Pesquisador na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) em Paris, o jornalista e cientista político Giancarlo Summa não esconde o alarme nem a indignação. Parece impossível – mas ele teme que o genocídio praticado por Israel em Gaza, que já matou mais de 26 mil pessoas e deixou 95% da população desabrigada, torne-se ainda mais cruel. A causa é um gesto colonial das potências ocidentais. Lideradas pelos Estados Unidos, elas começaram, no último sábado (27/01), a desfinanciar a UNRWA, agência da ONU que dá amparo aos refugiados palestinos em todo o Oriente Médio. Se a decisão não for revertida, uma nova tragédia terá início em dias. Os únicos hospitais, refeitórios, escolas e demais serviços de assistência que ainda prestam socorro a este povo perseguido há 75 anos serão fechados.
O pretexto para sufocar a UNRWA é risível. Uma matéria publicada pelo New York Times, um dia antes de começar a debandada ocidental, aventava a hipótese de 12 funcionários da agência terem auxiliado o Hamas nos ataques a judeus, em 7/10. Os supostos responsáveis nunca foram nomeados, nem apresentadas as circunstâncias em que teriam agido. As “informações”, nunca checadas, teriam partido de fontes israelenses.
A causa real da sabotagem, enxerga Summa, é um ressentimento indisfarçado. Na semana passada, ao condenar Israel e exigir que interrompa o genocício, a Corte Internacional de Justiça de Haia enterrou um velho tabu: o da superioridade moral das potências ocidentais. A chantagem explícita na resposta dada por elas é evidente. É como se dissessem: “não terão nosso dinheiro, se não aceitarem nossas regras”.
Dois pontos se destacam na entrevista que Summa concedeu a Outras Palavras a respeito do tema. Primeiro, a exposição detalhada do papel da UNRWA, quase ignorado, por motivos compreensíveis. A agência, conta o pesquisador, foi estabelecida logo após o Nakba – a grande tragédia palestina, que expulsou de suas casas e terras 500 mil pessoas. Atende cerca de 6 milhões de pessoas, pois atua não só em Gaza e na Cisjordânia, mas também no Líbano, Síria e Jordânia. A grande maioria vive em campos de refugiados, está forçada à desocupação e não tem condições de sobrevivência por seus próprios meios. Mesmo assim, Tel Aviv quer extinguir a UNRWA, pois a existência do órgão traz à lembrança, automaticamente, a ocupação sofrida pelos palestinos… Além de expulsos, precisam, sob esta lógica, ser desreconhecidos, apagados.
Summa também chama atenção para o cenário geopolítico aberto com a retirada ocidental. Está na hora, diz ele, de os BRICS assumirem uma posição mais proeminente na cena geopolítica. A contribuição financeira que os membros do bloco dão à UNRWA ainda é muito reduzida. Sugere hipocrisia. Se os países decidirem cobrir o blefe do Ocidente e sustentar a agência, não socorrerão apenas os palestinos. Criarão um fato político e simbólico de enorme significado e repercussão. A entrevista, que vem a seguir, é uma peça a mais para compreender um mundo em transe civilizatório.
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Sem a UNRWA, a crise humanitária na Palestina será ainda mais cruel em meio a guerra
Antonio Martins – Imediatamente depois da condenação de Israel pela Corte de Haia, um grupo de países ocidentais, liderado pelos EUA, anunciou que irá desfinanciar a Agência das Nações Unidas de Auxílio e Trabalhos para os Refugiados da Palestina (UNRWA). Seria uma medida de “resguardo” diante da suposta participação de funcionários da UNRWA nos ataques do Hamas a Israel, em 7 de outubro. Como se deu esta trama?
Giancarlo Summa – O primeiro país a anunciar a suspensão dos financiamentos foi os Estados Unidos. Depois veio uma série de países ocidentais, aliados tradicionais dos Estados Unidos e que nesse conflito também seguiu a linha americana de não criticar Israel, não forçá-lo a suspender o ataque contra Gaza, que até agora fez mais de 26 mil vítimas, sendo 70% mulheres e crianças, além de milhares de desaparecidos sob os escombros.
Então, depois dos EUA vieram Canadá, Austrália, Reino Unido, Alemanha, Itália, Holanda, Suíça, Finlândia… em seguida, a França e a União Europeia também afirmaram que futuramente vão reconsiderar os financiamentos, ou seja, não anunciaram um corte, mas disseram que no futuro vão reavaliar. O que, na prática, é a mesma coisa.
