A derrota do Ocidente
Mudanças estruturais revelam um Ocidente com poderes cada vez mais limitados
Em âmbito global, estão acontecendo mudanças estruturais que revelam um Ocidente com poderes cada vez mais limitados que não lhe permitem continuar a estabelecer condições para manter a hegemonia imperialista liderada pelos Estados Unidos
Há duas semanas comentávamos o livro “As 7 Vidas do Neoliberalismo” (Dieter Plehwe, 2023), que oferece argumentos sólidos de que o neoliberalismo é um projeto de longo prazo e sua “morte” ou “decomposição”, como alguns anunciam, é algo que não acontecerá no curto ou médio prazo. Nesses dias, como se fosse uma resposta às 7 vidas, anunciou-se a publicação do livro “A Derrota do Ocidente” (Emmanuel Todd, 2024), que, com uma exposição solvente de razões e fatos, afirma que o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos (EUA), tem o “coração” em processo de envelhecimento que inclui o próprio sistema capitalista na sua forma neoliberal.
Por enquanto, ao redor destes dois autores se alinha o vasto mundo de analistas, formadores de opinião e cientistas sociais interessados no futuro dos acontecimentos globais. No leque de ideias e opiniões que se manifestam, ainda é prematuro estabelecer quem tem razão, mas é evidente que o mundo vive numa situação de mudança de épocas e de paradigmas. Os dogmas e as estruturas de poder já não exibem solidez e firmeza, nem as primazias e hegemonias no quadro geopolítico global. Tudo está mudando com uma velocidade difícil de ser percebida pelo cidadão comum.
O livro de Todd gera debate e questiona questões centrais que preocupam a humanidade. Anunciar a iminência da crise terminal da hegemonia imperial dos EUA e da Europa não é uma questão trivial, mas de importância global que é trazida à tona por um autor que previu a queda da União Soviética (URSS) muitos anos antes de acontecer. É claro que, se assumirmos que a tese de Todd é consistente com a evolução dos acontecimentos, não devemos nos surpreender que o Ocidente, para evitar a sua derrota, não hesitaria em declarar guerra ao mundo.
Para continuar mantendo a sua primazia até agora, o Ocidente desencadeou um processo paradoxal: uma expansão equivalente a conquistas, a sangue e a fogo, destinada a procurar soluções para os seus problemas estruturais derivados da perda das essências éticas e morais que impulsionaram o seu desenvolvimento.
Segundo Todd, o que precede é resultado do desaparecimento do protestantismo no desenvolvimento do capitalismo que, por etapas e choques, acabou aceitando a evolução do neoliberalismo ao niilismo, e da financeirização “bem sucedida” ao pânico financeiro.

Trabalhos de máquina de Richard Hartmann, em Chemnitz, em 1868, retratam desenvolvimento do capitalismo
Entre 2016 e 2022, o niilismo ocidental se fundiu com o niilismo ucraniano, nascido da implosão da URSS, dando origem a uma aliança ridícula da OTAN e da Ucrânia como se fosse algo diferente do Ocidente liderado pelos EUA, verdadeiro adversário de guerra da Rússia transformada numa potência global que decidiu ter o seu próprio jogo na geopolítica mundial em defesa da sua própria segurança. É nesse quadro que a Rússia decide invadir a Ucrânia sabendo que a guerra não era com aquele país mas sim com a OTAN liderada pelos EUA, na qual Zelensky era apenas um agente local, com território incluído.
Segundo Emmanuel Todd, a queda da hegemonia imperialista dos EUA e da Europa é irreversível pelas seguintes razões:
- Primeiro: “o declínio industrial dos EUA e o caráter fictício do seu PIB”, cuja principal consequência é a formação insuficiente de engenheiros e o declínio do nível educacional em geral, além da diminuição da sua capacidade produtiva. Ambos os elementos, segundo especialistas, são indispensáveis para lidar com uma situação de guerra. Na economia norte-americana, o problema econômico se agrava quando se evidencia que a produção tangível de bens cedeu a sua primazia aos setores de serviços e finanças, minando a sua capacidade de competir no mercado global, como está acontecendo na sua disputa com a China . Esse é o modelo pós-industrial que acabará implodindo os EUA, a longo prazo.
- Segundo: “Forte aumento na taxa de mortalidade nos EUA”. devido ao aumento de suicídios e homicídios na sociedade norte-americana, fato que revela fissuras sociais antes inexistentes que, num contexto de desesperança, agravam a crise que enfrenta desde a década de 80 do século XX. A resposta é a supremacia de um niilismo imperial expresso na obsessão pela guerra infinita como estratégia, tática e razão de sobrevivência e hegemonia.
- Terceiro: “o declínio intelectual no Ocidente, o desaparecimento da ética do trabalho e uma ganância massiva cujo nome é Neoliberalismo”. Todd explica esta situação a partir do colapso do protestantismo, que, entre outros, significou o abandono da ética e da moral na sociedade norte-americana, onde o neoliberalismo exacerbou a desigualdade e, ao mesmo tempo, gerou um sentimento de ganância individual e coletiva que minou os alicerces da sociedade norte-americana inspirada na ética protestante, especialmente na ética do trabalho.
Todd diz: “Meu livro é basicamente uma sequência da ‘Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo’, de Max Weber”. Weber acreditava que a ascensão do Ocidente foi, em sua essência, a ascensão do mundo protestante. “O protestantismo produziu um alto nível de educação, sem precedentes na história da humanidade, uma alfabetização universal, porque exigia que cada crente fosse capaz de ler a Bíblia. Por outro lado, a necessidade de se sentir escolhido por Deus levou a uma ética de trabalho e a uma forte moralidade individual e coletiva que produziu um progresso econômico e industrial considerável”.
O livro de Todd inclui uma análise aprofundada da guerra na Ucrânia onde, além de reafirmar algumas hipóteses e conclusões, estabelece que não há outro fim senão a derrota da OTAN neste conflito. “Observamos que o seu mecanismo militar, ideológico e psicológico não existe para proteger a Europa Ocidental, mas para controlá-la.” A estruturação de novos eixos que substituem os existentes não é por acaso. O “eixo histórico Paris-Berlim” foi substituído pelo “eixo Londres-Varsóvia-Kiev”, atingindo gravemente a importância geopolítica da Europa em circunstâncias em que a hegemonia imperialista é aspirada por atores não ocidentais.
A crise migratória global, sem resposta e com movimentos anti-migratórios e nacionalismos ultrarradicais; a desigualdade e pobreza insultantes; os conflitos armados na Ucrânia, Síria, Gaza com extensões ao Irã e Líbano, Sahel; a instabilidade política e violência na América Latina; efeitos das mudanças climáticas; entre outros, são representações da diversidade e complexidade dos focos de conflito que ameaçam a segurança e a estabilidade globais com riscos de proporções inimagináveis que põem em perigo a sobrevivência humana.
