Difícil encontrar um país com mais sol e ventos, e o melhor: durante o ano todo. Mesmo assim, a África do Sul tem uma das matrizes energéticas mais 'sujas' do mundo, dependente do carvão. A gigante emergente do continente africano ilustra o quanto a transição para uma economia de baixo carbono é, ao mesmo tempo, vetor de desenvolvimento e de redução de emissões de gases de efeito estufa.
Há anos, o país convive com as consequências do colapso das usinas a carvão, responsável por mais de 80% do mix energético sul-africano. As infraestruturas antigas e com manutenção deficiente são incapazes de responder à demanda crescente da maior economia do continente. Os apagões viraram rotina e motivaram um movimento da sociedade civil e das empresas por fontes renováveis, em busca de autonomia da rede nacional de energia.
“Depois do covid, começou a ser diário, em vários períodos do dia: duas horas de manhã, duas de tarde, duas de noite. Depois, por todos esses problemas de manutenção e outros problemas externos, os cortes passaram a ser de quatro horas a cada vez. Você ficava praticamente o dia inteiro sem energia”, lembra a mineira Marília, que vive há mais de 17 anos em Joanesburgo.
Marília conta que os load sheddings, como são chamados os apagões regulares programados pela companhia nacional Eskom, levaram inicialmente a uma corrida por geradores a diesel ou gasolina. Mais recentemente, é a procura por instalações particulares de painéis solares que virou moda – pelo menos para quem pode pagar.
A casa onde ela mora é equipada com painéis fotovoltaicos que geram energia para atender às principais necessidades, como os eletrodomésticos ou a televisão, durante os apagões. Os equipamentos, de vários tamanhos, também transformaram a iluminação do jardim ou o sistema de alarme da residência autossuficientes em energia.
“Está virando uma coisa comum. Cada vez mais, você está precisa ficar independente do governo, já que a companhia elétrica não está aguentado”, constata. “As pessoas têm painéis, mesmo pequenos como esses nossos, mas que resolvem.”
Transição em Sowetto e 'pobreza energética'
Mas essa realidade que o país começa a viver está longe de beneficiar a todos. A cerca de 50 quilômetros dali, no bairro de Sowetto, na periferia de Joanesburgo, a instalação de painéis fotovoltaicos ainda é um privilégio raro.
O restaurante Sakhumzi é um dos poucos estabelecimentos com geração própria sobre os telhados – um investimento feito há quase 10 anos. “Não temos energia suficiente no país, então pensamos que para podermos oferecer uma boa experiência para os nossos clientes, nós teríamos que investir em uma solução de energia renovável, no caso, a solar, que não seja ligada à rede convencional. E essa também é a nossa contribuição para a conservação da Terra”, relata Lebongang Makola, um dos gerentes do local.
“Já chegamos num ponto em que podemos ver os impactos negativos se não cuidarmos da nossa 'Mãe Terra'. É muito importante para nós, cidadãos, pensarmos nas ideias para podermos renovar os recursos limitados que nós temos, porque se nós esgotarmos os nossos recursos, vamos ter um enorme problema”, acrescenta ele.
O restaurante é parada obrigatória dos turistas que visitam o emblemático bairro onde viveu o líder antiapartheid Nelson Mandela. O estabelecimento ainda não é totalmente autônomo em energia, mas a ampliação do número de painéis, num futuro próximo, deve levar o Sakhumzi a ser cada vez menos atingido pelos apagões generalizados. “O impacto na conta de luz é claro: ela é bem mais baixa que a dos nossos vizinhos, afinal dependemos menos da rede nacional de energia. E ter energia de reserva nos permite continuar a ter luz por vários dias, quando o país tem blackouts”, afirma Makola.
A desigualdade do acesso à energia não é de agora, e se perpetua: na construção das infraestruturas sul-africanas, o regime do apartheid teve a política deliberada de deixar de fora os subúrbios e as zonas rurais ocupados pela população negra. Até hoje, ainda são essas as áreas que mais sofrem com os apagões, na comparação com bairros ricos como o Sandton, em Joanesburgo, onde os cortes são bem menos frequentes.
O geólogo e gestor de investimentos Clyde Mallinson não tem nenhuma dúvida: vive no lugar mais abençoado do mundo para se tornar uma potência na energia do futuro, o hidrogênio verde, graças ao sol e ventos abundantes e constantes na África do Sul. Ele estima que o país poderá triplicar a oferta de eletricidade até 2035 graças aos parques solares e eólicos que, pouco a pouco, começam a se espalhar pelo país – por enquanto, quase sempre por iniciativa privada.
