São quase 15 mil mortos e pelo menos 35 mil feridos na Faixa de Gaza. A guerra entre o Estado de Israel e o povo palestino já chega a quase 50 dias. Iniciado em 7 de outubro, com a primeira ofensiva do Hamas contra o território israelense, o conflito tem se intensificado com um reforço das operações militares no território palestino. Os ataques comandados por Tel Aviv para “eliminar o Hamas” se desenvolveram por incursões terrestres, aéreas e marítimas ao longo dos dias, tomando maiores proporções e atentando contra a vida de milhares de civis.
Sem sinal algum de interesse por um cessar-fogo definitivo e o agravamento do cenário em níveis frenéticos, o mundo passou a lotar as ruas de bandeiras palestinas a favor dos direitos humanos e contra a conduta de Israel sobre a Faixa de Gaza. E, à medida que o número de vítimas cresce, a própria comunidade judaica se levanta para criticar “o sistema político de apartheid em Israel”:
“Uma estrutura que institucionalmente promove a privação sistemática e severa dos direitos humanos fundamentais dos palestinos com base em sua identidade”, definiu o grupo Vozes Judaicas para a Libertação a Opera Mundi, deixando claro que “as instituições e narrativas judaicas sionistas não falam em nome de todos os judeus”.
Em um mês, os registros de mortes em Gaza mostra que 75% das vítimas são crianças, mulheres e idosos. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em três semanas, o número de crianças palestinas mortas já ultrapassou o anual de crianças mortas nas zonas de conflito do mundo desde 2019. A falta de recursos básicos, como água potável, alimento, eletricidade e combustível também tem prejudicado os civis que ali permanecem. Serviços essenciais como hospitais têm entrado em colapso por falta de energia e materiais para que as operações médicas possam prosseguir. Todos esses problemas são reconhecidos por grande parte da comunidade judia, que repudia essas situações produzidas pela ação do Estado de Israel .
Coletivos judaicos a favor do povo palestino
Casos de antissemitismo, assim como de islamofobia, têm crescido ao redor do mundo, devido ao recente conflito. Porém, alguns coletivos judaicos que se solidarizam com o povo palestino também têm sofrido ataques, sendo acusados de “traidores” pela própria comunidade, por se posicionarem publicamente contra a narrativa hegemônica. Essas ameaças desestimulam os judeus de se manifestarem de forma mais contundente, por medo de perseguição, rompimento de relações sociais e familiares.
No entanto, quem resiste ao silenciamento ressalta a importância de se posicionar para além da identidade: para defender os valores judaicos e entender que a sua presença incentiva mais judeus a lutarem “contra o genocídio que vem acontecendo nessas últimas semanas e a toda a violência imposta historicamente há tantas décadas”.
É o que explica o Vozes Judaicas por Libertação, grupo que vem sendo construído há quase 10 anos desde o ato realizado em 2014, em frente ao consulado de Israel em São Paulo, como crítica ao ataque israelense na Faixa de Gaza. O coletivo independente trabalha junto com organizações de direitos humanos nos territórios palestinos ocupados e no envolvimento da FFIIPP-Brasil.
Os membros do Vozes Judaicas por Libertação, que estão presentes em todos os atos de solidariedade ao povo palestino em São Paulo, se entendem como judeus não sionistas, que rompem e confrontam com a ideologia do sionismo:
“A importância da manifestação desse movimento hoje é a falta de discursos judaicos conscientes no Brasil sobre os efeitos da colonização israelense, e que pratique sua solidariedade radical com o povo palestino. A construção de uma identidade judaica condicionada ao etnonacionalismo sufocou, e segue sufocando outras formas de expressão da identidade judaica, e as instituições e narrativas judaicas sionistas não falam em nome de todos os judeus”, explica o coletivo a Opera Mundi, reforçando que criticar o sistema de apartheid em Israel não significa a discriminação contra os judeus, o que configuraria o antissemitismo.
“É sim importante enfatizar que vemos um aumento de manifestações antissemitas, mas também vemos uma instrumentalização do antissemitismo para invisibilizar a violência que ocorre hoje na Faixa de Gaza. Acreditamos que a brutalidade dos ataques em 7 de outubro não pode ser usada como justificativa para a continuidade de um projeto de limpeza étnica. A violência é uma realidade vivenciada pelos palestinos há 75 anos. Se não reconhecermos que as estruturas que permitem que o Estado de Israel pratique um regime de apartheid em nome de uma maioria demográfica judaica, e a história de colonização, deslocamentos forçados, restrições de movimento e confisco de terras são parte de toda a violência que emerge, dificilmente conseguiremos interromper e transformar estruturalmente o que vem acontecendo na região”, esclarece o grupo judaico.
“Genocídio” é a forma como o Vozes Judaicas por Libertação se refere à conduta de Tel Aviv contra os palestinos, deixando claro que as manifestações capacitam compreensão às pessoas sobre as raízes históricas da violência na Faixa de Gaza. O combate à injustiça sobre o povo palestino, que tem crescido pelas ruas do mundo, parte pelo entendimento de que, se a militarização dos territórios acontece de forma internacional – financiada principalmente pelos Estados Unidos a Israel – é necessária também a internacionalização das lutas, com o objetivo de pressionar para o fim do genocídio no enclave palestino.
