Era por volta de 6h da manhã (2h no horário de Brasília) quando a população do norte da Faixa de Gaza recebeu uma ligação de um número israelense dizendo, por meio de uma mensagem de voz gravada, que deveriam deixar a região e o oeste do território em direção ao sul. O relato é da cineasta Bisan, feito no Instagram, sobre a ordem de evacuação num prazo de 24h dada por Israel nesta sexta-feira (13/10) ao povo palestino.
A jovem diz que empurrar as pessoas para os limites da Faixa, em direção ao Sinai e Egito significa “um novo Nakba”. O evento de 1948, que em árabe significa “catástrofe”, ocorreu logo após a Assembleia Geral da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) adotar um Plano de Partilha, em 1947, que dividiu o território palestino em dois, dando origem ao Estado de Israel.
Neste contexto, mais de 400 vilarejos palestinos foram ocupados, saqueados e destruídos por Israel. Os moradores, expulsos ou mortos. Cerca de 800 mil pessoas tiveram que deixar seu território.
No perfil de Bisan, ainda nesta sexta, a jovem mostra o céu acima de sua cabeça. Ela também está em uma rua com famílias que se deslocam para o sul. Faz sol, está azul e sem nuvens. O detalhe que se pode observar na gravação, agora apontada para o céu, é uma quantidade grande – milhares, talvez – de pontos brancos. São papéis que caem em direção às pessoas. Nestes papéis, repete-se a mensagem anunciada anteriormente por celular. A ordem é evacuar o norte de Gaza até o exército de Israel decidir se a população pode ou não voltar.
Em vídeo compartilhado em sua página, Moutaz Azaiza, que é jornalista e produtor de conteúdo da agência da ONU para refugiados no Oriente Médio (UNRWA), está em uma rua de Gaza em que se concentram pessoas, famílias, crianças, bebês de colo e seus poucos pertences – uma mochila, um travesseiro.
Dali, ele reporta: “as pessoas começaram a evacuar a cidade para a área do meio e sul. O problema é que não tem carro suficiente, não tem táxis. […] É um grande número de pessoas e como podem ver todo mundo quer escapar antes que algo aconteça”. Mas, acrescenta, “as pessoas não sabem exatamente onde ou como ir”.
“O que está acontecendo agora é o mesmo que em 1948, um outro Nakba, incubado por Israel”, conclui o repórter palestino.
@motaz_azaiza/reprodução
Hind Khodary, correspondente da Agência Anadolu, questiona em sua página: “então os israelenses estão ordenando que 1,1 milhão de palestinos evacuem para o sul e depois essas pessoas viram alvos de seus tiros?”, afirmando que é isso que está acontecendo.
Na sequência, a jornalista publica uma foto com outras colegas de profissão, paramentadas com capacete e colete de identificação de imprensa, e escreve que está “enviando todas as minhas orações e amor aos colegas que estão reportando em campo. Nós nunca pensamos que isso iria acontecer”.
Em outra publicação, ela conta que retornou a Gaza dois meses antes com seu marido para morar ali. Ambos estavam em Istambul, na Turquia, até então. “Nossa vida em Gaza tem sido um ciclo de violências sem fim”, declara.
Hind Khodary, jornalista correspondente da Agência Anadolu (Reprodução)
Sami Abu Salem, jornalista de Gaza para o Red Stream Net, diz que a imprensa não consegue mais trabalhar, porque “não há um lugar seguro” naquele pedaço do território palestino. “Sabemos milhares de histórias de pessoas sendo abatidas dentro de suas casas enquanto dormem, mas não conseguimos reportar por conta da segurança”, afirmou, acrescentando que jornalistas palestinos estão sendo visados como alvos. “O mesmo acontece com os paramédicos”, acrescentou.
Salem diz que há tiroteio e bombardeio acontecendo em todo lugar e de forma indiscriminada, e que mesmo o colete ou capacete são inúteis: protegem de algum tiroteio ou estilhaço, mas não dos foguetes enormes lançados por Israel.
“Não temos serviço de internet, temos pouca eletricidade, não temos transporte e as ruas estão destruídas. Por isso não conseguimos contar milhares de histórias de famílias que foram mortas dentro de suas casas, dormindo – pais, crianças, irmãos – cada um deles com sua história, mas a gente não consegue reportar”, disse, concluindo com um pedido de ajuda e proteção.
Sami Abu Salem para o Red Stream Net (reprodução)
Seu colega Moutaz também chegou a relatar que recebeu uma ligação, dois dias antes, 9 de outubro, sem identificação do número da chamada — como faz o exército israelense para notificar de que vão bombardear suas casas.
