Apesar de ter tido o apoio, durante sua campanha presidencial, de setores favoráveis à Palestina, o presidente norte-americano Joe Biden representa mais uma continuidade do que uma ruptura com a política de Donald Trump para a questão Israel-Palestina. Essa é uma das conclusões da pesquisa “Continuidades entre as políticas externas de Biden e Trump para Palestina/Israel”, recém publicada pelos pesquisadores Bruno Huberman e Reginaldo Nasser, ambos professores de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
De acordo com os professores, quem de fato fez uma “virada” histórica nas posições norte-americanas para a questão Israel-Palestina foi Trump, “o primeiro líder a acabar com qualquer forma de mediação com os palestinos e assumir uma posição radicalmente favorável aos israelenses”. Ao assumir a presidência, no entanto, Biden tem “mantido o status quo estabelecido pelo seu antecessor sem qualquer tipo de contrapeso relevante em relação aos palestinos”, em oposição a seu próprio eleitorado e, inclusive, a administrações republicanas anteriores, como a de George H. W. Bush ou Ronald Reagan, que de alguma forma pressionaram Israel por uma solução do conflito.
Para os autores do trabalho, alguns fatores a explicar essa posição é a perda da importância do Oriente Médio na política externa dos EUA, substituído pela Rússia e China; a aproximação de Israel com países árabes promovida por Trump e a força do lobby pró-Israel dentro dos Estados Unidos.
Para esclarecer mais as posições de Biden sobre a questão, bem como as tensões entre os próprios norte-americanos neste campo, Opera Mundi entrevistou um dos autores do trabalho, Bruno Huberman, que além de professor da PUC-SP e doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, é vice-coordenador do Grupos de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) e pesquisador do Instituto de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA (INEU).
Opera Mundi: É sabido que Estados Unidos e Israel sempre tiveram uma relação muito próxima. No entanto, no trabalho vocês dizem que “Trump foi o primeiro líder a acabar com qualquer forma de mediação com os palestinos e assumir uma posição radicalmente favorável aos israelenses”, e lembram que durante as gestões de Bill Clinton e Barack Obama houve um “alimentar das ilusões de que os EUA poderiam ser verdadeiramente comprometidos com a independência da Palestina”. Como se deu historicamente a relação norte-americana com a questão Israel-Palestina, e em que medida isso foi alterado sob Trump?
Bruno Huberman: É uma aliança que é selada particularmente após a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias (1967), quando Israel se consolida como uma liderança militar importante no Oriente Médio, enfrentando o nacionalismo árabe. Dentro da política dos Estados Unidos da Guerra Fria, de “esferas de influência”, Israel se torna um ator importante para confrontar a influência soviética por meio do nacionalismo árabe, particularmente no caso do Gamal Abdel Nasser, no Egito, e outros partidos nacionalistas árabes mais alinhados ao socialismo.
Nesses primeiros anos não há uma pressão de fato por uma solução da questão palestina. Essa pressão surge com o massacre de Sabra e Chatila (1982), quando, durante um cerco israelense a Beirute, a milícia falangista libanesa, de direita, faz um massacre que mata por volta de 3 mil palestinos nos campos de [refugiados] de Sabra e Chatila, durante a Guerra Civil Libanesa. E o presidente dos EUA na ocasião é o Ronald Reagan – que está longe de ser um cara de esquerda –, mas que é o primeiro a colocar a questão palestina como um elemento central de sua agenda externa para o Oriente Médio. E isso vai se tornar uma política urgente no governo do seu sucessor, que é o Bush pai. Porque no período de transição para o pós-Guerra Fria, Israel deixa de ser um aliado fundamental, para se tornar, em certo sentido, um problema. Essa aliança [EUA-Israel] ganha um novo status depois da Revolução Islâmica no Irã, quando os EUA perdem seu maior aliado na região, que era o Irã do xá [liderado pelo xá Mohammad Rezā Shāh Pahlavi], e Israel e Arábia Saudita passam a se tornar esses aliados, assim como o Egito, a partir de 1979, quando é feita a paz entre Israel e Egito, mediada por Jimmy Carter. Ali, no acordo de Camp David (1979), já é prevista, em certo sentido, a resolução da questão palestina, mas isso não foi levado adiante, digamos. Há uma pressão maior a partir de 1982, depois de Camp David, e ela cresce em 1987, depois do início da Primeira Intifada, quando há uma tensão global para a questão palestina, talvez semelhante com a que a gente assiste nestes dias.
