BaianaSystem, em seu brilhante albúm Duas cidades (2016), apresenta uma canção chamada lucro. Nela, os músicos dizem: “Tire as construções da minha praia/ Não consigo respirar/ As meninas de minissaia/ Não conseguem respirar”. A potente canção me veio à mente após tomar conhecimento do brutal assassinato racista de George Floyd, ocorrido no dia 25 de maio de 2020, na cidade de Minneapolis.
Durante angustiantes cinco minutos gravados, o homem negro sucumbia, completamente rendido, aos golpes asfixiantes do policial branco Derek Chauvin e de seus comparsas de farda. O homem negro repetia instintivamente: “Eu não consigo respirar, eu não consigo respirar, eu não consigo respirar”. O assassinato se consumava pouco a pouco, sob os olhos pan-ópticos das câmeras de transeuntes.
A morte sufocante de Floyd é figurativamente e materialmente importante para entendermos nosso tempo. A pandemia que corrói o mundo e abre uma ferida no tecido apodrecido do capitalismo mundial compromete o sistema respiratório. O novo coronavírus se espalha pelas vias respiratórias, se instala a partir dos pulmões e mata por falta de ar.
E como as duas formas de morrer estão umbilicalmente vinculadas? Explico.
Achille Mbembe, em artigo publicado pela Analyse Opinion Critique, advoga por um “direito universal de respirar”. Retomando os argumentos teóricos que desenvolve sobre a necropolítica, o filósofo camaronês explica como o modo de produção vigente precisa ser antivida para se reproduzir. O racismo estrutura as relações capitalistas e continua a esvaziar os corpos viventes de seu conteúdo para incorporá-los melhor.
A lógica mortífera da acumulação do capital recebe tons mais fortes durante a crise sanitária e com os homicídios racistas feitos pelo Estado. Antes de George, no Sul Global, sentíamos a morte de João Pedro. O adolescente de apenas 14 anos foi assassinado com um tiro de fuzil nas costas dentro de sua casa. Seu ar juvenil foi apagado, seu corpo, roubado. A operação, apenas mais uma das várias que matam sistematicamente no Brasil, faz com que os percursos dos dois corpos masculinos negros tão distantes se unam por uma geografia de morte.
Usando os termos de Vilma Reis, morrem os homens negros atucaiados pelo Estado. Seja pelas mãos da polícia em processo de fascistização, pelo estômago faminto da pobreza, pelo cansaço da falta de leitos e filas para receber trocados, por respirar o coronavírus, por nascer com a cor diferente da dominante. Nós, pessoas negras, somos sacrificadas em nome de Deus, daquele Deus mercado que Marx denunciava em sua Questão judaica.
Wikimedia Commons
Às vidas ceifadas de George e João se somam aos milhares de humanos sacrificados pela covid-19
O esgotamento da vida no planeta, em nome do crescimento de PIBs, nos faz ainda mais vulneráveis à asfixia. Mais uma vez, a música ajuda a entender o pensamento complexo de Mbembe. Luiz Gonzaga, em seu Xote ecológico, usando a mesma metáfora: “Não posso respirar, não posso mais nadar/ A terra tá morrendo, não dá mais pra plantar/ Se planta não nasce, se nasce não dá / (…) Poluição comeu/ Nem o Chico Mendes sobreviveu”. O poeta nordestino sintetiza o que o filósofo africano fórmula: a morte como capitã do desenvolvimento das forças produtivas esgota a vida do planeta e os donos do leme removerão do caminho qualquer ser que defenda a vida.
Às vidas ceifadas de George e João se somam aos milhares de humanos sacrificados pela covid-19. Estamos em um momento dramático da experiência humana na Terra. O bicho capaz de maravilhas em nome da vida, como o desenvolvimento de uma ciência comprometida com a manutenção do ar em nossos alvéolos, é o mesmo que criou a bomba capaz de matar a tudo e a todos.
É importante perceber que a morte chega aos nossos corpos de maneira diferenciada. Na favela ela sequer bate a porta. Nos hospitais, ela é enxotada de acordo com a capacidade financeira para mantê-la longe. Como disse o tal Guilherme Benchimol, “o Brasil está indo bem no controle do coronavírus e o pico da doença nas classes altas já passou”. Assim, a morte é uma questão de raça, de classe e feminina.
Como o próprio substantivo prenuncia, a morte é feminina. Vimos saltarem os números de violência doméstica durante a política acochambrada de isolamento social no Brasil. Foi uma mulher trabalhadora doméstica, pobre, a primeira vítima oficial da covid-19. E isso não é um mero capricho da história da peste do século XXI. Ela carrega consigo o cheiro da Casa Grande e da Senzala. Seus donos, digo, patrões diagnosticados com a doença, não dispensaram a trabalhadora, que acabou morrendo.
Como ela, são milhares. E os corpos se avolumam. Mas por ser a morte componente tão presente do capitalismo financeiro, ela já não incomoda. E os CNPJs? E a política nacional? E o Trump? E o BBB? E a live do Gustavo Lima? E? E daí? O escárnio pela vida não deveria surpreender ninguém em 2020. Assim como o que me causa verdadeiro espanto é não se entender que depois de 2016 é tudo golpe e farsa.
Mas esquecem os senhores que o ar que nos querem tirar é combustível. E já são dois dias que Minneapolis queima. Prédios e carros da política fascista estadunidenses foram expropriados e são iluminados pelas flamas. Fanon dizia que não era possível fazer Revolução movido pelo ódio. Completando o pensamento do martinicano, usando Freire, digo: a Revolução é movida por Justa Raiva. É preciso saudar a vida e, aos nossos mortos, nenhum dia de sossego.
(*) Rayane Andrade é professora de Direito da UEG, doutoranda em Direitos Humanos pela UnB