Você deve ter visto as manchetes: os houthis, um grupo de resistência iemenita, em solidariedade com a luta de libertação do povo palestino, têm atacado navios ligados a Israel que atravessam o Mar Vermelho. Estrategicamente localizado no chuvoso extremo sul da Península Arábica, com um porto de águas profundas em Áden, o Iêmen controla o estreito de Bab-el-Mandeb, no extremo sul do Mar Vermelho. Esta passagem estreita do Mar Vermelho para o Golfo de Áden e o Mar Arábico é uma importante via marítima que liga o Mar Mediterrâneo ao Mar Arábico.
Importância do estreito de Bab-el-Mandeb
O estreito de Bab-el-Mandeb é um importante ponto de travessia na rota comercial marítima entre o Oceano Índico e o Mar Mediterrâneo através do Canal do Suez. O estreito é crucial para o transporte de petróleo bruto e combustível proveniente do Golfo, bem como de mercadorias destinadas à Ásia. De fato, cerca de 7,8 milhões de barris de petróleo bruto e combustível foram transportados através do estreito nos primeiros 11 meses de 2023.
Como resultado dos ataques dos houthis, “as principais transportadoras, incluindo a Hapag Lloyd, a MSC e a Maersk, a petrolífera BP e o grupo de petroleiros Frontline disseram que vão evitar a rota do Mar Vermelho e farão um redirecionamento através do Cabo da Boa Esperança neste momento”. Isto significa que os navios estão atualmente dando voltas por toda a África.
No dia 19 de dezembro, o Pentágono anunciou que tinha convocado a Operação Prosperity Guardian, “uma nova e importante iniciativa multinacional de segurança”, para combater as ações iemenitas, ameaçando uma guerra regional expansiva e desafiando o consenso global por um cessar-fogo israelense permanente.
Mohammed Abdel-Salam, negociador-chefe e porta-voz dos houthis, respondeu no X, o antigo Twitter: “a coalizão formada pelos norte-americanos visa proteger Israel e militarizar o mar sem qualquer justificativa, e não impedirá que o Iêmen continue com suas operações legítimas em apoio a Gaza.”
Abdel-Salam acrescentou que os ataques dos houthis “não são uma demonstração de força nem um desafio a ninguém”, afirmando que “quem procura expandir o conflito deve suportar as consequências das suas ações”.
A solidariedade do Iêmen com a Palestina
No dia 10 de outubro, os houthis haviam alertado que tomariam medidas militares em solidariedade a Gaza caso os EUA interviessem diretamente. O líder dos houthis, Abdel-Malek al-Houthi, advertiu os Estados Unidos que, se estes interviessem diretamente em Gaza, o grupo recorreria a alternativas militares, como o disparo de mísseis e drones.
Entre os dias 31 de outubro e 12 de dezembro, os houthis reivindicaram uma série de ataques a navios israelenses no Mar Vermelho, anunciando em novembro: “Todos os navios que pertençam ao inimigo israelense ou que sejam relacionados a Israel serão considerados alvos legítimos”.
Depois de atacar três navios comerciais no início de dezembro, o porta-voz militar dos houthis, o general de brigada Yahya Saree, declarou: “As forças armadas iemenitas continuam impedindo que os navios israelenses naveguem no Mar Vermelho (e no Golfo de Áden) até que cesse a agressão israelense contra nossos irmãos inabaláveis na Faixa de Gaza. As forças armadas iemenitas renovam o seu aviso a todos os navios israelenses ou associados a israelenses de que se tornarão um alvo legítimo caso violem o que está afirmado nesta declaração”.
No dia 12 de dezembro, Saree anunciou em um comunicado que os houthis haviam atingido um navio-tanque comercial norueguês com um míssil. O petroleiro entregaria petróleo bruto a um terminal israelense.
Quando olhamos para a cobertura de imprensa sobre o que está acontecendo no Mar Vermelho, a situação pode parecer confusa. Alguns dizem que os navios estão sendo bloqueados pelas forças armadas do Iêmen, outros dizem que isso está sendo feito por um grupo rebelde, os houthis. Praticamente toda a cobertura dos principais meios de comunicação ecoa a afirmação do governo dos EUA de que os houthis são apoiados pelo Irã ou atuam como representantes do Irã. Quem são os houthis? São fantoches do Irã? São rebeldes ou representam o governo do Iêmen?
É difícil compreender o movimento houthi sem antes termos um conhecimento mais amplo da história do Iêmen durante o século XX.
Breve história recente do Iêmen
O Iêmen é um país com um rico patrimônio histórico e cultural, que inclui sua capital, Sanaa, uma das mais antigas cidades continuamente habitadas do mundo. O país é também rico em recursos naturais, incluindo reservas de petróleo, que estão em grande parte inexploradas. O porto de Áden, no sul do Iêmen, é um grande porto de águas profundas que pode acomodar grandes embarcações.
