As eleições regionais na Venezuela deste domingo, 16 de dezembro, tiveram como novidade a ausência física do presidente Hugo Chávez. O “porta-aviões presidencial”, considerado um símbolo essencial em todas as eleições, inclusive as regionais, percorria agora o país não por sua voz vibrante e por seu sorriso de cafuzo, mas pelo susto da doença e da quarta cirurgia para lutar contra as perseverantes células cancerígenas.
A presença de Chávez em Havana, se recuperando da operação – longe de conseguir ajudar a oposição (assim eles mesmos se manifestaram) – serviu para reforçar o Partido Socialista Unido da Venezuela e os demais partidos do Polo Patriótico. A oposição voltou a ser derrubada (o chavismo teve uma vantagem entre 20 e 45 pontos em boa parte dos Estados). Dos 23 governos locais, os seguidores de Chávez ganharam em 20 Estados, inclusive no governo de Zulia, região petroleira e reduto da oposição, de onde surgiu a aspiração para tirar Chávez do Palácio de Miraflores.
No total, a oposição perdeu cinco postos em apenas dois meses, depois de ter sido derrotada na eleição presidencial. Sua única vitória notável foi em Miranda (ainda que tenha sido por apenas quatro pontos), o populoso Estado que ocupa boa parte da capital Caracas. Henrique Capriles Radonski, apresentando-se à reeleição depois de seu fracasso na corrida presidencial, manteve Miranda, de modo a continuar na agenda política como possível candidato às próxima disputa nacional (seja ela imediatamente ou quando estiverem agendadas).
Ainda que o sossego tenha sido a regra, estas eleições deveriam ter transcorrido com ainda mais tranquilidade. O relevante programa de governo, o “Plano Socialista 2013-2019”, foi sancionado em 7 de outubro passado, com um milhão e meio de votos de vantagem – quase 11% diferença – sobre a confusa proposta de Capriles (na qual só podiam ser identificados com clareza as propostas neoliberais, como Banco Central independente ou a busca pela estabilidade macroeconômica vinculada aos ajustes tradicionais do FMI).
Agência Efe (15/12/12)
Venezuelanos realizam vigília pela súde de Hugo Chávez em Caracas
As eleições locais e regionais nunca suscitaram a cidadania na Venezuela. O Estado venezuelano, historicamente fraco, levava a população a identificar a política somente com o “grande” governo, capaz de implementar as políticas que afetam o país, entendendo a política local como um espaço próprio do caciquismo e das oligarquias locais – incluindo as do PSUV– que nunca serviram para reinventar nada. Em outros lugares – pensemos no norte da Europa –, a virtude da política estatal é um reflexo da democracia no âmbito local, mas na Venezuela é o inverso. De modo que o principal benefício destas eleições faz sentido principalmente em dois âmbitos que estão fora das próprias eleições.
Para a oposição, porque serve para que Capriles revalide, como já assinalamos, sua figura de “principal opositor”, sempre ameaçada pela desunião (com excesso) da chamada Mesa da Unidade Democrática. O bom resultado de outubro em termos históricos – o chavismo aumentou em 752.976 votos, enquanto a oposição ganhou 2.175.984 – faz de Capriles o “líder natural” da direita, ainda que a Ação Democrática (social-democratas da oposição), articuladores da extinta IV República, nunca vão aceitar que a oposição a Chávez seja conduzia por alguém de fora de sua organização.
Resultados das eleições
Para o oficialismo, a vitória tem dois elementos de destaque. Por um lado, lança uma mensagem de tranquilidade ao convalescente Chávez, insistindo nessa comunhão sentimental entre o presidente e a cidadania, ao mesmo tempo que esconjura as pretensões da oposição de apresentar a doença de Chávez e a derrota nas eleições – que não aconteceu – como antessala de sua “imediata” vitória.
Por outro lado, e este é o elemento mais complexo, o povo venezuelano demonstra estar comprometido com o rumo do processo e, mais concretamente, com a transposição do programa socialista 2013-2019 para o âmbito regional. Isto significa que o mais ambicioso processo político em curso na Venezuela – a construção de um Estado comunal, que afeta a organização territorial – não irá encontrar no âmbito regional um ambiente de freio, pelo contrário.
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É preciso buscar as razões da vitória, como sempre, nos bons resultados econômicos destes anos e no vínculo de um povo com um projeto e uma liderança. A renda petroleira, em vez de ser utilizada em benefício das minorias que controlavam a PDVSA, serviu neste longo decênio para reduzir a mais da metade as taxas de pobreza; para alfabetizar toda a população; para construir mais casas populares do que em todos os anos da IV República; para baixar o desemprego a 7%; para ter a segunda taxa mais alta de escolaridade universitária do continente; para criar uma rede pública de subsídios de medicamentos e alimentos; para entregar livros e computadores gratuitos aos estudantes; para incorporar 2.100.000 idosos ao direito de aposentadoria. Definitivamente, para fazer da Venezuela o país menos desigual da América Latina. Se Jesus Cristo repartiu pães e peixes em apenas um dia, o que há de estranho na beatificação de alguém que permitiu que os venezuelanos comessem três vezes por dia?
No que diz respeito ao papel de liderança, Chávez tem uma comunhão com seu povo que explica o fervor religioso que acompanha as atuais mostras de apoio popular ao presidente doente. Chávez não é somente o guerreiro que veio “salvar” seu povo do dragão, mas foi o líder salvo pelo povo, que teve que se encarregar pessoalmente de matar o monstro – afastar o perigo no golpe de abril de 2002– e resgatar o “cavaleiro”. Não há grandeza sem o azar para lhe oferecer seus presentes.