É preciso salientar que nem toda a Europa se alinhou com essa decisão absolutamente injustificável e atroz tomada pelos Estados Unidos e seguida por outros países. As exceções são poucas: Irlanda e Noruega declararam oficialmente, em público, sua intenção de continuar financiando a UNRWA. A Suécia, que é um grande doador, ainda não se pronunciou. O comunicado da Noruega é interessante, pois diz que se deve fazer uma distinção entre o que indivíduos podem eventualmente ter feito e o que a UNRWA representa e faz.
Isso é dramático, porque esses países e instituições que acabo de nomear representam a maior parte do financiamento da UNRWA. A UNRWA depende de financiamentos feitos todos os anos de forma voluntária. Quer dizer, não é um financiamento obrigatório como aquele para o secretariado da ONU, em Nova York. E os principais países doadores para a UNRWA em 2022 (o último ano sobre o qual há dados oficiais) foram, nessa ordem: Estados Unidos, Alemanha, União Europeia, Suécia, Noruega, Japão, França, Arábia Saudita, Suíça, Turquia, Canadá, Holanda, Reino Unido, Itália, Dinamarca e Austrália.
Na prática, se essa decisão não for revertida, dois terços do financiamento da UNRWA vai evaporar. O que significa bloquear a UNRWA.
É um ataque sem precedentes contra a UNRWA. Evidentemente, pelo timing, isso foi uma resposta desses países, aliados incondicionais de Israel, à derrota diplomática e política pela decisão da Corte Internacional da Justiça de Haia, que na sexta-feira – praticamente por unanimidade, já que teve o voto de 15 dos 17 juízes – declarou procedente a ação legal da África do Sul acusando Israel de violar a Convenção das Nações Unidas para a Prevenção do Genocídio, de 1948. Diante da maior derrota diplomática de Israel e seus aliados em décadas, a resposta foi chamar a atenção sobre um detalhe, porque é disso que se trata, de uma manobra diversionista. E promovem mais um ataque alvejando o principal órgão internacional das Nações Unidas de ajuda aos palestinos.
De onde vêm as alegações? O que significam 12 pessoas no conjunto do pessoal da UNRWA? Como a ONU reagiu?
O New York Times publicou no último sábado, dia 27 de janeiro, uma reportagem com detalhes sobre o dossiê enviado pelo Estado de Israel, em que acusa 12 funcionários palestinos da UNRWA de terem participado diretamente dos ataques de 7 de outubro, ou posteriormente terem fornecido apoio logístico ou ajudado diretamente, por meio das operações da UNRWA, o líder da Jihad Islâmica Palestina, Kattab Amassi. A reportagem não apresenta provas, fia-se apenas na palavra de Israel e seu serviço de espionagem. Mas, veja, a UNRWA tem em seu quadro 13 mil funcionários apenas em Gaza, quase todos recrutados da população palestina – o que é normal na ONU: geralmente há uma pequena minoria de funcionários internacionais e uma grande quantidade de funcionários nacionais que realiza a maior parte do trabalho. No caso da UNRWA, é um trabalho gigantesco, porque essencialmente a ONU fornecia, através da agência, antes mesmo da destruição que está em curso agora, grande parte da educação primária, dos serviços de saúde, da distribuição de alimentos, da distribuição de recursos… Em Gaza, antes da guerra, o desemprego era de 50%, as condições de vida já eram dramáticas.
Doze pessoas em 13 mil é realmente uma gota no oceano. Mas é disso que se trata: Israel, Estados Unidos e outros países aplicam um castigo coletivo contra toda a população palestina – não apenas em Gaza, porque a UNRWA também trabalha na Cisjordânia, no Líbano, na Síria, na Jordânia – por responsabilidades não comprovadas de 12 pessoas entre 13 mil funcionários. É absolutamente inaceitável.
E como a ONU reage? Três dos países que suspenderam os fundos são muito poderosos na ONU: EUA, Reino Unido e França, membros permanentes do Conselho de Segurança. O comissário-geral da UNRWA, Philippe Lazzarini, que é suíço, anunciou que os 12 funcionários foram demitidos e que uma investigação interna será iniciada. Isso é muito grave, na ONU existem regras: neste caso, o funcionário deveria ser suspenso durante a investigação. Para citar um exemplo comparável, no genocídio de Ruanda foi identificada a participação de funcionários nacionais da ONU, porque naquela situação estavam todos se matando. Mas levou anos para demitir essas pessoas, após a comprovação da participação delas. Já os 12 funcionários da ONU foram demitidos sumariamente.