Mas em 1991, quando há a Guerra do Golfo, Israel se torna um problema. Porque o Golfo permite que todo o Oriente Médio se torne aliado dos EUA; todo mundo apoia a intervenção multilateral norte-americana contra a invasão liderada pelo Iraque do Saddam Hussein, e os palestinos cometem um erro histórico, que é apoiar o Saddam. Isso promove a expulsão de todos os palestinos do Kuwait, e o Arafat fica muito isolado politicamente: perde financiamento de países árabes, perde apoio político que tinha de outras nações árabes. É um momento de transformações, e esse momento é visto como uma oportunidade, pelo Bush pai, de promover a paz no Oriente Médio, e aí há as conferências de Madri. Que são multilaterais; envolvem libaneses, sírios, jordanianos, palestinos e israelenses. E o Bush pai corta a ajuda dos EUA para Israel para que Tel Aviv aceite sentar nas negociações. Ou seja: os EUA pressionam, praticamente coercitivamente, Israel a aceitar isso, e convence as elites israelenses quando apresenta seu plano de criar uma espécie de “ALCA” [Área de Livre-Comércio das Américas] no Oriente Médio; uma zona de livre comércio que iria do Norte da África até o Oriente Médio, hegemonizada pelos Estados Unidos e selada a partir da paz da questão Palestina-Israel e das demais nações árabes [com relações] conflituosas com Israel. Isso sim era um elemento central.
Então o que a gente vê é, do Reagan, uma acentuação dessa pressão, que se fortalece com o Bush pai, e o Clinton mantém essa política. O Clinton fica visto como esse homem “da paz” e tudo mais, mas ele não consegue pressionar Israel a ceder em pontos importantes e de fato criar o Estado da Palestina. Os Acordos de Oslo não prevêem a criação de um Estado da Palestina, não prevêem Israel ceder em pontos importantes, como Jerusalém, ou blocos de assentamento, direito de retorno, etc.; as questões mais delicadas. A Cúpula de Camp David, em 2000, deu o seguinte resultado; o Yasser Arafat nega as negociações de status final e o resultado é a Segunda Intifada.
O Obama volta como esse grande líder, o cara que “realmente entende a questão palestina”, um cara que briga com Netanyahu, impõe um congelamento na construção de assentamentos, e que tem, como seu último ato, não vetar uma resolução no Conselho de Segurança da ONU que criticava a construção de assentamentos judeus na Cisjordânia e Faixa de Gaza, porque dizia que os israelenses não estavam mais dispostos a negociar. Foi durante a gestão Obama que as negociações paralisaram. O Bush filho até tentou, fez um “Roadmap for Peace” [Plano para Paz] e tudo mais, tenta avançá-lo, aos trancos e barrancos, mas é Obama quem, digamos, fracassa.
Porque nos Estados Unidos, entre Republicanos e Democratas, estes últimos sempre se colocam como “mais aliados” dos palestinos; era assim que o Biden buscava se colocar. Mas nunca foram aliados verdadeiros. Na história, os Republicanos fizeram esforços até mais significativos no sentido de empurrar os israelenses às negociações do que os Democratas, eu diria. Embora Bill Clinton tenha sido o sujeito que celebrou os acordos, celebrou um acordo ruim, um acordo que não trouxe paz. O que argumentamos é que a intenção não era a paz; a intenção era reorganizar as relações de poder ali para permitir a colonização por novos meios, que é o que temos visto nos últimos anos.
U.S. Embassy Jerusalem / Flickr
Joe Biden, então vice-presidente dos EUA, se encontra com o premiê Benjamin Netanyahu durante visita a Israel el março de 2016
Já Trump foi um sujeito que, – desde Jimmy Carter, que deu uma sinalização a favor das posições palestinas nas negociações de Camp David –, foi o primeiro a ignorar completamente a questão palestina ao lidar com o Oriente Médio. Desde o Lyndon Johnson, que sela a aliança em 1967 com Israel, até o Donald Trump. Então é uma mudança; ele ignora a questão palestina, corta relações com a Organização pela Libertação da Palestina (OLP), fecha representação diplomática, fecha financiamento para a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA), tenta impor uma paz unilateral, sem negociar com os palestinos. Tenta resolver a questão palestina sem os palestinos, e nesse sentido Trump foi uma mudança.
