A recente crise política e social em Portugal e as discussões no Parlamento Europeu sobre a postura dos países do continente a respeito da ofensiva militar de Israel em Gaza são os dois temas que dominam a agenda dos eurodeputados portugeses atualmente.
Opera Mundi conversou com dois desses parlamentares: Sandra Pereira e João Pimenta Lopes, ambos representantes do Partido Comunista Português (PCP), sobre esses desafios impostos em um momento de grandes transformações na União Europeia.
“De forma inaceitável, o Parlamento Europeu rejeitou o apelo a um cessar-fogo imediato, o acesso incondicional à ajuda humanitária para socorrer a população palestina que está a ser vítima das ações brutais de Israel, assim como o fim da agressão à população da Faixa de Gaza”, explicam os parlamentares, em resposta dada em conjunto – como todas as demais ao longo da entrevista.
Os eurodeputados explicaram porque votaram contra outro texto, também apresentado no Parlamento Europeu, que garantia o direito de defesa do Estado de Israel em um contexto de desrespeito ao direito internacional.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: O Parlamento Europeu votou a resolução sobre os “ataques terroristas desprezíveis do Hamas contra Israel, o direito de Israel de se defender em conformidade com o direito humanitário e internacional e a situação humanitária em Gaza”. Vocês foram os únicos eurodeputados portugueses a votarem contra. Podem explicar o porquê desse posicionamento e como o PCP avalia essa decisão?
A resolução, sem qualquer enquadramento histórico sobre as causas do conflito árabe-israelense, assume uma abordagem enviesada, insistindo no dito “direito à legítima defesa” por parte daquele que é, afinal, efetivamente o ocupante e opressor, e que serve de pretexto ao autêntico massacre que Israel está cometendo contra a população palestina na Faixa de Gaza.
O texto recusa fazer a condenação de todos os atos de violência que visem as populações e vitimam inocentes – árabes ou judias –, optando por uma postura parcial, cinicamente conivente com a política de Israel, que há décadas ocupa ilegalmente territórios palestinos e oprime o povo palestino.
O texto opta ainda por ignorar ou desvalorizar os bombardeios indiscriminados por parte de Israel e a morte de milhares de palestinos, na sua grande maioria crianças, mulheres e idosos, assim como o premeditado, cruel e desumano bloqueio a Faixa de Gaza que priva de água, comida, medicamentos, combustível e eletricidade milhões de seres humanos. O texto ignora os desenvolvimentos na Cisjordânia, onde tropas e colonos israelitas provocaram dezenas de vítimas, na sequência dos assassinatos de centenas de palestinos durante 2022 e 2023.
Além do mais e de forma inaceitável, o Parlamento Europeu rejeitou o apelo a um cessar-fogo imediato, o acesso incondicional à ajuda humanitária para socorrer a população palestina que está sendo vítima das ações brutais de Israel, assim como o fim da agressão à população da Faixa de Gaza.
Estes e outros aspectos negativos foram determinantes no sentido do voto contra dos deputados do Partido Comunista Português no Parlamento Europeu, voto que se confirma ter toda a justeza.
Quais são os reais motivos que levam parte da esquerda em Portugal e de outros países europeus à não condenação da ocupação israelense na Palestina? Poderiam citar exemplos práticos que ilustram essa questão?
A resposta a essa questão só pode ser dada por aqueles que, proclamando-se serem de esquerda, não condenam a política de ocupação e opressão por parte de Israel contra o povo palestino. No entanto, constatamos que, alguns dos que afirmam defender a solução dos dois Estados, nada mais fazem do que proclamar essa posição quando exercem responsabilidades governamentais, não desenvolvendo nenhuma iniciativa concreta que vise o cumprimento efetivo dessa solução.
Antes, e pelo contrário, alinham com a cumplicidade e apoio dos EUA face à política de Israel. Consideramos que o governo do Partido Socialista (PS) deveria ter desenvolvido iniciativas em Portugal e nos fóruns internacionais em que participa com vista ao cumprimento das resoluções da ONU sobre a questão palestina, incluindo o reconhecimento por parte de Portugal do Estado da Palestina, como há muito é recomendado pela Assembleia da República.
A paz no Oriente Médio só poderá ser alcançada através de uma solução política que respeite os inalienáveis direitos nacionais do povo palestino, abrindo caminho à concretização do Estado da Palestina soberano e independente, com as fronteiras de 1967 e capital em Jerusalém Leste, e a efetivação do direito ao retorno dos refugiados, conforme as resoluções pertinentes da ONU.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, fez declarações culpando o próprio povo palestino pelo massacre que o Estado de Israel está impondo na região desde o dia 7 de outubro, quando a organização político-militar Hamas sequestrou cidadãos. Ao ignorar a ocupação territorial, o chefe de Estado português demonstrou desconhecimento histórico e político sobre o tema.
