No contexto do modo de produção capitalista, tanto no Brasil quanto globalmente, a desigualdade é uma consequência intrínseca. Nesse cenário, a política fiscal pode ser empregada como um instrumento para mitigar as disparidades de mercado, visto que a capacidade, a metodologia de arrecadação e o tipo de despesa feita impactam diretamente a distribuição de renda e a oferta de serviços públicos essenciais à população, como saúde e educação. Entretanto, a partir de 2015 o governo brasileiro promoveu o maior contingenciamento na autorização orçamentária, desde o início da Lei de Responsabilidade Fiscal, iniciando um período em que a expressão austeridade fiscal passou a dominar a agenda econômica.
A austeridade é a política que busca, por meio de um ajuste fiscal, preferencialmente por cortes de gastos, moldar a economia. Assim, ao mostrar “responsabilidade” em relação aos gastos públicos, a austeridade teria a capacidade de reequilibrar a economia, reduzir a dívida pública e produzir crescimento econômico. Além disso, esse ajuste teria efeitos positivos sobre o crescimento econômico, ao melhorar a confiança dos agentes na economia. No plano da teoria econômica, esse efeito decorreria do pressuposto de que o setor público e o setor privado disputam recursos e que uma redução do gasto público abriria espaço para o investimento privado. Deste modo, dada a suposta maior eficiência do gasto privado, a contração do gasto público geraria um aumento ainda maior do gasto privado.
Mas o fato é que esses pressupostos são contrários ao que propõe John M. Keynes, um dos precursores da macroeconomia, cujos estudos foram e continuam sendo bastante influentes na elaboração de planos para que o Estado conseguisse reverter crises econômicas. Para Keynes, essa disputa por recursos entre o setor privado e o setor público depende do ciclo econômico. Deveria ser na expansão, e não na crise, que o governo cortaria gastos. Gasto e renda são dois lados da mesma moeda, o gasto de alguém é a renda de outra pessoa. Quando o governo contrai o seu gasto, milhões de pessoas passam a receber menos, o que tem impactos negativos na renda privada. Contabilmente, o gasto público é receita do setor privado, assim como a dívida pública é ativo privado e o déficit público é superávit do setor privado.
Além disso, na retórica da austeridade é muito comum a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico. Mas há muitas diferenças entre as finanças de uma família e as do governo. Primeiro, os gastos públicos são geradores de emprego e renda, afetam toda a dinâmica do sistema econômico, contribuindo para aumentar a arrecadação de impostos. Segundo, as condições em que famílias e governo financiam uma eventual diferença entre gastos e arrecadação são bastante distintas. O governo federal vende seus títulos públicos no mercado, mas também emite a própria moeda com a qual paga essa dívida.
Terceiro, ao contrário das famílias, os governos têm capacidade de elevar seus impostos e aumentar sua própria base de arrecadação. Se taxasse, sobretudo, aqueles que consomem uma parcela relativamente pequena de sua renda (os mais ricos) e ampliasse a renda dos que consomem relativamente mais (os mais pobres), o governo poderia dar um estímulo à economia sem “desequilibrar” o orçamento. Por último, os investimentos públicos trazem retorno no longo prazo. Os gastos com a melhoria da infraestrutura do país, por exemplo, elevam a produtividade e a competitividade das empresas.
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(Foto: Artur Luiz dos Santos)
Mesmo assim, nos últimos meses de 2015, quando o impeachment da presidenta Dilma tomava forma, o então PMDB (agora MDB) apresenta juntamente com empresários o Ponte para o Futuro, programa de governo cujas propostas partiam do diagnóstico de que somente um ajuste fiscal conjuntural era insuficiente, pois os direitos adquiridos pela sociedade brasileira no período de redemocratização já não caberiam no orçamento público. O programa do PMDB instituiria a flexibilização de leis trabalhistas, o fim da obrigatoriedade de gastos com saúde e educação, a desindexação de benefícios previdenciários ao salário mínimo, além de posteriormente propor um teto para os gastos públicos.
