Mariupol é uma ferida exposta. As consequências da guerra entre Rússia e Ucrânia em uma das regiões mais castigadas pelos combates realizados desde 2022 são visíveis em vários pontos, a começar pelo trecho que leva da entrada da cidade até o Teatro Acadêmico Regional de Drama de Donetsk.
Mesmo com alguns prédios já reconstruídos ou em manutenção, diversas estruturas permanecem com as marcas de fogo, tiros e escombros impelidos pelos intensos bombardeios da guerra.
Em março de 2022, os lírios e as tulipas (que encantavam os canteiros cuidadosamente preparados para a chegada da primavera) deram lugar às centenas de túmulos improvisados e espalhados pelos jardins das zonas residenciais.
O impacto causado pelas cenas observadas ao longo do percurso até o Teatro bombardeado em um 16 de março, há dois anos, ajuda a compreender que a guerra é uma solução cara aos civis de ambos os lados.
Segundo as autoridades ucranianas, o ataque aéreo ao Teatro situado no coração de Mariupol foi um crime de guerra cometido pela Rússia. Moscou, por sua parte, negou a autoria, corroborando a versão de que a operação militar tinha como objetivo a “desnazificação” de um território de maioria russófona. Narrativa essa que também é confirmada por muitos residentes das regiões de Donbass, que há quase uma década lutam para se libertarem do cerco perpetrado pelo batalhão neonazista Azov, com o apoio militar dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Símbolos soviéticos
Desde que o presidente russo Vladimir Putin declarou a chamada “libertação de Mariupol”, em abril de 2022, a cidade portuária voltou a exibir com orgulho os nomes de revolucionários do período soviético, além dos símbolos antifascistas que agora estampam os primeiros prédios que reerguidos, em um intenso esforço de reconstrução.
Um dos locais que prova o desejo de uma rápida revitalização da região é Azovstal, considerado um dos maiores complexos siderúrgicos da Europa antes da sua destruição em março de 2022. A restauração do monumento em homenagem aos trabalhadores da fábrica que perderam as suas vidas durante a Grande Guerra Patriótica (como os russos chamam a Segunda Guerra Mundial) é um sinal de que os escombros, que cercam o belíssimo tributo à classe trabalhadora, já têm os seus dias contados.
Um marinheiro, um trabalhador e um soldado sob a foice e o martelo dão as “boas-vindas” em meio ao que restou da siderúrgica depois que o exército russo libertou os últimos soldados do Batalhão Azov, que permaneciam escondidos nas estruturas do complexo juntamente com militares da OTAN.
Da Praça Central de Mariupol à Avenida Lênin (chamada Avenida da Paz em tempos de administração ucraniana), passando pela antiga Praça da Liberdade (também rebatizada com o nome do bolchevique líder da Revolução Russa), é possível ver bairros residenciais, museus e edifícios administrativos, muitos dos quais ainda estão sendo recuperados ou até mesmo reerguidos a partir da quase total destruição.
Na região próxima à orla do Mar de Azov, os pontos onde antes refeições e produtos de primeira necessidade eram distribuídos pelas tropas russas aos famélicos, que viviam nos subsolos, agora dão lugar aos mercados abertos onde os moradores podem vender ovos, carnes, frutas e verduras.
Para o jornalista italiano Maurizio Vezzosi, que reporta o conflito nas regiões separatistas pró-russas desde 2015, voltar e ver crianças brincando e pessoas retomando as suas rotinas de trabalho causa comoção. Por muitas vezes, ele foi o único repórter ocidental a registrar os horrores de dentro da cidade, produzindo um material que pode ser visto no documentário Primavera em Mariupol, lançado em 2023.
“Muita gente morreu aqui. Enquanto corríamos para desviarmos dos combates, inevitavelmente nos deparávamos com corpos espalhados por todos os lados. Lembro de ver as pessoas vindo até aqui onde estamos para buscar água, pois era uma das poucas fontes existentes”, relembrou emocionado.
Outro exemplo dos símbolos erguidos durante a reconstrução é o mural do renomado artista italiano Jorit, inaugurado em julho de 2023. A pintura retrata uma criança sobrevivente de Donbass.
Nas redes sociais, o autor da obra publicou uma mensagem que gerou polêmica. “O que deve ser feito com esses oito milhões de russos que permanecem no território da Ucrânia? Eles mentiram para nós sobre o Vietnã, o Afeganistão, o Iraque, os Balcãs; nos enganaram sobre a Líbia e a Síria. Agora, tenho provas de que eles estão mentindo sobre o Donbass”, comentou Jorit.
Depois dessa publicação, o artista italiano foi acusado de plágio pela fotógrafa Helen Whittle, que afirmou não ter autorizado o uso da imagem. Entretanto, Jorit negou que se tratasse de um plágio, alegando que a criança na imagem era de Donbass, mas reconheceu que havia se inspirado no retrato de Whittle por conta das tranças.
Recuperação econômica
Moscou pretende transformar Mariupol em um dos símbolos da recuperação das cidades retomadas durante a guerra contra a Ucrânia, e para isso busca torná-la um forte polo econômico e também uma referência em termos de resistência da cultura russa, desfazendo o apagamento dos monumentos da era soviética promovido por Kiev não só na região como em várias outras cidades.
Em outubro de 2022, o Ministério de Construção e Habitação da Rússia havia divulgado um plano de repovoamento da cidade, que antes da ocupação contava com cerca de 450 mil habitantes. A meta traçada pelo governo é a de que, até 2035, meio milhão de pessoas estejam residindo no município. Em meados do ano passado, o prefeito Oleg Morgun, nomeado pelas autoridades russas, afirmou à agência de notícias TASS que 1,8 mil locais, entre edifícios residenciais, sociais e de infraestrutura municipal, estavam em obras de reparação e construção.
