Que medidas Milei poderia adotar sem o apoio do Congresso?
Mesmo sem apoio do Congresso, se eleito Milei poderia impor mensalidades em universidades públicas, facilitar acesso a armas de fogo e reduzir salários
É uma frase que se ouve e se repete com frequência: Javier Milei não teria condições de fazer isso ou aquilo porque não teria o apoio do Congresso ou porque a Constituição o impede de fazê-lo. Repete-se esta frase como um mantra, como uma espécie de prova de fé. Como se deixá-lo chegar à Casa Rosada não fosse, afinal, tão perigoso.
Por exemplo: a Constituição estabelece o direito a um salário mínimo e Javier Milei, como presidente, não poderia alterar isto. Mas poderia, por exemplo, passar por cima do Conselho dos Salários e congelar de forma efetiva o seu valor atual, para que a inflação o consuma, reduzindo o salário mínimo a um valor nominal insignificante, uma referência de nada. "O direito ao salário mínimo gera desemprego", disse o candidato um dia após as eleições primárias.
Esse mantra absurdo, portanto, omite algo óbvio: a estrutura jurídica da Argentina permite brechas, truques e válvulas de escape para dar ao presidente alguma margem de manobra. Exemplos recentes incluem a isenção do IVA (imposto ao valor agregado) sobre produtos da cesta básica e a isenção do imposto de renda para nove em cada dez trabalhadores que estavam sujeitos à sua aplicação. Ambas as medidas exigiriam a aprovação do Congresso, mas foram aplicadas diretamente pelo Poder Executivo, sem mais delongas.
Portanto, abolir as indenizações para demissões exigiria a criação de uma lei, assim como a criminalização do aborto ou a privatização da saúde também exigiriam uma nova lei. Mas para ter impacto na vida cotidiana, meros decretos ou decisões ministeriais são suficientes. Por exemplo, a Lei 26.150, que trata da educação sexual, só poderia ser alterada através da criação de outra lei, mas a definição das diretrizes curriculares básicas é de responsabilidade do Ministério da Educação.
Do mesmo modo, existem tantos outros exemplos na história recente, desde a concessão de indulto a repressores (1990), à eliminação do serviço militar obrigatório (1994), passando pela nomeação de juízes para o Supremo Tribunal Federal (2015) e a privatização da empresa estatal de energia Transener (2017). Tudo realizado através de simples decretos de um presidente, sem sequer prestar contas ao Congresso.
Menu de decretos para o primeiro dia
Há leis que são abominadas por Javier Milei: por exemplo, a lei 26.737, que restringe a propriedade estrangeira de terras, e a lei 27.610, que regulamenta a interrupção voluntária da gravidez. Ambas foram explicitamente mencionadas pelo candidato como passíveis de reformas. Mas isso será difícil. Suas chances de sucesso dependem de um amplo acordo com o partido Juntos por el Cambio em ambas as câmaras do Congresso.
O que é urgente, no entanto, não é isso, mas o que poderá acontecer em 11 de dezembro, ou seja, o que ele poderá mudar por mero decreto ou decisão administrativa, poderes que estarão ao seu alcance caso seja eleito presidente.
A grosso modo, suas propostas eleitorais apontam que, de imediato, Milei poderá continuar seguindo a lógica política adotada por Mauricio Macri em dezembro de 2015 e rescindir todos os contratos temporários dos servidores do Estado e até mesmo anular concursos públicos realizados recentemente. Uma política que implicou na redução de 18% dos empregos no país e que é coerente com a proposta de redução de ministérios defendida por Milei.
Logo no primeiro dia de sua posse, poderá também ordenar ao Ministério do Trabalho que suspenda todas as homologações de acordos salariais conquistados por sindicatos que estejam pendentes, como permite a Lei 14.250, e assim interromper a atualização dos salários. Isto tornaria os aumentos opcionais para as empresas e, em última análise, cada trabalhador teria de renegociar o seu salário individualmente. Uma situação que soa dramática no caso de uma eventual liberação abrupta do dólar, como prometido por Milei, já que apenas o reajuste e os aumentos salariais por decreto poderiam compensar os efeitos ocasionados por tal desvalorização.
A isto se somam, com especial preocupação, as consequências de uma eventual desregulamentação do sistema bancário. Porque mesmo que Milei não consiga extinguir o Banco Central através da criação de uma lei, como propôs, uma redução das suas funções poderia afetar o funcionamento do sistema financeiro, que não teria mais ninguém para controlá-lo e proteger os fundos dos contribuintes.

Javier Milei / Facebook
Candidato de extrema-direita à presidência da Argentina Javier Milei durante ato de campanha
Este futuro distópico, com Milei como presidente, poderia ainda incluir outros dois objetivos imediatos que o candidato propôs efusivamente: a extinção total das retenções agrícolas, tal como previsto no Código Aduaneiro, e a eliminação de toda a publicidade estatal, tendo o encerramento da Télam - agencia de notícias estatal - como símbolo máximo desta proposta, de acordo com o Decreto 984/09.