Ao mesmo tempo, Lazzarini e o [secretário-geral da ONU] Antonio Guterres pediram insistentemente apoio nas redes sociais, declarações, etc., para que os países reconsiderem, porque, na prática, ao tornar inviável a continuidade da ação da UNRWA, essa decisão vai condenar à morte milhares de pessoas que não terão mais o que comer, não terão mais nenhum tipo de assistência médica. Em Gaza, a situação é especialmente dramática. Mas nos outros países, embora sem bombas caindo, a situação também é muito complicada.
O que é a UNRWA e qual seu papel no Oriente Médio?
A história da UNRWA se confunde e coincide com a história da questão palestina. Após a criação do Estado de Israel em 1948, centenas de milhares de palestinos foram expulsos de suas terras, no que ficou conhecido como Nakba, ou “a catástrofe”. Cerca de meio milhão de palestinos foram expulsos, tornando-se refugiados. A ONU – que na época era uma organização jovem, fundada em 1945 – criou esta agência especializada em 1949, uma das suas primeiras agências. O nome oficial é Agência das Nações Unidas de Auxílio e Trabalhos para os Refugiados da Palestina no Oriente Próximo. Ela deveria ser temporária, imaginava-se que rapidamente esses refugiados palestinos pudessem retornar às suas terras. Isso não aconteceu. Desde 1949, o mandato da UNRWA é renovado periodicamente. Nesse tempo, os descendentes desses primeiros 450 a 500 mil refugiados se multiplicaram na região. Atualmente, a UNRWA registra e atende 6 milhões de refugiados. Praticamente não há mais sobreviventes daqueles que foram deslocados em 1948, então os refugiados hoje são quase todos descendentes. Esses 6 milhões de refugiados palestinos estão espalhados em Gaza, na Cisjordânia, no Líbano e na Síria.
Ao longo das décadas, a UNRWA se tornou uma espécie de “estado”, pois é o principal provedor de serviços públicos para os refugiados palestinos. A UNRWA administra mais de 700 escolas, embora hoje sejam menos devido à destruição das escolas em Gaza durante a guerra. No início da guerra, havia 706 escolas com 540 mil alunos do ensino primário, e há também o ensino superior. Mas do ensino primário e secundário, praticamente todas as escolas da UNRWA em Gaza e na Cisjordânia foram destruídas.
Além de principal provedor de educação, a UNRWA gerencia 140 centros de saúde com mais de 7 milhões de visitas anuais, mais de 100 centros comunitários para mulheres, com uma série de microempresas para criar microatividades comerciais. Existem, em três países – Líbano, Síria e Jordânia – além da Cisjordânia e Gaza, um total de 58 campos de refugiados, sendo 8 em Gaza, 19 na Cisjordânia, 10 na Jordânia, 12 no Líbano e 9 na Síria. É uma grande operação, com mais de 20 mil funcionários da UNRWA, a maioria dos quais é palestina, incluindo professores, médicos, enfermeiros, motoristas de ambulância, pessoal de logística que trabalha nos centros comunitários, etc.
O ponto é o seguinte: fechar a UNRWA significa privar essa população – que já não tem Estado e vive em campos de refugiados em condições subumanas e degradantes há décadas – dos meios para sobreviver, principalmente em Gaza. Porque é disso que se trata, se não houver mais dinheiro a UNRWA vai fechar ou reduzir as operações a quase nada.
Isso significa literalmente condenar à morte milhares de pessoas, que não podem sair de Gaza, estão sob bombardeio, e a única ajuda humanitária que pode chegar até eles é da UNRWA. Portanto, esta é uma ação extremamente grave, eu diria criminosa, pois é uma ação de punição coletiva de milhões de pessoas, em razão dos delitos ainda não comprovados de 12 pessoas. É ridículo, é um pretexto, mas esta é a situação em que nos encontramos.
O que leva Israel a desejar o fim da UNRWA?