E Biden, que vem depois, de alguma forma legitima as coisas que Trump fez. Faz mudanças que não retomam algo sequer na direção de Obama ou Clinton, que eram mais duros com Israel do que Biden. O Biden é muito mais Trump do que qualquer Democrata, desde o Jimmy Carter, certamente. O Lyndon Johnson seria algo próximo disso.
Duas das razões que apontam para essa manutenção da política de Trump para a questão Palestina por parte de Biden é a aproximação que houve entre alguns países árabes e Israel, ainda sob o governo Trump, e o fato de haver uma priorização na política externa norte-americana para a China e a guerra Rússia-Ucrânia. Há a possibilidade dos ataques do Hamas no dia 7 de outubro mudarem esse cenário, forçando os Estados Unidos a tomar uma postura mais ativa em relação à questão e possivelmente conter Israel em alguma medida?
Por enquanto, não vejo o ataque de 7 de outubro alterando a orientação do Biden em relação a Israel. O que vemos é o contrário: o fortalecimento dessa aliança em detrimento da questão palestina. Nós argumentamos que o Biden buscou retomar uma moderação e uma mediação para buscar, em algum sentido, “amenizar” as insatisfações dos palestinos, mas não fez nada de efetivo. E a ausência de algo efetivo está no ataque do Hamas.
O que Biden fez foi não pressionar Israel a retomar as negociações com os palestinos, e continuar a normalização das relações no Oriente Médio, ou seja: continuar a lógica do Trump dos Acordos de Abraão, tendo como principal prêmio a Arábia Saudita. Isso certamente esteve no horizonte dos ataques do Hamas.
Outro elemento que apontam é a força do lobby pró-israelense nos Estados Unidos. Muitos mencionam esse aspecto, dizendo inclusive que Israel teria uma posição única dentro do sistema imperialista, já que – ao contrário de outros países que compõem essa cadeia – consegue influir até na política interna norte-americana. Por que o lobby pró-israelense é tão forte? O que diferencia a diplomacia israelense da de outros países que também são aliados dos Estados Unidos?
Em relação ao lobby, todo país tem lobby nos EUA, é algo normal. Não saberia dizer comparativamente – porque é algo que nunca estudei; o lobby israelense em comparação com outros lobbies –, mas a força do lobby israelense se dá muito através de seu poder de financiamento de campanhas, que é algo bipartidário. São várias organizações que compõem esse lobby, a AIPAC é a principal delas, mas o ponto central é algo que apontamos no artigo: que se você for um candidato, seja Democrata ou Republicano, e você começa a ter posições favoráveis a Israel, a chance de você ter financiamento é muito grande. Ainda mais se você for candidato em um distrito em que seu rival tem posições a favor dos palestinos. Mesmo que a priori você não tenha posições a favor de Israel, você começa a ter financiamento uma vez que toma posições favoráveis. Então a posição dos políticos que são eleitos para o Congresso dos EUA e para cargos do Executivo passa a ser muito influenciada pelo financiamento das campanhas – porque lá não há financiamento público, como há aqui.
Então o lobby financia “SuperPACs” [“Comitês de Ação Política”, entidades de financiamento de candidatos nos EUA] e outras formas de apoio a campanhas de candidatos pró-Israel. E o resultado é que a representação política nos Estados Unidos é muito discordante em relação à opinião pública sobre a questão Palestina-Israel. A opinião pública nos Estados Unidos está cada vez mais se direcionando em favor dos palestinos, particularmente entre eleitores Democratas e eleitores jovens. Hoje em dia temos uma posição muito favorável ao cessar-fogo entre a população norte-americana, por exemplo, que não está presente entre os representantes. Então [o lobby] é uma interferência no funcionamento dos mecanismos da democracia liberal norte-americana. Dentro da lei – não é algo que fere a lei –, mas é uma atuação estratégica, em diversos estados, com representantes estaduais e nacionais, de construir uma representação política que defenda os seus interesses no Congresso e no Executivo.