Devido ao colonialismo, as partes norte e sul do Iêmen desenvolveram-se em rumos diferentes durante o século XX.
A Grã-Bretanha conquistou Áden em 1839 e governou-a diretamente como um “protetorado” até que um movimento anticolonial liderado por marxistas os forçou a sair em 1967, levando à fundação da República Democrática Popular do Iêmen. Este foi o primeiro e único governo de orientação marxista no Oriente Médio.
Mas na década de 1960 mudanças também estavam ocorrendo na parte norte do Iêmen.
Antes de 1962, o Iêmen do Norte era conhecido como o Reino Mutavaquilita do Iêmen e era governado por um imã hereditário. Em 1962, um grupo de jovens oficiais militares liderou um golpe de Estado que derrubou o imã. Este golpe levou a uma guerra civil entre os republicanos (aqueles que queriam uma forma de governo republicana em vez de uma monarquia) e os monarquistas.
No contexto da Guerra Fria e do movimento pan-árabe da época, esta guerra envolveu rapidamente outras forças: os sauditas, com o apoio dos britânicos e dos EUA, intervieram a favor das forças do imã, enquanto o Egito e a República Árabe Unida (atual Síria), com o apoio da URSS, apoiaram as forças republicanas. Após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, o Egito retirou suas forças e a guerra prosseguiu até que um acordo foi negociado.
De uma perspectiva de classe, a Revolução de 1962 no norte representou as forças modernizantes, aspirantes à democracia burguesa, tentando esmagar e dominar as forças do feudalismo, representadas pelo imã e pelas lideranças tribais rurais. No entanto, a guerra civil terminou sem que os elementos feudais do campo fossem esmagados de forma decisiva. Em vez disso, os sauditas lançaram um sistema de apoio financeiro aos líderes tribais rurais.
Reprodução / Houthi Military Media
Rebeldes houthis durante sequestro do navio "Galaxy Leader", no Mar Vermelho, em novembro de 2023.
O feudalismo no Iêmen rural
Quando dizemos “tribal”, isso pode evocar todo tipo de imagem. No caso do Iêmen, trata-se de um sistema feudal nas zonas rurais, em que os líderes possuem e/ou controlam a terra e vivem com relativa facilidade e riqueza, enquanto os outros membros da tribo vivem na pobreza. Os membros das tribos vivem sob a “proteção” dos chefes e funcionam também frequentemente como forças armadas informais, utilizadas em conflitos com outras tribos ou com o governo central.
Assim, este sistema feudal manteve-se após a Revolução de 1962 – nunca se realizou uma verdadeira reforma agrária. O novo governo central no Norte conseguiu trazer algumas melhorias para a população, especialmente com o apoio do bloco socialista: campanhas de saúde pública, como de vacinação; mais acesso à educação e um aumento significativo das taxas de alfabetização; eletrificação em muitas áreas; aumento das estradas pavimentadas. Mas é importante compreender que as zonas rurais continuaram a ser mais controladas pelos chefes tribais do que pelo governo central, e que a grande maioria dos habitantes dessas zonas continuou a viver em condições de pobreza significativa.
Em 1990, quando o bloco socialista estava se desintegrando internacionalmente, o Iêmen do Norte e o Iêmen do Sul decidiram unificar-se. Em 1994, a parte sul do Iêmen, anteriormente socialista, tentou separar-se, o que levou a uma guerra civil e à reunificação sob um modelo definitivamente pró-capitalista, com reformas neoliberais e medidas de austeridade.
É neste contexto histórico que se desenvolveu o movimento houthi, oficialmente conhecido como Ansar Allah.
Os houthis são originários da província de Saada, no extremo norte do Iêmen, junto à fronteira com a Arábia Saudita. O clérigo Hussein Badreddin al-houthi começou a organizar-se contra o governo central liderado pelo presidente Ali Abdullah Saleh, bem como contra as reivindicações da vizinha Arábia Saudita.
História do movimento houthi até aos dias de hoje
Um dos aspectos a se compreender sobre os houthis é o fato de eles serem xiitas zaiditas. Esta é uma seita do islamismo xiita que só é praticada no Iêmen. Cerca de 35% da população é composta por zaiditas. O fato dos houthis serem xiitas, assim como os iranianos, é utilizado como argumento de que são fantoches ou agentes do Irã – uma acusação que tem sido veementemente negada tanto pelos houthis como pelo governo do Irã.
O fato de os houthis terem começado como um movimento zaidita também tem sido utilizado para os acusar de querer ressuscitar a monarquia, uma vez que o imamato que foi derrubado na revolução de 1961 era zaidita. Ironicamente, como vimos, o governo saudita (sunita) interveio do lado do imã xiita zaidita na década de 1960 contra o movimento antimonárquico.