A UNRWA representa duas coisas. Por um lado, essa parte de ajuda concreta, ajuda humanitária e funcionamento mínimo de serviços para tentar dar o mínimo de dignidade e perspectivas para os refugiados. Por exemplo, a questão da educação é fundamental porque é a única forma de educar as futuras gerações, para que não sejam condenadas ao desemprego e a viver só de ajuda internacional.
Mas, para a Israel, a UNRWA é também um problema político, porque a própria existência da UNRWA continua colocando em pauta a questão dos refugiados. Ou seja, os que foram expulsos das suas terras e que, pela lei internacional, teriam direto a voltar para suas casas e suas terras. Agora, acontece que suas casas e suas terras, há muitos anos, se transformaram em Israel e estão sendo ocupadas por judeus.
Israel rejeita a própria ideia de que essas pessoas tenham direto a voltar para as terras originárias, porque diz que, se milhões de palestinos voltassem para suas terras ancestrais, das quais foram expulsos, o caráter judaico de Israel terminaria. Desse ponto de vista, a própria existência de uma agência que trabalha com os refugiados é complicada. Ou seja, cria um grande obstáculo político-diplomático para a estratégia de Israel, que é, evidentemente, a eliminação dos palestinos como povo que possa, no futuro, ter um Estado.
É evidente que Israel, pelo menos desde o assassinato de [Yitzhak] Rabin, em 1995, não tem nenhuma intenção de deixar os palestinos terem um Estado e, ainda menos, de permitir a integração dos palestinos em Israel.
Por isso Israel tem como objetivo estratégico eliminar a UNRWA. Para eles seria muito mais simples se a UNRWA não existisse e os mesmos serviços fossem providenciados por outras agências da ONU, porque Israel também não quer, evidentemente, se encarregar de fazer tudo isso. E também, nem poderia fazer no Líbano, na Síria ou na Jordânia. Mas, para Israel, seria mais fácil se os refugiados fossem apoiados, em algumas coisas, pelo ACNUR [Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados], a Organização Mundial da Saúde, o Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], etc.
Mas, os palestinos reivindicam a UNRWA exatamente por essa razão. É uma agência na qual, se a liderança é internacional, os gerentes são quase todos estrangeiros, a grande massa de funcionários é palestina. Pode-se dizer que é o embrião da burocracia do Estado palestino, assim, é como o Estado palestino foi de algum modo criado.
Então, no domingo, o Ministério das Relações Exteriores de Israel deu uma declaração de que o plano do país é expulsar a UNRWA da faixa de Gaza. Isso vem junto com a possibilidade, que a extrema-direita israelense está promovendo, de voltar a ter colônias em Gaza, de onde eles saíram em 2005.
A justificação disso é, como sempre, que, segundo Israel, a existência da UNRWA perpetuaria o conflito israelo-palestino, estendendo o status de refugiado para milhões de descendentes dos palestinos expulsos – mas pelas convenções da ONU, os descendentes de refugiados são refugiados.
Israel periodicamente ataca a UNRWA, lança campanhas alegando que a UNRWA educa os alunos a perpetrar o genocídio contra Israel, a matar Israel, a negar a existência de Israel, etc. Periodicamente surgem escândalos, etc., e na maioria das vezes a ONU investiga rigorosamente essas acusações, mas todas as investigações, no final, acabam sempre mostrando que as acusações são sem fundamento.
De que forma o Brasil participou e participa da UNRWA?
O Brasil tradicionalmente tem uma posição, que nunca mudou – exceção feita aos quatro anos do Bolsonaro –, que é uma posição muito enfática de defesa do direto do povo palestino e da solução de dois Estados, ou seja, a criação do Estado Palestino.
Agora, durante o governo Lula II, principalmente, como sabemos, teve uma fase de grande expansão da política externa brasileira, que viu o estabelecimento dos BRICS, da Unasul [União de Nações Sul-Americanas], da CELAC [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos], etc. Nessa época, e depois no governo Dilma, o Brasil começou a contribuir de forma importante para a UNRWA, tanto em dinheiro quanto em ajuda humanitária concreta – especificamente com o fornecimento de arroz, que vinha dos estoques estratégicos do Brasil, que era distribuído através da Síria ou do Líbano. A logística era muito complicada, mas efetivamente chegaram milhares de toneladas de arroz enviadas pelo Brasil, tanto para a UNRWA, como a maior parte para os próprios territórios na Cisjordânia e em Gaza.