Eu acho que, de fato, não há uma organização ou uma nação que tenha uma atuação tão forte dentro do império, porque acho que não haja nenhuma outra nação do mundo que dependa tanto dos Estados Unidos para a sua existência. Nenhuma outra nação no mundo tem sua existência completamente vinculada à defesa que os EUA faz da existência dela. Então dentro da teoria realista das relações internacionais – os dois autores do livro “O Lobby Israelense”, John Mearsheimer e Stephen Walt, são realistas – é algo lógico, é algo racional; o Estado sempre busca sobrevivência, e a sobrevivência do Estado de Israel é fundada no seu poder militar e no apoio dos EUA. E para manter o apoio dos EUA mesmo quando a opinião pública norte-americana está contra, se faz o jogo da representação parlamentar e executiva. E fazem muito bem feito; porque nenhum outro país depende tanto dos EUA, econômica e politicamente, quanto Israel.
Você menciona como a posição do povo norte-americano, dos eleitores democratas, e especificamente dos jovens quanto à questão palestina destoa das posições de seu governo. Um dado impressionante é que 61% dos jovens norte-americanos têm visões mais favoráveis aos palestinos do que aos israelenses. Isso é uma novidade na política interna norte-americana? Você crê que esta pressão interna pode persuadir os líderes dos EUA a uma política mais favorável aos palestinos no futuro?
Sim, é uma mudança, até onde consigo acompanhar. Precisaríamos fazer uma pesquisa histórica dos dados, mas até os dados que acompanho, de meados dos anos 2000 para cá, é uma mudança. Porque na opinião pública norte-americana o fracasso da paz era responsabilidade dos palestinos, o terror palestino seria o grande responsável pelo fracasso da paz, a guerra ao terror fortaleceu muito a opção militar israelense de trazer “calma” em detrimento de uma solução justa que traga paz – esse tem sido o objetivo político israelense, e acho que continua sendo no atual ataque a Gaza; trazer calma para o seu cidadão.
E de fato há uma mudança, que passa por mudanças na sociedade norte-americana de forma geral. Querendo ou não, anos atrás não havia coisas como o Democratic Socialists of America (Socialistas Democráticos da América – organização de esquerda que tem atuado dentro do Partido Democrata) elegendo representantes como está elegendo. E muitos deles favoráveis à questão palestina. Há também o Jewish Voice for Peace (Voz Judaica pela Paz) fazendo protestos gigantescos hoje em dia nos Estados Unidos – judeus em favor da causa palestina. Há movimentos indígenas, movimento negro, o Black Lives Matter muito apoiador da causa palestina. Então creio que a mudança da política norte-americana para a esquerda, de pessoas abaixo de 40 anos, tem significado uma solidariedade maior com a causa palestina. A grande questão é se essa base eleitoral vai ter capacidade de mudar a composição dos representantes no Congresso e no Executivo, que representem de fato a sua posição. Porque as burguesias e as elites políticas norte-americanas são muito fortes e muito sionistas. Isso não mudou.
Então essa mudança passa pela luta de classes, como já está passando, mas acho que vai haver um acirramento da luta de classes num próximo período em torno disso. Já estamos tendo uma amostra disso nesses dias, e os norte-americanos vão ter de entender se a questão palestina é algo caro a eles mesmo ou não.
Mas sim, acho que, no futuro, talvez o Biden seja o último presidente que é um grandessíssimo aliado de Israel, caso Trump não o suceda. Mas entre os Democratas, acho que sim; creio que no futuro, para um Democrata ter apoio, vencer primárias e depois ser eleito, terá de ter uma posição mais favorável à questão palestina. Está havendo pesquisas esses dias: os eleitores Democratas apoiam fortemente o cessar-fogo, até a maioria dos eleitores Republicanos apoiam. Ou seja: não faz sentido dizer que o apoio do Biden a Israel é cálculo eleitoral. Não faz sentido. É prejuízo eleitoral.
Então o que ajuda a explicar essa posição é outra coisa; a posição individual do Biden, a composição do Congresso, influências que há no Executivo, alianças com certos setores da burguesia americano-israelense – isso explica; cálculo eleitoral não. Porque se for por cálculo eleitoral, com suas posições ele está perdendo votos.