“Não tenho certeza se é militar ou da extrema direita sionista, mas ele realmente me ameaçou para que eu não me mova e não faça a cobertura dos massacres da ocupação”, explicou Moutaz, acrescentando que a pessoa na chamada ordenou-o a ficar longe do norte e do leste da Faixa de Gaza ou ele “vai morrer”.
Civis, jornalistas, paramédicos não devem ser alvos de guerra, segundo as Convenções de Genebra que definem o Direito Humanitário Internacional. Desde o início da escalada de violência, no último sábado (07/10), ao menos 1.799 palestinos foram mortos em Gaza, com 6.388 feridos, e 46 mortos na Cisjordânia, com ao menos 700 feridos.
Entre os assassinados por Israel estão ao menos 447 crianças. Estes dados são do Ministério da Saúde Palestino. O Sindicato dos Jornalistas Palestinos aponta oito repórteres mortos.
Do lado israelense, pelo menos 1.300 pessoas foram mortas e 3.400 ficaram feridos.
A jornalista Plestia Alaqad publicou uma foto dos equipamentos de proteção usados por correspondentes de guerra. Na legenda, ela comentou: “sempre adorei o jornalismo e a Palestina e estou feliz por poder compartilhar parte da verdade ou parte do que está acontecendo com o mundo”.
@byplestia/reprodução
Na sequência, ela escreve que ainda está no hospital. “Tentei evacuar e ir até onde estão meus pais, mas não encontrei carro nem táxi e para sair preciso caminhar uma hora ou mais – não tenho energia, minhas costas doem muito de usar o colete de imprensa que tenho certeza que não protege de nada, mas pelo menos me faz sentir que fiz o que deveria para me proteger”.
“Perdi a conexão do celular, não consigo ligar nem mandar mensagem para ninguém, mas ainda tem internet no hospital para que eu possa postar isso. Ainda tem um tempo antes que a noite chegue, vou ver se tenho alguma opção e mantenho vocês atualizados se puder”, disse.
Plestia Alaqad ao lado de Motaz Azazia (reprodução)
Rotina na noite de Gaza sitiada
A cineasta Bisan mostra sua rotina diária antes de dormir durante a guerra. Ela conta que deixa suas coisas próximas de sua mochila caso precise escapar o mais rápido possível. “Na noite a gente põe os sapatos perto da porta para saber que ainda tem gente e não deixar ninguém pra trás”, disse.
“A gente tenta dormir cedo porque os bombardeios aumentam à noite. Essa é minha rotina diária antes de dormir. E a sua? Ore por nós”, declarou a cineasta.
Com mais de 2 milhões de seguidores e o símbolo verificado pelo Instagram, o jornalista Moutaz tem reportado a guerra desde o primeiro dia.
Na quinta-feira (12/10), ele escreveu: “um novo massacre, mas agora contra a minha família”, acrescentando que mais de 15 pessoas de sua família foram mortas por um ataque aéreo israelense.
Na manhã seguinte, comentou: “depois de tudo que está acontecendo eu não sinto que vou sair vivo até o final, então por favor me desculpe por qualquer coisa que eu já tenha feito. Eu sinto muito, mas todo mundo nos abandonou”.
O jornalista Hassan Esdodi alertou que “se uma invasão por terra de Israel acontecer, ao menos um milhão de pessoas vai morrer. Porque eu conheço meu povo muito bem. E eu sei que eles não vão se render. Eu sei que eles vão lutar de volta e Israel vai matar cada um deles”.
Hassan Esdodi para o Red Stream Net (Reprodução)
O cerco total a Gaza vai levar a um apagão na mídia, lembra, acrescentando que o território já está completamente desconectado do resto do mundo. É que ninguém no mundo vai saber o que está acontecendo em Gaza. Cobertura de notícias vai acabar, cobertura ao vivo vai parar.
“Eles estão falando sobre destruir a infraestrutura do Hamas, a capacidade, mas o que estamos de fato vendo daqui são mesquitas destruídas. Torres altas, residenciais. Escritórios de jornalismo e de mídia destruídos. Estamos falando de prédios residenciais que também estão sendo destruídos. Na cabeça dos moradores. Então eu não acredito que essa guerra seja contra o Hamas, é uma guerra contra a população da Faixa de Gaza”, disse Esdodi.
Revoada registrada por Moutaz Azazia voa em formato de “V” no céu de Gaza