“Fico pensando que ainda estamos em 6 de outubro, estou dormindo e estou vivendo um pesadelo que vai acabar. Eu juro, não consigo acreditar em nada do que está acontecendo”. Mohammed Imad está no escuro. Esse farmacêutico palestino atende a chamada do El Salto na terça-feira, 13 de fevereiro, driblando os problemas de conexão, em um pequeno apartamento onde vivem 13 pessoas. Ele morava no norte de Gaza, mas sua casa foi destruída e ele agora está refugiado no sul, em Rafah, onde 1,5 milhão de pessoas estão amontoadas onde antes viviam 300 mil.
Imad descreve uma paisagem coberta de barracas e longas filas de palestinos em busca de suprimentos. Eles fugiram para lá empurrados pelo exército israelense no que era considerado um local seguro, mas o governo de Netanyahu iniciou uma ofensiva contra essa região que pode ter consequências catastróficas, como alertam as Nações Unidas. “Estamos sendo bombardeados há duas noites. Quase não creio que estamos vivos. Espero que tudo isso acabe”, diz ele.
“Não estamos morrendo apenas por causa dos bombardeios”, completa ele com firmeza. “Há diversos modos de morrer aqui na Faixa de Gaza. O genocídio não é cometido apenas com bombas.” Além das bombas, os palestinos enfrentam a escassez de medicamentos, outra maneira dos doentes crônicos terem uma morte lenta. “Sou farmacêutico. Tenho muitos conhecidos, parentes e vizinhos que, quando precisam de medicamentos, me chamam. Essas pessoas têm doenças crônicas. Eu lhes digo que não posso conseguí-los porque não há nenhum. E dias depois vejo no noticiário que essa pessoa que me ligou para pedir um remédio já morreu porque não tomou o remédio”, diz ele em um espanhol perfeito, que aprendeu na Venezuela graças a uma bolsa de estudos para estudar medicina.
Durante o atual massacre, os israelenses têm feito os hospitais de alvo. A ofensiva contra os centros de saúde no norte já está sendo replicada em toda a Faixa de Gaza. De acordo com dados da OMS de 24 de janeiro, apenas sete dos doze hospitais do sul ainda estão parcialmente operacionais. A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) denunciou que os dois maiores hospitais, o Hospital Nasser e o Hospital Europeu de Gaza, estão atualmente inacessíveis devido aos ataques e às ordens de evacuação, deixando a população sem opções de tratamento no caso de um grande fluxo de feridos de guerra. Na quarta-feira, 14 de fevereiro, conforme relatado pelo Ministério da Saúde palestino na Faixa de Gaza, três cidadãos foram mortos e dez outros feridos dentro do Complexo Médico Nasser por tiros de um franco-atirador israelense.
“A vida das pessoas está em perigo devido à falta de assistência médica. Com o Hospital Nasser e o Hospital Europeu em Gaza quase inacessíveis, não há mais sistema de saúde em Gaza”, diz Guillemette Thomas, coordenadora médica dos MSF nos Territórios Palestinos Ocupados. “Esses ataques sistemáticos à saúde são inaceitáveis e devem cessar agora para que os feridos possam receber os cuidados de que necessitam. Todo o sistema de saúde foi inutilizado”, diz Thomas.
Não há mais gaze nos hospitais, e elas precisam ser reutilizadas pelos pacientes, como denunciam os trabalhadores humanitários da Médicos Sem Fronteiras. Rami, enfermeiro do Médicos Sem Fronteiras preso no Hospital Nasser, explica que, durante uma emergência com 50 feridos e cinco mortos, “perguntei aos poucos funcionários que restaram se poderiam fornecer gaze abdominal. Eles me disseram que não tinham mais nenhuma, que as que tinham já estavam sendo usadas em vários pacientes”. “Eles a usam uma vez, depois espremem o sangue, lavam-na, esterilizam-na e a reutilizam em outra pessoa ferida”, acrescenta Rami. “Essa é a situação na sala de cirurgia do Nasser, você pode imaginar?”
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Um homem tenta contrabandear um animal por meio de um túnel subterrâneo nos Territórios Palestinos Ocupados, em 2008
Sair de Rafah
“No momento, não há mais trabalho. Havia muitas farmácias, mas foram destruídas. Não há nada a fazer a não ser escapar da morte”, explica Imad, sussurrando. Sua cabeça só consegue maquinar planos para encontrar um lugar seguro agora que Israel iniciou sua ofensiva em Rafah e as bombas continuam caindo. Mas ele sempre chega à mesma conclusão. “Não há uma zona segura em Gaza”, denuncia.