E também, já aconteceu que, quando faltavam algumas centenas de milhares de dólares para fechar o orçamento anual, íamos eu, que era diretor de comunicação da ONU para o Brasil, e Filippo Grandi, que era o Comissário-Geral, ou seja, o chefe da UNRWA, para Brasília e o governo se dispunha a encontrar dinheiro para ajudar a fechar a conta. Sempre fomos escutados com muita atenção e apoiados, tanto no Itamaraty como no Planalto. O Marco Aurélio Garcia foi um grande aliado, assim como o Samuel Pinheiro Guimarães, que acaba de falecer, e o Celso Amorim. E depois dele, já no governo Dilma, o chanceler Antonio Patriota.
Naturalmente, com o Bolsonaro esse trabalho implodiu. Então, em 2022, o último ano do qual temos dados, o Brasil contribuiu com apenas US$ 75 mil, de um orçamento total de US$ 750 milhões; portanto, o Brasil proveu 0,01% do orçamento, quase nada.
Na América Latina, o Brasil permaneceu na comissão consultiva da UNRWA. Foi o primeiro e, até agora, o único país latino-americano a participar desse organismo, e a comissão tem 29 membros e quatro observadores.
Então, com o Bolsonaro, não era o maior apoiador da UNRWA nem na América Latina. Em 2022, o México contribuiu com US$ 750 mil, o Chile, menos, US$ 12,5 mil.
Em 2023, a contribuição do Brasil continuou simbólica, e no mesmo valor (75 mil dólares), que no ano anterior. Mas na Conferência Humanitária Internacional pela População Civil de Gaza, que aconteceu em Paris em 9 de novembro 2023, Celso Amorim anunciou que o Brasil estava preparando uma contribuição mais substancial, que seria comunicada em breve. Só que até agora não há notícia desta contribuição mais relevante.
É importante destacar o papel fundamental que teve, nessa empreitada, o diplomata brasileiro Milton Rondó. Quem lançou a primeira ideia fui eu, conversando com [o assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais] Marco Aurélio Garcia, com [o ministro das Relações Exteriores] Celso Amorim. Mas quem realmente operacionalizou pelo lado do Brasil, que também estava no topo de tudo isso, foi, primeiro, um grande diplomata que era Paulo Cordeiro, que morreu em um acidente de carro. Ele lidava com o Oriente Médio, e realmente esteve lá batendo às portas do Ministério do Planejamento, conversando com o ministro da Agricultura, vendo os estoques de arroz, etc. E depois foi o Milton Rondó, que atuava como coordenador geral das ações internacionais de combate à fome da Secretaria-Geral das Nações Unidas. Milton foi exonerado em junho de 2016, porque havia tentado atuar no Itamaraty para barrar o golpe contra a Dilma. Milton essencialmente foi obrigado a se aposentar, ainda jovem. Não houve nenhum tipo de reparação. Era o governo interino do Michel Temer, com o José Serra como ministro das Relações Exteriores. Na época, o PT protestou, mas depois nada foi feito para reparar a injustiça que foi perpetrada contra o Milton Rondó.
É interessante notar que todos os países fundadores dos BRICS financiam a UNRWA, todos com valores maiores que o Brasil. Em 2022, foram US$ 2 milhões da Rússia, US$ 5 milhões da Índia, US$ 1 milhão da China e US$ 171 mil da África do Sul. Juntando todos os BRICS, em 2022, a contribuição soma pouco mais de 1% do orçamento da UNRWA. Portanto, há um problema, o fato de que o Sul global fala muito de solidariedade, etc., mas depois contribui com muito pouco dinheiro.
Nesse sentido, os países árabes também não são muito generosos. A Arábia Saudita, em 2022, fez a maior doação dos países árabes, US$ 27 milhões, mas isso é menos do que a França, o Japão, a Noruega, etc.
Na região, a Turquia, que não é um árabe, mas é um país muçulmano, tem uma boa participação, e depois vem o Kuwait, o Catar, etc., mas com quantias marginais, ainda que o Catar tenha contribuído sozinho com um valor maior do que todos os BRICS juntos.
Então, há, digamos, uma hipocrisia do Sul Global, no qual se ataca justamente essa política de “padrão duplo” (double standard), esses critérios que são utilizados de forma diferente pelos países ocidentais. Mas o Sul Global também não faz muito para ajudar, não faz o suficiente para ajudar os palestinos.