Instragram/Débora Bloch
Celebridades e coletivos da comunidade judaica se posicionam contra as ações de Israel na Faixa de Gaza
“Defendemos e reivindicamos o cessar-fogo imediato, o fim do apartheid e da ocupação militar nos territórios palestinos ocupados e a interrupção dos acordos militares entre Brasil e Israel”, afirmam os membros do coletivo, exigindo também que o governo brasileiro pratique sanções, bloqueios e desinvestimentos em empresas denunciadas como investidoras da estrutura militar de Tel Aviv.
É um “processo urgente” reconhecer, de forma ética, que o Estado de Israel pratica um regime de apartheid e que o sionismo é uma política que reforça essa estrutura, segundo o Vozes Judaicas por Libertação. Para isso, é necessário um trabalho que dialogue entre as maiores organizações de direitos humanos como Human Rights Watch, Anistia Internacional e BetSelem (organização israelense). O coletivo entende que a reeducação pode ser “dolorosa” uma vez que os projetos pedagógicos sionistas e a propaganda israelense oferecem uma narrativa que está impregnada, em muitos casos, na formação, socialização e identificação das comunidades judaicas, dificultando a capacidade dos judeus de questionarem aspectos da religião.
“É um processo de reeducação essencial, baseado em uma nova ética, para que uma compreensão outra de segurança para os judeus possa ser feita, e que esta co-dependa da segurança do povo palestino e possa garantir liberdade e justiça para todos”, conclui o Vozes Judaicas por Libertação.
Atores brasileiros e judeus contra Israel
Por meio da plataforma Instagram, Matheus Solano ressaltou ter “orgulho de fazer parte de um povo sobrevivente”, mas considerou a questão Israel-Palestina “muito mais complexa”, repudiando as ações do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu na guerra que já matou mais de 9 mil pessoas em Gaza:
“[…] Quero esclarecer que sou contra o terrorismo de onde quer que ele venha e acho que Israel e os judeus pelo mundo deviam estar a frente na busca por soluções pacíficas, disposto mais a ceder e a dialogar do que a ditar soluções e marcar terreno (afinal hoje o judeu ocupa altíssimos escalões em todas as esferas do mundo ocidental).
O presidente Benjamin Netanyahu NÃO ME REPRESENTA e nem a nenhum outro judeu que quer a paz.
Sonho com o dia em que o judeu defenda a paz acima da necessidade de um território, que entenda que “Israel” está onde quer que estivermos e que a força deste povo vem de dentro das convicções hospitaleiras que aprendemos com a Torá”
Após a publicação, o ator foi alvo de críticas por parte de outros judeus que defendem a conduta israelense, entre figuras públicas e internautas. “Aproveite a sua ‘fama’ para acrescentar e não para se promover” disse um. “Que triste ver um judeu sem o mínimo de consciência do que se trata essa guerra”, lamentou outra internauta. “Depois dessa sua linda foto postada e desse texto… Passa pela mesma cerca na qual eles [Hamas] invadiram e vá abraçar um deles… Você não vai né?!” ironizou outra.
Débora Bloch: ‘Cessar-fogo, já’
A atriz Débora Bloch também foi atacada nas redes sociais após uma postagem, pelo Instagram, defendendo o cessar-fogo na Faixa de Gaza.
Bloch, que é judia, compartilhou as frases “Não em meu nome” e “Cessar-fogo já!”, sendo esta última um pedido negado pelo premiê israelense contra uma maioria da comunidade internacional, antes mesmo de comandar uma força-tarefa para invadir a Faixa de Gaza “por terra”.
Entre os comentários, alguns judeus criticam a atriz. “Que decepção” diz um internauta, enquanto outra usuária questiona “Quem seria você para achar que alguém está falando em seu nome?”.
Rabinos contra o sionismo
Já nos Estados Unidos, principal nação apoiadora de Israel, um grupo de ativistas judeus protestou no Congresso para pedir um cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza. Em 18 de outubro, uma manifestação contou com a presença de aproximadamente 500 pessoas, sendo lideradas por 25 rabinos: 300 acabaram detidos no dia.
Na plataforma X (antigo Twitter), a 'A Voz Judaica pela Paz' (Jewish Voice for Peace), que se descreve como a maior organização judaica progressista e antissionista do mundo, reforçou a voz de resistência contra os opositores: “enquanto 500 judeus, rabinos e descendentes de sobreviventes do Holocausto gritam 'Deixe a Gaza viver' e são presos lá dentro, uma multidão de 10 mil pessoas canta do lado de fora. Não vamos parar até que as nossas exigências de cessar-fogo sejam satisfeitas!”
While 500 Jews, rabbis, and descendants of Holocaust survivors chant “Let Gaza live” and get arrested inside, a crowd of 10k sings outside.
We won’t stop until our demands of a ceasefire are met! pic.twitter.com/x9k0EPx4JS
— Jewish Voice for Peace (@jvplive) October 18, 2023
A ativista Liv Kunins-Berkowitz, coordenadora de mídia do grupo, afirmou:
“Estamos orgulhosos do povo judeu solidário com os palestinos que exigem um cessar-fogo imediato. Um genocídio está em andamento e todos precisam saber.”
Dez dias depois, em 28 de outubro, milhares de judeus – entre rabinos, autoridades eleitas e celebridades – novamente tomaram a Estação Grand Central, em Nova York, para mais um protesto pedindo por um cessar-fogo. No entanto, novamente 400 manifestantes acabaram detidos.
'Recusamos permitir que um genocídio seja feito em nossos nomes', reforçou o grupo 'A Voz Judaica pela Paz'.