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País convive com as consequências do colapso das usinas a carvão, responsável por mais de 80% do mix energético sul-africano
Uma análise do potencial global de geração de energia solar do Banco Mundial confirma que o país oferece uma “oportunidade única” neste setor. “A transição para as renováveis não é um custo, é uma economia. A questão é como nós vamos distribuir essa economia com justiça, e não como vamos financiá-la”, salienta. “Custa menos do que produzir energia de carvão, petróleo, diesel e nuclear. É mais barato, e é um investimento que volta. Então, não tem uma verdadeira razão para ainda não estarmos fazendo isso em larga escala.”
De quebra, essa revolução deve cortar os custos da luz pela metade e poderá tirar 10 milhões de habitantes de uma situação de pobreza energética, garante o especialista. São pessoas que têm dinheiro suficiente para comida, mas não para pagar o uso regular de luz em casa.
“A transição energética nos oferece uma oportunidade de reduzir a desigualdade. Se você apenas tira as pessoas da pobreza energética, já é ótimo. Mas se você as leva para um pouco mais acima, você gera empreendedorismo”, observa. “As pessoas podem produzir comida, podem ter um espaço de trabalho de no pátio. É mágico. A magia acontece se você tem um pouco de energia a mais – e não quando você só tem o suficiente para atender às suas necessidades básicas.”
Quem pode, banca renováveis com o próprio bolso
Na Universidade de Joanesburgo, o astrofísico Hartmut Winkler mostra o estacionamento coberto por painéis fotovoltaicos como apenas mais um exemplo do que já se torna ‘o novo normal’ de grandes empresas, shoppings e até bairros de classe média: aproveitar cada grande espaço exposto ao sol para recuperar a energia.
“Nós chegamos num ponto em que a energia solar realmente ficou mais barata, assim como a eólica, então o maior problema é a intermitência. Ela precisa funcionar em conjunção com baterias especificas, alternativamente com gás, talvez, e os preços das baterias ainda estão meio caros. Esses têm sido os verdadeiros obstáculos”, assinala. “Mas como o país entrou nessa crise energética, já que muitas as usinas a carvão quebraram, tivemos grandes investimentos recentes em energia solar”.
A crise energética freia o crescimento sul-africano, abala a confiança de investidores no país e afeta a atividade econômica no dia a dia, o que aumenta os custos de produção e do consumo. Em setembro, ao final de uma primeira Cúpula Africana do Clima, os dirigentes do continente pediram ajuda da comunidade internacional para ajudar a África a expandir o potencial excepcional que existe na região.
“Nós temos uma situação maluca: até as minas de carvão estão construindo plantas solares nos seus terrenos. A energia solar está acontecendo e vão vejo ela voltando atrás. O maior problema agora é que leva tempo para instalar. Não tem painéis suficientes sendo fabricados na China ou em qualquer outro lugar que os produz”, aponta o professor. “E o outro problema é que precisa de pessoas para instalar, e não temos pessoal suficientemente treinado para fazer isso aqui. Eu acho que essa é uma área potencial interessante de crescimento e para a geração de empregos.”
Clyde Mallinson relembra que, que apesar dos benefícios evidentes, governo sul-africano inicialmente não viu essa revolução energética com a maior das boas vontade. As usinas a carvão são a base econômica em muitas regiões e empregam 100 mil pessoas no país – onde o desemprego passa de 30%.
Além disso, os recursos necessários para a expansão das renováveis ainda estão longe de serem alcançados Um estudo da Universidade de Stellenbosch que amparou a Comissão Presidencial do Clima, criada para promover o setor no país, estimou o custo do projeto em US$ 250 bilhões em 30 anos.
Neste contexto, a Eskon – que no fim de 2022, só conseguia gerar a metade da sua capacidade devido às infraestruturas deficientes – chegou a tentar proibir que uma cidade rural continuasse a usar um pequeno parque eólico que os habitantes haviam construído, em busca de independência da rede nacional.
“Do ponto de vista do governo, eles estão preocupados porque se tem gás ou outra fonte fóssil, eles têm direito a royalties. Eles taxam. Se é carvão, eles taxam. Mas como eles vão fazer para taxar a luz do sol, a energia solar?”, observa o Mallinson. “Esse é um dos maiores problemas: o governo ainda não entendeu como ele vai extrair renda do vento e do sol, da mesma forma que ele tira dos combustíveis fosseis”, salienta o consultor.