Chávez, além disso, é visto com jeito de Libertador porque escolheu a única maneira de ser grande: buscar inimigos descomunais. Se Bolívar enfrentou o Império espanhol, Chávez acometeu com ímpeto a este novo império – mais terrível e mortífero – conhecido como neoliberalismo (fase superior do imperialismo). Nessa batalha, Chávez encontrou o amor de um povo ao cumprir suas promessas e não deixar de batalhar, mesmo que se isso se torne complicado. Estamos cientes de que a comparação com o padrão europeu traz confusões. Para aliviar as dúvidas, pode ser útil pensar não tanto no que Chávez fez para ganhar o respeito de seu povo – e dos povos de outros tantos lugares do planeta –, mas no que os políticos europeus fizeram para ganhar o desprezo demonstrado por suas populações.
Chavismo sem Chávez?
A situação atual mostra um programa de governo amplamente referendado pelo povo e uma estrutura de apoio territorial igualmente ampla. Por outro lado, um presidente doente que fez o tema da sucessão voltar ao debate. Se Chávez não puder tomar posse em 10 de janeiro, seriam convocadas eleições no prazo de um mês. Qual cenário teríamos pela frente? Mesmo recordando que o futuro se caracteriza por aquilo que não está escrito, podemos prever uma nova vitória do projeto bolivariano, encabeçado pelo atual chanceler e vice-presidente, Nicolás Maduro.
O “chavismo” não é Chávez. É, sem dúvida, o impulso que Chávez deu inicialmente à Venezuela, mas também é uma Constituição, são treze anos de desenvolvimentos legislativos, um novo sistema de partidos, uma nova cultura política, uma América Latina mais integrada do que nunca em sua história.
Agência Efe
O chanceler e vice-presidente Nicolás Maduro, apontado por Chávez como seu sucessor na Venezuela
Se o apoio de Lula a Dilma Roussef serviu para que a presidente conseguisse, inclusive, mais votos que seu mentor, uma candidatura de Maduro marcaria a incorporação de uma nova geração à direção do processo bolivariano, o que implicaria novos brios e novas ideias. Seria preciso ativar esforços políticos lá onde Chávez resolveu os problemas com sua personalidade, mas não é nada irrealizável. Os militares já demonstraram seu apoio. Assim também o fizeram as diferentes famílias do processo.
Caberia a Maduro convidar a todas as sensibilidades para somarem-se ao novo projeto. Precisamente o que Chávez fez quando, recém-saído da prisão, decidiu entrar na disputa eleitoral. Se fosse preciso assinalar no horizonte um perigo para o processo bolivariano, teria a ver com a ignorância dessas sensibilidades, que fragmentariam o apoio a Maduro e dariam voo à oposição. A revolução bolivariana aprendeu com os erros da primeira república venezuelana, assinalados por Bolívar em seu Manifesto de Cartagena, de 1812. O primeiro deles é a falta de unidade – precisamente o que Chávez pretendeu rechaçar ao apontar Maduro como seu sucessor.
Mais do que um presidente
Nenhum outro presidente despertou tanto interesse mundial por sua saúde quanto Chávez. Mas os formadores de opinião continuam sem entender essa sequência que vem desde 1998 – como um golpista ganhou de uma ex-miss universo? – até as vigílias realizadas nas praças de toda a Venezuela. Quiseram acabar com Chávez (como era costume fazer com líderes de esquerda na América Latina, África, Ásia ou no mundo árabe) e agora, ao contrário, aqueles que moveram céus e terras para acabar com sua vida têm de ver como seu povo chora comovido por sua saúde. (Não imagino os espanhóis chorando por Rajoy, Zapatero ou por Artur Mas).
E não apenas seu povo. Há vigílias em todo o planeta. Orações, inclusive, de pessoas que não creem (Pepe Mujica, presidente do Uruguai). Por trás dessas mostras de carinho está a necessidade de fazer algo por um líder tão relevante para a América Latina quanto estigmatizado por alguns meios de comunicação mercenários. Quem tornou Chávez grande, insistimos, foram seus inimigos.
Chávez não é Chávez: Chávez é um povo. Algo que já estava em seus discursos de 1999 e hoje se tornou história viva. Mas não se trata de um povo sem mais. Um povo com pátria, que é uma maneira metafórica de dizer: um povo com vontade de caminhar em direção ao socialismo apoiado por uma Constituição e por um sistema político reinventado para esta finalidade.
Se Chávez, como certa vez disse, for descansar em uma ilha e se dedicar à pesca, não mudará nada seu legado para o continente. O que teria sido da América Latina na crise do neoliberalismo sem a firmeza e a unidade semeadas por Chávez? A América Latina se lembrará dele como o último libertador. Um libertador peculiar, que disse aos povos que estes tinham que acumular forças para serem seus próprios libertadores. Não significa que a batalha esteja ganha. Mas Chávez ajudou a começá-la. Trilhou o caminho.
Sabemos do profundo ódio suscitado por Bolívar. Mas quem hoje se lembra dos seus inimigos? O povo sabe o que diz quando repete: “Chávez não se vá!”.
(*) Juan Carlos Monedero é professor titular de Ciência Política e de Administração na Universidade Complutense de Madri e diretor do Departamento de Governo, Políticas Públicas e Cidadania no Instituto Complutense de Estudos Internacionais.