“A Constituição não cabe no Orçamento”, argumentaram os defensores da Emenda Constitucional 95/2016 (EC 95, conhecida como Teto dos Gastos), que estabeleceu uma regra para as despesas primárias do Governo Federal com duração de vinte anos. Em síntese, um regime fiscal que institui uma austeridade permanente, pois o não crescimento real das despesas totais do Governo Federal resultará em uma redução do gasto público relativamente ao PIB e per capita (devido ao crescimento da população ao longo dos anos). Com a eleição do presidente Lula em 2022, a expectativa era de que tal emenda constitucional fosse derrubada, tendo em vista suas imposições anti-democráticas, já que limitam drasticamente os gastos públicos para realização de direitos sociais. Entretanto, o que foi apresentado é o PLP 93/2023, promulgado como Lei Complementar 200 de 2023 e conhecido como Regime Fiscal Sustentável (RFS), resposta do Governo Federal à exigência, delineada pela PEC de transição, de apresentar uma nova regra fiscal ao Congresso Nacional até agosto de 2023.
A norma estabelece que “a política fiscal da União deve ser conduzida de modo a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, prevenindo riscos e promovendo medidas de ajuste fiscal em caso de desvios” (BRASIL, 2023). Assim, a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, determinados na Constituição Federal, ficam preteridos, em favor de uma referência no controle da dívida pública que, a par de não encontrar ressonância em direitos constitucionais, tampouco se associa a indicadores de estabilidade, equidade ou prosperidade econômica, como IDH, Gini ou PIB per capita. Estruturado com um sistema de limites duplos e entrelaçado às rígidas metas de superávit primário anunciadas pelo governo até 2026, o RFS mantém a visão de austeridade fiscal iniciada em 2016, restringindo fortemente a expansão dos gastos primários federais na expectativa de que isso, conforme preconizado pela teoria da contração fiscal expansionista, estimule o crescimento dos investimentos privados. É também importante destacar que o Regime Fiscal Sustentável introduz um mecanismo de teto de gastos que ameaça os pisos constitucionais para saúde e educação exigidos do Governo Federal, conforme definido nos artigos 198 e 212 da Constituição.
É evidente que existe uma contradição entre almejar a qualidade dos serviços públicos de um país como a Dinamarca e pagar impostos comparáveis aos da Guiné Equatorial. O que os defensores da austeridade negligenciam é que, no Brasil, aqueles que pagam os impostos mais altos são os menos capazes de arcar com eles (um sistema tributário regressivo). O pagamento significativo de juros sobre a dívida pública não é questionado, enquanto os gastos com saúde e educação são apontados como culpados pela escassez de margem de manobra na política fiscal. Em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira, a escolha por reduzir estruturalmente a rede de proteção social, em vez de buscar uma tributação mais equitativa e fortalecer o Estado de bem-estar social, reforça uma abordagem excludente e punitiva em relação à marginalização social.
A proteção dos mais vulneráveis sempre deve ser uma prioridade orçamentária. Além disso, uma agenda econômica realista e ambiciosa deve atender às demandas da maioria dos brasileiros, tanto atuais quanto futuros, e colocar a economia em uma trajetória sustentável, com geração de empregos e melhoria nas condições de vida da população. Essa agenda não pode começar sob a premissa de que a democracia é um obstáculo ao desenvolvimento econômico. A construção de um novo Brasil não deve começar com a supressão dos direitos dos trabalhadores e das minorias, mas pela busca por serviços públicos universais de qualidade, da garantia das instituições democráticas, da preservação do meio ambiente e dos territórios indígenas.
(*) Bianca Valoski é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UFPR, dentro da linha de pesquisa em Economia Política do Estado Nacional e da Governança Global. É servidora da Câmara Municipal de São José dos Pinhais, onde trabalha com finanças públicas.