Ursula Von der Leyen também reafirmou o apoio da Comissão Europeia às ações de Benjamin Netanyahu, consideradas crimes de guerra pelo direito internacional. Esses episódios revelam que a União Europeia chama de democracia a manutenção de ativos auferidos através de séculos de práticas colonialistas, com o suporte moral, bélico, financeiro e logístico às guerras de ontem, de hoje e as de amanhã, além de contribuir com a naturalização do fascismo. Acreditam que esse contexto ajuda a legitimar o debate sobre a existência da União Europeia?
São declarações e posicionamentos que não dignificam quem os profere e que, objetivamente, dão cobertura à política de Israel contra o povo palestino.
Na verdade, em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral da ONU aprovou a resolução n.º 181, que estabelecia a partilha do território da Palestina, outrora sob o domínio do Reino Unido, em dois Estados. O Estado de Israel foi estabelecido em 1948. 75 anos depois o Estado da Palestina está por cumprir.
Inúmeras resoluções da ONU determinam a criação do Estado da Palestina, no entanto Israel prossegue há décadas uma política ilegal de ocupação e colonização. Israel desrespeita impunemente o direito internacional, resoluções da ONU e acordos que estabeleceu relativos à questão palestina. Por mais que alguns procurem esconder, é esta a verdadeira causa do conflito.
Particularmente, o posicionamento de Ursula von der Leyen confirma o seu total alinhamento com a política de Israel contra o povo palestino. No fundo, um posicionamento que se enquadra na política intervencionista que a UE promove, em conluio com os EUA e a Otan, no Médio Oriente e em outras regiões do mundo.
A postura de Von der Leyen evidencia a natureza belicista da União Europeia, que simultaneamente promove políticas neoliberais contrárias aos interesses dos trabalhadores e dos povos, de retrocesso social, de agravamento das injustiças e desigualdades sociais, em benefício dos interesses dos grupos econômicos das suas grandes potências.
Postura que torna mais importante a luta por uma Europa de cooperação entre Estados soberanos e iguais em direitos, de progresso social e de paz.
Partido Comunista Português
Sandra Pereira e João Pimenta Lopes são dois dos principais defensores da causa palestina no Parlamento Europeu
Depois de anos de debate, o Parlamento Europeu parece estar disposto a votar o novo pacto de imigração e asilo antes das eleições europeias de 2024. O texto aprovado restringe pedidos de asilo e prolonga prazos de apreciação para os requerentes em países que declararam estar sob crise econômica, obrigando os Estados-membros a acolher e custear esses imigrantes. Vocês estão de acordo com o texto? Por qual razão?
Em setembro de 2020, a Comissão Europeia apresentou o “Novo Pacto em matéria de Migração e Asilo” cuja negociação ainda não terminou. Mas, não nos iludamos, o Pacto só é novo no nome, pois mantém no fundamental as mesmas políticas, reafirmando ou agravando alguns dos seus aspectos.
Para além de outros aspectos negativos, o pacto insiste no estabelecimento de acordos com países terceiros para conter fluxos migratórios ou assegurar a política de retorno, sem garantia da proteção adequada ou resposta apropriada no contexto do direito internacional em matéria de migração e asilo.
Além disso, não estabelece entre as causas de fundo dos elevados fluxos migratórios as políticas de ingerência e agressão promovidas pelos EUA, Otan e UE contra países, como no Afeganistão, no Iraque, na Síria, na Líbia ou no Iémen – guerras responsáveis por milhões de deslocados, refugiados e migrantes.
Para lá de uma resposta solidária a milhares de seres humanos, a resposta fundamental aos fluxos migratórios passa pelo ataque às suas causas, o que exige a rejeição das políticas de desestabilização e agressão levadas a cabo contra países, o fim das relações desiguais e da imposição do domínio econômico e político, da chantagem da dívida e do saque de recursos, e o respeito pela soberania e independência dos Estados, a consagração de genuínas políticas de cooperação que promovam efetivamente os direitos, o desenvolvimento, o progresso social e a paz.
A importante e numerosa presença dos imigrantes na Europa é um fato indiscutível. Entretanto, no plano econômico, é comum que trabalhadores estrangeiros, principalmente vindos do Sul Global, recebam salários bem abaixo dos que são pagos aos cidadãos europeus. Na França, segundo um estudo da Organização Internacional do Trabalho, os estrangeiros ganham, em média, 9% menos que os trabalhadores não migrantes. Em Portugal, os que mais contribuíram com a Segurança Social no ano de 2022 foram os imigrantes. Porém, o que se vê é um forte discurso anti-imigração repleto de xenofobia e racismo. Os debates e projetos de lei discutidos atualmente no Parlamento são suficientes para resolver a precária realidade desses trabalhadores?
