A atual escalada do conflito na Palestina com a sua insurgência e as incursões militares como resposta de Israel desde o 7 de outubro, o tema do terrorismo retornou às principais manchetes do mundo. Grupos como o Hezbollah, por exemplo, foram classificados como terroristas e extremistas. Inclusive, no Brasil, a organização política libanesa recebeu destaque após uma investigação da Polícia Federal prender duas pessoas suspeitas de estarem planejando um atentado terrorista a entidades sionistas no país.
O Hezbollah, agora, recebe o destaque midiático na cobertura do conflito israelo-palestino como um dos grandes inimigos públicos do mundo livre e da democracia ocidental. Qualquer análise que se proponha a estudar o Hezbollah precisa considerar dois eventos fulcrais que envolvem o contexto de surgimento da organização: a guerra civil libanesa (1975-1990) e a invasão israelense em 1982 ao Líbano. Além disso, é necessário também incorporar nos estudos as múltiplas camadas que o compõem: as ideologias religiosas, políticas, atuação como milícia armada, como partido político, atuação interna e atuação regional.
A Opera Mundi, Karime Cheaito, mestre em Estudos Estratégicos (PPGEST/UFF), cientista Social (UNESP), pesquisadora no Laboratório Nexus (INEST/UFF) e no grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP), conversou conosco sobre a história, modus operandi e conjuntura atual. A cientista afirmou que o Hezbollah emergiu em 1982 “como resposta à invasão de Israel”, conhecida como Operação Paz na Galileia, concebida e orquestrada pelo general Ariel Sharon, então ministro da Defesa israelense.
Segundo a especialista, os membros fundadores do Partido de Deus (Hezbollah, em árabe) eram “fortemente influenciados pelas ideologias do aiatolá iraniano Khomeini e da Revolução Iraniana, sendo o Irã o principal financiador, treinador e apoiador do grupo”.
Modus Operandi
No documento de sua fundação, em 1985, os objetivos políticos e sociais enfatizam a posição do grupo como resistência islâmica e a necessidade do Líbano retomar sua soberania diante da invasão israelense, declarando como inimigos os Estados Unidos e Tel Aviv. Na Carta Aberta, o Hezbollah se oficializou como organização política, braço armado e resistência islâmica.
Cheaito disse ainda que no início da década de 1990, com o fim da guerra civil libanesa, o Hezbollah buscou se “transformar de milícia para partido político legalizado e disputou as primeiras eleições no pós-guerra”.
Por conta disso, conquistou uma representação política para a comunidade xiita que era, até então, sub-representada e negligenciada pela classe política libanesa. Contudo, Hezbollah afirmou que não abriria mão da tática militar, devido, segundo o argumento exposto, à presença e constantes ameaças de Israel. O país de Benjamin Netanyahu foi expulso do Líbano nos anos 2000, ainda que desde 1967 mantenha bases militares nas Fazendas de Shebaa (faixa de terra próxima da tríplice fronteira entre Síria, Líbano e Israel).
“No interior do Líbano, principalmente no Sul e no Vale do Bekaa, destaca-se o papel do partido no fornecimento de uma extensa rede de serviços sociais e infraestruturas, os quais o Estado deficitário e ineficiente não provém à população, serviços estes oferecidos a baixo custo ou até de forma gratuita”, disse ela a Opera Mundi.
Reprodução – Captura de tela de Al Manar
Hassan Nasrallah é líder do Hezbollah desde 1992
Com isso, hoje, o Hezbollah é a organização política mais poderosa e efetiva do país no que concerne ao fornecimento de serviços sociais altamente eficientes e os membros podem usufruir, gratuitamente ou por valores populares, os serviços prestados pelas instituições sociais do Hezbollah.
Situação atual na fronteira
Analisando os discursos da liderança atual do Hezbollah, Sayyed Hassan Nasrallah, Cheaito evidenciou o desinteresse – por questões, principalmente, domésticas – de abrir uma frente ampla e mais agressiva na fronteira sul do Líbano.
“A primeira reação da organização, após o 7 de outubro, foi o ataque – em demonstração de apoio aos movimentos palestinos em Gaza – às Fazendas de Shebaa. Depois, iniciaram-se as trocas na fronteira. A estratégia do Hezbollah era forçar o deslocamento das forças israelenses para o norte para despressionar os ataques em Gaza.”, afirmou.
Até o momento, as tensões ora aumentam, ora diminuem e mostram uma “troca equilibrada e moderada”. Os ataques estão centrados na região da fronteira, com o Hezbollah visando, principalmente, as bases militares de Israel.
A invasão militar de Israel em Gaza, em poder de destruição sem limites que atinge civis e o uso de substâncias como o fósforo branco – proibido internacionalmente – nas últimas semanas, fizeram com que o Hezbollah aumentasse a frequência dos ataques. A pesquisadora chamou atenção de que ainda não podemos dizer – ou prever – um aumento da escalada.
Porém, a cobertura midiática atual induz ao erro de inserir o Hezbollah no guarda-chuva de terroristas, equiparando com a Al-Qaeda, Estado Islâmico (ISIS), entre outros. Pois se trata de uma organização multifacetada e características muito diferentes do que se observa em outras organizações de caráter islâmico, os membros do Hezbollah não são “pregadores” da organização ou da religião, nem são “recrutadores” de novos membros. A especialista consultada por Opera Mundi comenta que “na própria sociedade libanesa e, principalmente, onde o Hezbollah possui um domínio local, seus membros são discretos no cotidiano e não revelam sua filiação ao público”.
Devido às recentes acusações da Polícia Federal, fundamentadas em suposições plantadas pelo Mossad (órgão de inteligência israelense), de uma suposta atuação de “células” do Hezbollah no Brasil, ou, ainda, recrutamento de brasileiros para realizar “atentados”, o governo brasileiro foi exposto ao constrangimento. Questionada sobre o assunto, Cheaito arrematou: “esse não é, historicamente, o modus operandi da organização. O último atentado que, comprovadamente, teve participação de membros do Hezbollah ocorreu na década de 1980, no Líbano, no contexto específico da guerra civil libanesa”. Além disso, com exceção da guerra da Síria, não há comprovações de atuação armada do Hezbollah fora do Líbano. Suas atividades, historicamente, se caracterizam pela segurança e defesa do território libanês.
O grupo tem a reputação de operações sofisticadas, sigilosas e habilidosas e o recrutamento de seus membros, como mencionado anteriormente, não se caracteriza por propaganda. Karime explica que os membros da organização se dividem em diferentes setores, “tanto nos que realizam as operações armadas, como os que prestam serviços ao partido”. De acordo com pesquisas realizadas por estudiosos libaneses e em contato direto com a organização, os candidatos passam por diversos tipos de treinamentos e educação teórica. “Seus membros são, quase em sua totalidade, libaneses e xiitas, e não se tem comprovação de formação de células em qualquer outro país”, conclui.