocos.
“Hoje em dia é comum você ver no Marrocos bares e restaurantes com garçons de Senegal, ou vendedores ambulantes da Costa do Marfim, ou trabalhadores de um pequeno comércio que são de países da África subsaariana. Todos eles com o objetivo de chegar na Europa, mas que encontraram uma barreira ao tentar cruzar pra o outro lado, então acabaram ficando, e isso é um problema social no Marrocos, que não é um país rico, é um país pobre, com poucas oportunidades”, analisa Oualalou.
Para entender como se chegou a esse cenário, é preciso conhecer com mais detalhes uma história que poderia começar no início do Século XX.
44 anos de protetorado
Em 1912, o sultão marroquino Abdelhafid pediu ajuda à França para repelir possíveis ataques das forças militares comandadas pelo xeque Maa el Ainin.
O pedido visava encerrar um período de décadas de conflitos entre diferentes grupos de poder no país, às vezes entre membros da mesma família. Por exemplo, o próprio Abdehafid chegou ao trono traindo seu irmão, Abdelaziz, a quem ele acusava [ironicamente] de ser permissivo demais com a penetração colonial francesa em determinadas localidades.
Desse pedido nasce o Tratado de Fez, pelo qual o Marrocos se tornou um protetorado da França. Um protetorado é um território autônomo que é defendido diplomática ou militarmente (ou ambas as coisas) contra terceiros por um Estado ou entidade mais forte. Entretanto, essa proteção sempre tem um preço: o país que aceita essa condição também deve assumir obrigações específicas, que variam dependendo da natureza de seu relacionamento.
No caso desse protetorado, as condições incluíam entregar status de autoridades locais a funcionários civis e militares franceses, os quais costumavam favorecer os colonos em disputas territoriais ou comerciais.
Paola Orlovas
Fora de campo, Marrocos e França possuem décadas de história em comum e um presente que reflete as luzes e sombras
O governo da França também passou a controlar a exploração de recursos naturais do país africano. Com o tempo, alguns movimentos marroquinos começaram a considerar o preço dessa proteção alto demais, entre os quais se destaca o Partido Istiqlal, ou Partido da Independência, fundado em 1943 e que seria um dos principais grupos envolvidos na luta pela independência do Marrocos.
Essa luta duraria mais 13 ano. A Segunda Guerra Mundial enfraqueceu a França militarmente, mas é somente em 1956 que os grupos independentistas marroquinos conseguem transformar essa vantagem em uma vitória da sua causa.
Anos depois, o conservador Partido Istiqlal sofre uma cisão e dela nasce a União Nacional de Forças Populares (UNFP) do Marrocos, setor também nacionalista, mas com ideias mais progressistas.
As relações com a França depois da independência continuaram conflitivas, especialmente pelo fato de que o Marrocos apoiou a Argélia em sua luta independentista, em um processo que, diferente do marroquino, incluiu uma guerra que durou oito anos, entre 1954 e 1962.
Relações atuais
A relação entre Marrocos e França na atualidade podem ser consideradas boas, se excluído o conflito pelos vistos iniciado em 2021. O país europeu é o principal parceiro comercial da nação do noroeste da África também seu credor e investidor estrangeiro, situação que não mudou após nova política migratória do presidente Emmanuel Macron.
Além disso, o Marrocos é visto pela França e pelos demais países do Ocidente como um dos países árabes que mantém os melhores níveis de direitos civis para mulheres e comunidades LGBTIA+.
À reportagem, Oualalou disse que o Marrocos “soube reagir às primaveras árabes da década passada se antecipando aos possíveis conflitos em seu território e se abrindo uma legislação com mais direitos, o que não o torna uma sociedade livre de problemas. O machismo, a homofobia e outros dilemas morais continuam muito presentes, mas menos que em outras nações árabes, e isso é bem visto pelos países ocidentais”.
Jogadores descendentes
Os elencos das duas equipes são uma consequência das relações histórias entres os países. Nesta Copa do Mundo, a França não possui jogadores de descendência marroquina em sua delegação, mas em edições anteriores houve casos como Adil Rami, Younes Kaboul e Mehdi Benatia.
Porém, o caso de Benatia serve de espelho para um fenômeno mais comum, que é o dos jogadores nascidos na França, mas de família marroquina, que começam suas carreiras atuando em seleções de base francesas e na vida adulta decidem atuar pela seleção do Marrocos.
Benatia chegou a ser considerado um dos melhores zagueiros do mundo na década passada. Não está no elenco deste Marrocos que chegou à semifinal do mundial, mas esteve no elenco que disputou a Copa de 2018, na Rússia, e era o emblema do time que foi eliminada já na fase de grupos, após derrotas para Portugal e Irã e um empate contra a Espanha.
Apesar de sua ausência, o Marrocos possui dois jogadores que nasceram em território francês: o defensor Romain Saiss e o atacante Sofiane Boufal.
Para a jornalista, diferentemente do que se possa pensar, não é necessariamente o sentimento de amor pelo Marrocos que faz com que esses atletas optem por jogar pela seleção do que pelo país onde eles nasceram.
“Cada caso é um caso, e em alguns deles pode até haver essa situação, mas em outros creio que a maioria são de jogadores que encontram no time marroquino uma oportunidade mais fácil para chegar a uma seleção e à oportunidade de disputar grandes competições, como a Copa do Mundo. No caso de jogar pela França, onde a concorrência é muito maior, não só com os franceses, mas também com jogadores de outras comunidades, de outras ex-colônias francesas na África, que também são jogadores talentosos”, explicou a correspondente.