A situação dos trabalhadores imigrantes em Portugal continua marcada pelas difíceis condições de vida, reflexo dos baixos salários, do desemprego ou de emprego sem direitos, precário e de condições habitacionais degradantes.
Acentuou-se o recurso a trabalhadores imigrantes, sem quaisquer direitos para prestação de trabalho sazonal, potenciado por um quadro legal que condena, na prática, muitos imigrantes a situações de clandestinidade e quase escravatura, expondo-os às redes de tráfico.
Consideramos que é necessária uma efetiva política para assegurar os direitos e a integração dos trabalhadores imigrantes. Estamos conscientes de que a fragilidade da sua situação é usada pelo capital para dividir e colocar pressão sobre todos os trabalhadores com vista ao agravamento da exploração, seja através dos baixos salários, do retrocesso dos direitos laborais, do recuo das suas condições de trabalho e de vida, dos direitos, incluindo o acesso aos serviços públicos ou à habitação.
Consideramos indispensável uma política que garanta os direitos dos imigrantes, incluindo o direito à educação, à saúde e à segurança social, à habitação, à cultura ou ao esporte.
É preciso garantir uma política que combata as injustiças e as desigualdades sociais, o racismo e a xenofobia e valorize as diversas identidades culturais, o respeito pela diferença e o efetivo diálogo multicultural.
Considerando que o visto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) não atende às exigências de livre circulação no espaço Schengen, podemos dizer que os brasileiros e demais cidadãos dos países de língua portuguesa foram enganados pelo governo português? Como estão os debates no Parlamento Europeu? Há soluções em discussão que não prejudiquem os atuais beneficiários?
A questão que coloca motivou parte da Comissão Europeia a abertura de um “procedimento de infração” contra Portugal por causa do Acordo de Mobilidade da CPLP. Trata-se, na nossa opinião, de uma inaceitável intromissão em uma competência que cabe ao Estado português. Face a esta postura questionamos a Comissão Europeia.
Consideramos que este acordo tem aspectos positivos que efetivamente contrastam com a política migratória exploradora e seletiva da UE.
A guerra entre Rússia e Ucrânia, o fortalecimento da extrema direita no mundo, o apoio dos EUA aos países da Otan e a ascensão da China como nova superpotência econômica trazem novos paradigmas sobre democracia, alterando os horizontes e pensamentos de modo a convergirem de forma internacionalista. Neste sentido, como avaliam a democracia na Europa? Acreditam que a ONU ainda é capaz de evitar um conflito de ordem mundial?
Temos uma concepção de democracia econômica, social, política, cultural, alicerçada na soberania e independência de Portugal. Consideramos que Portugal deve desenvolver uma política externa diversificada, de paz, amizade e cooperação com todos os povos, na base dos princípios da igualdade, reciprocidade de vantagens, respeito mútuo e não ingerência nos assuntos internos.
Consideramos que a internacionalização da economia, a profunda divisão internacional do trabalho, a interdependência e cooperação entre Estados e os processos de integração em função da sua orientação, características e objetivos, podem servir às grandes potências e aos grupos econômicos, ou podem servir aos trabalhadores e aos povos.
Ora as políticas neoliberais, federalistas e militaristas da União Europeia não servem aos interesses dos trabalhadores, dos povos e de países como Portugal. A intensificação da exploração, a liberalização de serviços públicos, as decisões do Banco Central Europeu de aumentar as taxas de juro, a centralização de poder em instituições dominadas pelas grandes potências e os interesses dos seus grupos econômicos, a promoção da confrontação e guerra e as sanções, são algumas das expressões dessas políticas que têm profundos impactos negativos.
Consideramos que Portugal não deve aceitar uma posição de Estado subalterno no quadro da UE e a alienar a sua soberania e independência. Por isso lutamos por uma Europa de efetiva cooperação entre Estados soberanos e iguais em direitos, de progresso social e de paz, ao contrário de uma UE neoliberal, federalista e militarista.
A ONU deve-se reger pela concretização dos princípios e objetivos da sua Carta, combatendo a sua perversão e instrumentalização pelos EUA e outras grandes potências capitalistas para intervir nos assuntos internos de Estados.
Portugal deve intervir ativamente em todas as instâncias internacionais em que participa, particularmente na ONU e suas agências, para a resolução dos problemas globais da humanidade, nomeadamente a luta contra a fome, a doença, a pobreza e o subdesenvolvimento, a defesa e preservação do meio ambiente, a criação de uma nova ordem internacional de paz e progresso social.