Há dez anos, em novembro de 2013, os ucranianos começaram a tomar as ruas de Kiev para protestar contra a decisão do então presidente Victor Yanukovich de cancelar um acordo econômico de integração à União Europeia. O caminho adotado por Yanukovich foi encarado como uma forma de atender aos interesses da Rússia.
A intensa onda de protestos se arrastou até fevereiro de 2014 e resultou na derrubada do presidente, mergulhou o país em uma guerra civil e é o principal ponto de inflexão para explicar a atual guerra da Rússia com a Ucrânia.
O estopim para o início do movimento foi uma negociação sobre um acordo de associação entre Ucrânia e União Europeia (UE) que já durava mais de um ano. Apesar de ser um acordo estritamente comercial – uma possível entrada do país na UE não estava em pauta –, a negociação entusiasmou a parcela da população que via a Europa ocidental como o caminho natural para o país.
No entanto, em 21 de novembro de 2013, o Gabinete de Ministros da Ucrânia anunciou a suspensão dos preparativos para a celebração do acordo. Foi o suficiente para que manifestantes passassem a ocupar a praça Maidan (Praça da Independência), no centro de Kiev, dando início ao que ficou conhecido como Euromaidan.
Posteriormente, os manifestantes decidiram manter a ocupação da praça e dar aos protestos um caráter permanente, montando acampamentos e mobilizando mais gente para pressionar o governo. Em 30 de novembro, uma repressão policial desproporcional e violenta para impedir a permanência dos manifestantes foi o estopim para que o movimento aumentasse radicalmente, levando até 800 mil pessoas à capital Kiev. A escalada dos protestos trouxe nacionalistas de extrema direita para os atos e a violência nas ruas só teria fim em fevereiro de 2014. Centenas de pessoas morreram.
A motivação do governo ucraniano para abandonar as negociações com a UE foi justificada pela necessidade de fortalecer as relações econômicas com a Rússia e os países da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), pois o país estava experimentando “uma queda na produção industrial e nas nossas relações com os países da CEI”.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o doutor em Ciência Política pela Universidade Estatal de Moscou, Stanislav Byshok, afirmou que a instauração da revolta e o aumento da violência em Kiev foi o resultado de dois fatores que inicialmente não estavam relacionados: a brutalidade policial e o sentimento anti-Rússia.
De acordo com o cientista político, que esteve em Kiev e acompanhou os primeiros meses das manifestações, os protestos que aconteceram após a primeira semana já não eram apenas sobre a associação com a União Europeia. O aumento exponencial dos atos combinava a ideia da integração europeia com uma narrativa de que aquela violência policial representava o modus operandi da influência russa sobre o governo Yanukovich.
“Se combinaram esses dois momentos inicialmente não relacionados: a brutalidade policial, incomum para a Ucrânia até aquele momento, e essa ideia da integração europeia, que novamente se tornou popular justamente por causa das vítimas dos protestos”, argumenta.
Vale lembrar que a Ucrânia sempre foi um país plurinacional e historicamente dividido entre ucranianos pró-Ocidente e pró-Rússia, com uma forte presença de russos no leste ucraniano. Assim, o próprio presidente Yanukovich, que adotava uma posição pró-Rússia, teve grande desgaste, inclusive no leste ucraniano, onde tinha popularidade.
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Praça Maidan, no centro de Kiev, usada por manifestantes contra fracasso de acordo entre Ucrânia e União Europeia
“Se a Ucrânia ocidental não gostava dele porque ele era pró-russo, no leste, pelo contrário, ele passou a ser considerado traidor dos interesses de ucranianos russófonos, porque ele estaria oscilando entre esses dois ‘ramos’. Resultou que ele caiu no meio dessa divisão, então ninguém mais o apoiava. Por outro lado, os protestos que aconteceram em Kiev e em outras cidades passaram a ter mais e mais gente, e a polícia já não conseguiu controlar pelos métodos comuns”, destaca Byshok.
Com a expansão das pautas dos protestos e o aumento da instabilidade, as ruas passaram a ganhar uma conotação cada vez mais marcada pelo distanciamento da Rússia e a ter uma forte presença de um nacionalismo de extrema direita.
Os manifestantes também passaram a exigir cada vez mais a renúncia do presidente Victor Yanukovich, que acabou fugindo do país em uma operação auxiliada pela Rússia. A tomada de poder pela oposição alavancou membros do Pravy Sektor (Setor de Direita), conhecido por sua associação como o neonazismo, a cargos de alto escalão no governo.
Revolução ou golpe?
Celebrado como um processo revolucionário e democrático pelo atual governo ucraniano e por grande parte da população do país, as revoltas de Maidan são controversas por terem derrubado um presidente democraticamente eleito nas urnas. Além disso, as manifestações tiveram apoio direto de lideranças ocidentais, com autoridades europeias e norte-americanas participando presencialmente dos atos em Kiev.
A interferência externa foi vista por Moscou como um processo golpista, que resultou em uma guerra civil no país, com a revolta de separatistas na região de Donbass, apoiados por Moscou, e os consequentes bombardeios de Kiev contra estas regiões no leste da Ucrânia.
Não à toa, a narrativa usada pelo Kremlin para justificar a guerra na Ucrânia é de que a “operação militar especial” tem como objetivo “desnazificar” a Ucrânia e defender a população russa do “regime ilegítimo de Kiev”.
Para o cientista político Stanislav Byshok, é inegável que havia elementos golpistas nos processos de Euromaidan, mas ele destaca também que os protestos podem ser considerados revolucionários no sentido de alterar radicalmente – e para sempre – os rumos da Ucrânia a partir de 2013-2014.
“Havia elementos golpistas, no sentido de que grande parte das pessoas que trabalhavam com Yanukovich rapidamente passaram a impulsionar e se colocar em um novo governo. Mas em geral eu diria que, em uma posição histórica de 10 anos, é uma revolução no sentido de que, se antes a Ucrânia era dividida em duas partes de maneira razoavelmente proporcional – pró-Rússia e pró-Ocidente –, depois destes eventos a fracção pró-russa é muito pequena. E a ideia de que a Ucrânia pode se manter neutra, do ponto de vista militar, político, essa ideia já não existe”, completa.
Por outro lado, na Rússia, o Euromaidan se tornou um símbolo de ameaça para o Kremlin. Isto ficou evidente um ano após os protestos em Kiev, quando o governo russo organizou um grande ato “anti-Maidan”, de caráter nacionalista, que reuniu dezenas de milhares de pessoas em Moscou. A principal pauta foi o fortalecimento da autoridade de Vladimir Putin e uma rejeição a valores ocidentais.
Dez anos depois, a ideia de uma influência externa alimentando os protestos na Ucrânia resultou em maior repressão a quaisquer possibilidades de protestos dentro da Rússia.
“Se hoje qualquer pessoa, mesmo antes da guerra, criticasse o governo, ela seria acusada de trabalhar para o Ocidente. Então se você critica o governo, você trabalha para o Ocidente, porque do ponto de vista do Kremlin, você não pode por conta própria chegar à conclusão de que seria positivo mudar o presidente que está no poder há tanto tempo. O paradoxo reside no fato de que a crise ucraniana e a sua revolução nacional-democrática levou ao fato de que na Rússia, e na Bielorrússia, por exemplo, não houve um crescimento de sensação democrática, pelo contrário: as autoridades entenderam que deveriam apertar ainda mais o cerco”, conclui Byshok.