Os houthis têm um histórico de conflitos com o governo central em relação a questões de financiamento e ao desejo de maior autonomia. Hussein Badreddin al-houthi foi um clérigo zaidita e membro do parlamento iemenita de 1993 a 1997. No início da década de 1990, criou o movimento Juventude Crente para reviver o zaidismo. Começou a organizar-se contra o governo central liderado pelo presidente Ali Abdullah Saleh. Na sua opinião, o governo de Saleh estava muito próximo dos Estados Unidos, da Arábia Saudita e de Israel. No início dos anos 2000, ele começou a reunir adeptos em manifestações contra o governo em torno das condições econômicas.
Em 2004, o governo ofereceu uma recompensa pela prisão de al-houthi, depois de seus seguidores terem começado a lutar contra as forças governamentais. Al-houthi foi morto em 2004. Os combates entre o governo e os houthis continuaram durante anos; em 2009, o governo decretou a Operação Punho de Ferro contra os houthis, criando uma crise humanitária. A Arábia Saudita bombardeou locais em Saada enquanto os houthis atravessavam a fronteira com a Arábia Saudita. Os combates entre as forças houthi, de um lado, e o governo iemenita e as forças sauditas, do outro, continuaram até à celebração de um cessar-fogo no início de 2010.
Em 2011, os protestos da Primavera Árabe eclodiram no Iêmen, exigindo a renúncia de Saleh por acusações de corrupção. Os houthis juntaram-se a outros setores da oposição iemenita e da sociedade civil. Os protestos levaram à demissão de Saleh em novembro de 2011. O seu vice-presidente, Abdrabbuh Mansur Hadi, assumiu o poder com um morno apoio popular. Em 2012, ganhou as eleições sem contestação. Estava prevista a elaboração de uma nova Constituição e a realização de novas eleições presidenciais e legislativas. No entanto, este processo não progrediu muito bem, e era impopular em muitos círculos eleitorais.
Os houthis começaram então a consolidar suas forças e territórios. Iniciaram a sua marcha para sul, em direção à capital, no contexto de uma guerra civil quadripartite em desenvolvimento entre os seguidores do que tinha sido o governo central liderado por Saleh, os secessionistas de orientação socialista da antiga República Democrática Popular do Iêmen, a Al-Qaeda na Península Arábica, e também os houthis.
A presença da AQAP (Al-Qaeda na Península Arábica) no Iêmen é um resultado direto das intervenções de Washington no Afeganistão e no Iraque, que remontam ao seu apoio às forças mujahidin anti-soviéticas de Osama Bin Laden no Afeganistão na década de 1980, que incluíam voluntários iemenitas que mais tarde regressaram ao seu país.
Em setembro de 2014, os houthis chegaram à capital, Sanaa. Inicialmente atuando em um papel de guardiões, acabaram tomando o palácio presidencial. Hadi e o seu governo renunciaram no dia 22 de janeiro de 2015 e partiram para Áden, e os houthis se declararam no comando com um conselho presidencial de cinco membros.
Hadi revogou então sua renúncia e os houthis continuaram a sua marcha para o sul, de Sanaa para Áden, e começaram a bombardear a residência de Hadi. A Arábia Saudita, utilizando armas fornecidas pelo Pentágono, começou a lançar ataques aéreos contra o Iêmen em 26 de março de 2015, a pedido de Hadi. Os houthis mantiveram-se resistentes.
“Os nossos combatentes não vão evacuar as principais cidades ou as instituições governamentais”, disse o líder houthi Abdul-Malik al-houthi em 19 de abril de 2015. “Qualquer pessoa que pense que vamos nos render está sonhando.”
Isto deu início à brutal guerra saudita contra o Iêmen, que conduziu o país a um terrível desastre humanitário. No outono de 2023, os combates começaram a abrandar e houve conversações para encerrar o conflito. Os houthis emergiram como a mais forte força militar iemenita que enfrentou a campanha de bombardeio saudita apoiada pelos EUA.
Solidariedade com os povos palestino e iemenita contra as retaliações dos EUA
A grande mídia continua ecoando a posição do establishment da política externa norte-americana ao rotular os houthis como “rebeldes apoiados pelo Irã”, enquanto chamam Hadi de “legítimo” ou “internacionalmente reconhecido” presidente em exílio do Iêmen.
Não cabe à “comunidade internacional” determinar a legitimidade da liderança do Iêmen. É difícil acreditar que a maioria dos iemenitas reconheça a legitimidade de Hadi, que convidou a Arábia Saudita a bombardear o seu próprio país, conduzindo a uma vasta crise humanitária. Os houthis enfrentaram os bombardeios genocidas dos sauditas, apoiados pelos EUA, e emergiram como uma força significativa. Eles estão lançando uma ação militar no Mar Vermelho em solidariedade com a Palestina. Todas as pessoas progressistas devem opor-se à retaliação dos EUA contra o Iêmen e solidarizar-se com os povos palestino e iemenita, apoiando o seu direito à autodeterminação.
(*) Jane Cutter é membro fundadora do Partido pelo Socialismo e Libertação e editora-chefe do site Liberation News.
(*) Tradução de Raul Chiliani