“A União Europeia tem sido profundamente cúmplice da ocupação israelense, do colonialismo exercido pelos colonos e do apartheid na Palestina”. Shir Hever, coordenador da campanha de embargo militar do movimento Boicotes, Desinvestimento e Sanções (BDS), não consegue esconder a sua indignação.
Um sentimento que, nos últimos dias, uniu as pessoas em solidariedade à causa palestina. Desde o dia 7 de outubro, os diferentes governos europeus, bem como a própria União Europeia, apoiaram incondicionalmente o Estado israelense na sua ofensiva contra a população palestina de Gaza. Estados como a Alemanha, a França e o Reino Unido chegaram ao ponto de reprimir manifestações de solidariedade com a Palestina.
Para Norman Paech, ex-professor de direito internacional e membro do partido alemão Die Linke, “a classe política, seja no governo, nos partidos ou nos meios de comunicação social, está cometendo um erro fundamental. Reduz o ataque a Israel e o surto de violência à responsabilidade de uma única organização, o Hamas. Esqueceu-se da história das lutas de libertação colonial”.
Na última segunda-feira (15), Oliver Varhelyi, Comissário Europeu de Ampliação e Política de Vizinhança – membro do partido húngaro de extrema-direita e aliado convicto do Estado israelense – chegou a anunciar a suspensão da ajuda humanitária aos territórios palestinos.
Alguns países, entre os quais Espanha, Portugal, Luxemburgo e Irlanda, se alarmaram com essa decisão. A Comissão Europeia teve de voltar atrás, declarando que “não haverá suspensão de pagamentos”, embora tenha acrescentado que “não há previsão de pagamentos”.
“A Áustria e a Alemanha iniciaram uma tentativa de suspender toda a ajuda monetária à Palestina, um ato de punição coletiva cruel que só pode intensificar a violência”, continua Shir Hever. Uma opinião que não é partilhada pelas classes políticas, que optaram conscientemente por ignorar os abusos israelenses na Faixa de Gaza. O social-democrata alemão Michael Roth, por exemplo, afirmou na terça-feira (16) que “a Alemanha deve dar liberdade a Israel”, uma declaração preocupante em um momento em que o território palestino é alvo de fortes bombardeios.
Para Shir Herver, “os políticos alemães se expressam-se como se estivessem totalmente identificados com os crimes israelenses”. Ele prossegue: “Michael Roth deixou bem claro que a Alemanha deve apoiar o assassinato de palestinos pelas forças israelenses”.
Como explica Zaid Abdulnasser, coordenador do Samidoun na Alemanha – um grupo de apoio aos presos políticos palestinos que o chanceler alemão Olaf Scholz ameaçou proibir –, “isto está acontecendo ao mesmo tempo em que massacres inacreditáveis estão ocorrendo em Gaza, destruindo bairros inteiros. Tudo isto com o apoio explícito dos países ocidentais”.
Para Norman Peach, “há muito tempo que o direito internacional e os direitos humanos não desempenham qualquer papel neste conflito. Têm sido constantemente ignorados e violados contra o povo palestino desde a fundação do Estado israelense”.
A Europa é uma aliada convicta do apartheid israelense
Mas, na Europa, a situação não se limita a isso; as declarações dos partidos também se transformaram em repressão em diferentes níveis. Alice Garcia, responsável pela defesa e comunicação do Centro Europeu de Apoio Jurídico, explica: “uma enorme e violenta onda de racismo anti-palestino está no horizonte, facilitada por uma década de políticas restritivas na Europa e pelos esforços para deslegitimar e minar a justa luta dos palestinos pela sua libertação”.
Na França, onde milhares de pessoas saíram às ruas em diferentes cidades no último dia 12, todas as manifestações de solidariedade com a Palestina foram proibidas sob o argumento de que “poderiam causar perturbações da ordem pública”. Em Paris, foram utilizados tanques de água e várias prisões foram efetuadas. A socióloga francesa Kaoutar Harchi vai além nas suas redes sociais: “não são tanto as manifestações pró-palestinas que são proibidas, mas sim as manifestações públicas de minorias raciais no contexto francês. Outras manifestações contra a violência policial ou a islamofobia já foram proibidas”.
No Reino Unido, a ministra do Interior, Suella Braverman, apelou à polícia para que reprima os protestos e criminalize cantos como “Do rio ao mar, a Palestina será livre”. Uma frase que é considerada uma infração penal na Alemanha desde o dia 13 de outubro. Ao mesmo tempo, todos os símbolos palestinos, até mesmo o kuffiyeh (lenço tradicional palestino) e adesivos, foram banidos das ruas.
“Temos assistido à violência policial e a detenções por demonstrações de solidariedade com a Palestina. Se trata de uma violência inacreditável que leva ao apagamento do povo palestino”, explica Alice Garcia.
Para Norman Peach, por outro lado, estas medidas “não serão capazes de tornar os palestinos invisíveis na Europa. Mas fomentam o ódio contra eles, sua marginalização e exclusão”.