Além do repovoamento, o projeto russo coloca bastante ênfase na recuperação econômica da cidade, que possui um dos portos mais importantes da região do Donbass.
Segundo o governo da Rússia, o novo parque industrial voltará a funcionar por completo até 2025, e gerará mais de nove mil empregos na região. As autoridades da República Popular de Donetsk também anunciaram, no início de março, a criação de oficinas de soldagem de tubos elétricos, informando ainda um aumento de mais que o dobro do quadro permanente de trabalhadores no complexo de Ilyich, reforçando ainda a meta de empregar mais 2,9 mil pessoas na usina até o final de abril.
Atualmente, o salário médio das populações de Donbass está próximo dos 59 mil rublos (cerca de 600 euros). Além das vagas de trabalho no comércio e na construção civil, há também ofertas aos que querem se voluntariar para servir o exército russo. Para as patentes mais baixas, o ordenado pode chegar a até 200 mil rublos por mês (cerca de 2 mil euros), pagamento que poderá ser maior a oficiais mais especializados.
As minas terrestres e as balas de alto calibre (que por um momento tomaram as areias que dão acesso às praias do mar de Azov) também já não fazem mais parte do cenário. Aos poucos, a orla da cidade vai se transformando novamente em ponto turístico.
O anúncio de investimentos de mais de 60 milhões de dólares para a reconstrução da região portuária de Mariupol parece ter influenciado de forma positiva as expectativas dos setores de comércio, turismo e construção civil da cidade.
Em outubro do ano passado, a Agência Federal de Transporte Marítimo e Fluvial da Rússia também já havia se comprometido a restaurar a infraestrutura do porto da cidade de Berdyansk (a 70 km de Mariupol), com prazo também até 2025. A presença de retroescavadeiras e outros equipamentos na localidade evidenciam a corrida contra o tempo para que o projeto seja entregue no prazo estipulado.
Passaporte russo, passaporte ucraniano
Yelena, uma ex-consultora imobiliária que agora trabalha em um café da cidade, diz que para obter um imóvel reformado e oferecido pelo governo russo o processo ainda é burocrático e exige que o cidadão tenha passaporte russo.
Além disso, ela conta que o registro de propriedade para novos edifícios permanece suspenso. “Por enquanto, a administração municipal está atribuindo residência vitalícia sem a cobrança de aluguel. Desde que o cidadão prove que a sua casa foi destruída e que não possui nenhuma outra propriedade no território, esse direito é garantido”, explicou.
Em entrevista a Opera Mundi, Rodolfo Cordeiro, um brasileiro que vive em Donetsk e combate pelo exército russo há 10 anos, conta que 2019, antes da anexação das Repúblicas de Donetsk e Lugansk, muitos moradores iniciaram por conta própria a troca dos seus documentos. Hoje, ele diz que quem continua a viver nas regiões com passaporte ucraniano não consegue ter acesso à saúde, habitação, emprego e outros serviços ligados à previdência social.
“Existem algumas pessoas que ainda têm o passaporte ucraniano, mas é uma porcentagem muito pequena, que não deve chegar a 5%. Na maioria dos casos, são cidadãos mais idosos, acamados, com algum tipo de deficiência ou que vivem em localidades bem remotas”, relatou.
Questionado sobre a possibilidade que esses ucranianos têm de deixarem as zonas ocupadas de forma segura, o oficial garante que nunca presenciou nenhum tipo de hostilidade, elucidando que muitos russos também possuem familiares na Ucrânia. “No começo da operação especial, as autoridades e o exército deixaram bem especificado que não era para mexer com os civis, incluindo a não retirada de pertences ou algo que tivesse símbolos ou bandeiras de repartições públicas da Ucrânia”, esclareceu.
Aos setores de saúde e serviços sociais, a promessa é de um orçamento de 18% (valor que os russos garantem ser capaz de atender a uma população que há quase uma década tenta se desvencilhar de uma realidade repleta de desgraças). Aos poucos as aulas presenciais também vão regressando, apesar de boa parte das crianças e jovens continuarem a ter aulas à distância nas principais cidades de Donbass.
A reportagem de Opera Mundi conversou com uma professora da rede de ensino fundamental da cidade de Mariupol, que pediu para não ser identificada, por questões de segurança. Durante visita à escola onde ela trabalha, a educadora mostrou um quadro no meio de um corredor, cheio de instruções e avisos, e falou sobre a importância em ensinar aos alunos como identificar explosivos e como lidar de forma segura com esses artefatos.
“Em tempos de guerra, esse tipo de instrução pode salvar a vida dessas crianças. É uma realidade bastante difícil, que infelizmente exige preparo desde muito cedo”, alegou ao pontuar ainda que viver sob medo constante é um trauma que requer um tratamento especial que vai além da didática “normal” de ensino.
Segundo um militar do exército russo que também conversou com a reportagem, algumas administrações municipais de cidades retomadas por Moscou oferecem às famílias um apoio financeiro para que as crianças e adolescentes sejam levadas à Rússia, em uma espécie de “colônia de férias”, na qual se oferece apoio psicológico e atividades em grupos com mais segurança.
Embora a vida venha sendo “normalizada” aos poucos em Mariupol, o abalo e a saúde mental dos jovens é perceptível. Nas cidades do entorno (onde as linhas de combate estão mais próximas) este ainda é um problema a ser superado.