Na segunda-feira, 12 de fevereiro, ataques aéreos maciços começaram em Rafah, deixando 100 pessoas mortas. A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) informa que as pessoas estão se deslocando novamente, depois de chegarem ao suposto único lugar seguro da Faixa, e estão fugindo para áreas no centro da região. “O êxodo continua à medida que as pessoas se deslocam de Rafah para as partes centrais da Faixa de Gaza, buscando segurança onde não há nenhuma. Quantas vezes essas famílias foram deslocadas?”, denuncia a organização em um comunicado no X, o antigo Twitter. O exército israelense fala de uma possível “evacuação” da área, embora as evidências tornem isso inverossímil. O comissário da UNRWA, Philippe Lazzarini, negou na terça-feira (13) que fosse possível deslocar as centenas de milhares de palestinos amontoados em Rafah para outras áreas até a iminente ofensiva em grande escala que está sendo preparada pelo governo de Netanyahu.
Na segunda-feira (12), após uma breve incursão terrestre do exército israelense no enclave, Netanyahu, em uma entrevista à emissora americana ABC News, chamou Rafah de “último bastião” dos membros do Hamas e ameaçou com uma invasão terrestre “iminente”. “Hoje eu dou o alerta novamente: as operações militares em Rafah podem levar a um massacre em Gaza. Elas também poderiam deixar uma operação humanitária já frágil em um impasse”, respondeu o chefe de assuntos humanitários da ONU, Martin Griffiths, à ameaça. O secretário-geral da ONU, António Guterres, falou de “consequências devastadoras” se esse “ataque total” a Rafah for realizado. A África do Sul, por sua vez, solicitou ao Tribunal Internacional de Justiça que tome medidas adicionais diante da ofensiva planejada em Rafah.
Desde 7 de outubro, dia em que o massacre no norte da faixa e o deslocamento forçado de cidadãos para o sul começou, 28,5 mil pessoas foram mortas, 384 na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental pelas autoridades israelenses. Imad ajusta suas palavras para descrever o que está acontecendo: “Isso não é uma guerra, é um genocídio contra civis. Aqueles que estão morrendo todos os dias são civis. As casas que são destruídas todos os dias são casas de civis”, diz ele, enquanto o exército israelense justifica seus ataques como um suposto cerco ao Hamas.
Sem ajuda humanitária
Nesse contexto, mais de uma dezena de países, liderados pelos Estados Unidos, decidiram parar de financiar a agência da ONU que trabalha com refugiados palestinos, a UNRWA, após uma suposta investigação israelenses que liga alguns de seus funcionários ao Hamas. Imad explica que essa decisão está causando uma escassez de suprimentos que já é visível.
“Em geral, a ajuda humanitária chega ao sul de Gaza. Quando as pessoas começaram a chegar a Rafah, chegaram alimentos e ajuda humanitária. Mas já faz dois dias que nada está chegando. Para conseguir comida, para conseguir qualquer coisa, você tem que sofrer muito. Você tem que pagar muito. Tudo é muito caro. Não há nenhuma ajuda humanitária vindo para cá além do que a UNRWA traz. Não sabemos o que faremos nos próximos dias”, lamenta.
No dia 30 de janeiro, uma declaração assinada por 15 chefes de organizações internacionais, como a ONU e a OMS, alertou: “As decisões de vários Estados-Membros de suspender o financiamento da UNRWA terão consequências catastróficas para o povo de Gaza. Nenhuma outra entidade tem a capacidade de fornecer a escala e a variedade de assistência urgentemente necessária para os 2,2 milhões de pessoas em Gaza.”
“Quero perguntar a todos: Até quando? Já são 130 dias de genocídio. O mundo inteiro está olhando para nós e dizendo que somos lendas. ‘Vocês são fortes, seguem com força e resiliência, precisam continuar suportando’. Por que temos de passar por tudo isso? O que fizemos? É preciso agir. Não posso olhar para alguém se afogando no mar e simplesmente incentivá-lo a respirar”, diz Imad. “Não somos lendas. Nenhuma lenda deste mundo procura comida todos os dias. Nenhuma lenda deste mundo procura água todos os dias. Não somos lendas, somos humanos e queremos viver em paz. Imagino que é nosso direito. O tamanho da destruição aqui na Faixa de Gaza é enorme. Te garanto que nenhuma mente pode imaginar. Quando vejo a destruição nas ruas, só consigo pensar que o que estou vendo não é real. Quero acordar desse sonho ruim”, clama Imad enquanto se prepara para passar mais uma noite no limbo.
(*) Sara Plaza Casares é jornalista e feminista. Coordenadora de Saúde no El Salto.
(*) Tradução de Raul Chiliani.