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Manifestação pró-Palestina na cidade de Columbus, no estado norte-americano de Ohio, no dia 21 de outubro
A repressão é pior do que nunca
“A Alemanha mostrou a sua verdadeira face aos palestinos e aos árabes, bem como aos simpatizantes da Palestina. As pessoas já não vêem a Alemanha como uma mera apoiadora da ocupação, mas como um participante ativo”, explica Zaid Abdulnasser.
Um fenômeno que segue uma dinâmica iniciada em 2021, após a participação de milhares de pessoas nas comemorações da Nakba (“Catástrofe” em árabe, episódio em que mais 700 mil árabes sofreram deslocamento forçado da Palestina). Para os ativistas solidários com a Palestina, esse foi o ponto de virada da política do Estado alemão em relação à questão palestina.
“A repressão está pior do que nunca. A polícia é muito violenestá proibido gritar ‘Palestina Livre’ nas ruas, ou transportar bandeiras ou adesivos”, explica Ulrike, da Palestine Campaign, que prefere manter o anonimato. Sua organização reúne diferentes grupos que trabalham pela libertação da Palestina e contra a repressão do Estado alemão. “Desde o início dos ataques, a polícia está constantemente nas ruas, especialmente em Neukölln, um bairro de maioria árabe, agredindo as pessoas e fazendo-as se sentirem inseguras”, diz ela.
“Um professor de uma escola alemã agrediu um dos seus alunos com um murro na cara por ter erguido uma bandeira palestina”, prossegue Shir Hever. “Que tipo de mensagem o governo alemão envia aos professores? Que permitem este tipo de violência?”
A manifestação que tinha sido convocada no dia 11 de outubro pela Palestine Campaign em protesto contra os ataques israelenses em Gaza também foi proibida. Como argumento, “utilizam uma terminologia racista, afirmando que os árabes são muito violentos e que isso é muito perigoso para a ordem pública”.
Apesar de tudo, os diferentes grupos de solidariedade com a Palestina organizaram-se para não abandonar as ruas. O Samidoun apelou para que se preenchesse a Sonnenalle, conhecida como a principal rua árabe de Berlim, com símbolos palestinos. Lá, a polícia deteve e identificou dezenas de pessoas. Foi também convocada uma outra manifestação na mesma região, que também foi duramente reprimida.
Até a possibilidade de perder a cidadania
Já há alguns anos a repressão contra o movimento pró-palestina abrange à possibilidade de perda do status de refugiado ou da cidadania. No dia 16 de setembro, a Samidoun lançou uma campanha contra a perda do status de refugiado do seu coordenador na Alemanha, Zaid Abdulnasser. Ele explica que “muitas das pessoas que vêm às manifestações são refugiados e é por isso que nos ameaçam com a questão dos documentos”.
Ulrike acrescenta que “o partido democrata-cristão já ameaçou retirar a cidadania daqueles que participam nas manifestações”. Há alguns meses, Bjan Djir-Sarai, secretário-geral dos liberais do Partido Democrático Liberal, declarou que, para a concessão da cidadania alemã, deveria ser verificado se existem atitudes de ódio do solicitante contra o Estado de Israel.
O problema é que a base política destas posições é a definição da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), que facilita a deslegitimação das críticas ao Estado de Israel como antissemitismo. Ulrike considera que já não há qualquer possibilidade de “condenar os crimes de guerra que Israel está cometendo em Gaza ou na Cisjordânia e que ocorrem há mais de 75 anos”.
Continuar lutando pela liberdade de expressão
“A sociedade civil deve compreender o verdadeiro caráter dessa violência como uma revolta da sociedade palestina, deve dirigir a sua raiva não contra os palestinos, mas contra o seu governo”, continua Norman Peach.
Ulrike explica também que recentemente “as pessoas saíram às ruas e não deixaram que o Estado alemão as silenciasse. É claro que continuaremos utilizando diferentes táticas em defesa dos direitos humanos”.
“A sociedade civil europeia deve defender a justiça e condenar este racismo anti-palestino e esta preocupante restrição aos direitos fundamentais”, diz Alice Garcia. “Recordamos os direitos fundamentais à liberdade de expressão e à liberdade de reunião e apelamos aos indivíduos e grupos que enfrentam este tipo de repressão para que nos comuniquem os incidentes”.
Por sua parte, Shir Hever afirma: “é tempo de os governos ouvirem a opinião pública, que torna clara a sua posição sobre a Palestina através das organizações da sociedade civil, e reconhecerem o apartheid israelense, acabarem com o comércio de armas com o apartheid israelense e reconhecerem os direitos individuais e coletivos básicos dos palestinos”.
Apesar das ameaças que recebeu do Estado alemão, Zaid Abdulnasser conclui: “Declaramos o nosso total empenho na libertação da Palestina, do rio ao mar, apoiamos a resistência e o direito de regresso, queremos regressar às nossas casas e aldeias”.
(*) Tradução de Raul Chiliani