No mesmo dia, como prometeu, ele também poderá revogar todas as licitações de obras públicas em andamento, conforme a Lei 13.064 permite, interrompendo assim a construção de escolas, hospitais, esgoto, etc., ou a compra de qualquer material que o presidente considere dispensável, como equipamentos de ciência e tecnologia ou livros para escolas, conforme permitido pelo Decreto 1.023/01.
Por outro lado, o que a sociedade argentina poderá comprar serão armas, que Milei propõe liberar porque "os Estados que têm liberdade de portar armas têm muito menos crimes". Pois, mesmo que não consiga alterar a Lei 20.429, que regula o acesso às armas, ele será responsável pelo funcionamento da Agência Nacional de Materiais Controlados, órgão encarregado de certificar a aptidão psicotécnica dos solicitantes e sua aptidão para manusear armas.
Para não falar, é claro, da forma como Victoria Villarruel, candidata a vice, lida com as forças de segurança e as Forças Armadas. Em 2018, Macri permitiu por decreto a participação das Forças Armadas em tarefas de segurança interna. Em 2020, Alberto Fernández o revogou. Mas tudo se limitou a um decreto. Uma nova decisão presidencial poderia inverter os critérios atuais. Isto é preocupante se considerarmos que, além disso, o ponto 6 da seção de segurança abordado na propostas eleitorais do partido La Libertad Avanza declara como ideal "eliminar da legislação penal as cláusulas de garantia" – que basicamente são direitos como ter defesa durante julgamento, presunção de inocência, o devido processo, etc.
Uma forma simples de liquidar a renda
Se isto é o que pode acontecer sem o apoio do Congresso, é difícil imaginar o que Milei faria se o tivesse. Faz sentido, portanto, que Milei tenha proposto adiar a política de privatização da saúde e da educação para uma fase posterior. Para isso, terá de ganhar primeiro pelo menos uma ou duas eleições legislativas. Isso é bastante provável caso consiga conter a inflação, como aconteceu entre 1991 e 1995, quando a sociedade argentina recuperou a estabilidade fiscal, apesar da taxa de desemprego ter atingido 17%.
Em todo o caso, o fato é que a inflação é, acima de tudo, uma ferramenta ideal para reduzir a renda. E os economistas ortodoxos de Milei sabem disso. Se a evolução dos preços se mantiver nos níveis atuais, basta não aprovar as negociações salariais para liquidar os salários, é evidente. Mas os que também ficariam expostos ao efeito dominó são os aposentados e os beneficiários do salário-família, já que a sua correção monetária automática depende da arrecadação de impostos e dos índices salariais.
Aqueles que conseguirem se sustentar poderão, no entanto, pagar do próprio bolso os aumentos dos serviços até agora regulamentados, para o que não é necessária uma lei, mas apenas uma decisão ministerial. Será o caso, por exemplo, dos transportes públicos, do gás, da água, da eletricidade e saúde, para as quais Milei propõe, especificamente no ponto 17 do seu programa de propostas de governo, "que tanto o profissional como o paciente possam chegar a um acordo sobre os honorários a pagar".
Na mesma linha, algo de particular interesse também pode acontecer com a lei orçamentária.Dada a atual fragmentação política, é extremamente improvável que a Argentina tenha um projeto orçamentário aprovado para 2024, de forma que o orçamento atualmente estabelecido será automaticamente prorrogado, tal como previsto na Lei da Administração Financeira.
Isso produzirá, como consequência da inflação, um descompasso no cálculo das verbas destinadas a cada órgão estatal, deixando a nova distribuição a critério do Poder Executivo. Assim, por exemplo, as universidades públicas terão de exigir auxílio orçamentário a um presidente que está convencido da necessidade de cobrar mensalidades nelas. É difícil imaginar quais as alternativas que os reitores irão adotar para enfrentar este cenário. O mesmo se aplica aos hospitais públicos nacionais, como o Garrahan ou o Posadas, aos museus, como o Bellas Artes, e aos espaços culturais, como a Biblioteca Nacional. Todos eles estão à mercê das regras de mercado em que Milei confia, ao mesmo tempo que promete reduzir as despesas estatais no montante de 15% do PIB.
Assim, os governadores não terão vida fácil. Embora o plano proposto pelo candidato presidencial para eliminar a coparticipação necessite do voto do Congresso, o Executivo tem poder mais do que suficiente para desfinanciar as províncias: impor a redução dos impostos de coparticipação, determinar a suspensão do plano de obras públicas federais e a eliminação das contribuições do tesouro nacional (ATN) e outras transferências não automáticas (TNA).
Tudo isso, que Milei anunciou e prometeu, poderá ser feito sem alterar uma única lei. Basta o seu cargo, a sua assinatura e a vontade de milhões de eleitores que, por ação ou omissão, permitam que isto aconteça.
(*) Frederico Dalponte é advogado trabalhista e colaborador do Primera Línea
(*) Tradução de Raul Chiliani