Citando um trecho de O Infante, obra de Fernando Pessoa, Gilmar Mendes fez o discurso de abertura da 11ª edição do Fórum Jurídico, realizado de 26 até essa quinta-feira (28/06) na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. A fala proferida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) diz respeito ao planejamento do evento, que ocorreu durante os meses em que ele havia contraído covid-19: “enquanto o homem faz planos, Deus dá gargalhadas”.
Mendes reforçou a importância do evento em um período em que as democracias ocidentais estão sendo postas à prova com a proliferação do discurso de ódio que se perpetua por meio das redes e plataformas digitais. Ao citar Rosa Luxemburgo, que foi uma filósofa e economista marxista polaco-alemão, o ministro disse que todas as perspectivas são bem-vindas em um regime democrático, mas que é preciso se atentar ao que chamou de “novo populismo”.
Segundo o decano, o poder judiciário tem papel fundamental no combate à essa estratégia política que evoca a democracia para depois destruí-la.
Com o tema central “Governança e Constitucionalismo Digital”, diversos professores e ministros do STF e do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), além de governadores, deputados e generais das Forças Armadas do Brasil e de Portugal ficaram reunidos para debater os desafios da atualidade, assim como e propor soluções que fortaleçam a estabilidade do Estado Democrático de Direito no Ocidente.
Além dos acadêmicos, políticos e empresários, também comparecem no último dia do encontro o vice-presidente do Brasil, Geraldo Alckmin, e o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.
Idealizado pelo decano do Supremo, a Conferência contou ainda com as parcerias do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV) e do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP).
É preciso estar atento e forte
Nem mesmo o calor superior aos 30 graus impediu que o auditório da universidade ficasse completamente lotado durante o primeiro dia do Fórum. Por um momento, a enorme fila formada logo na entrada fez avivar a memória daqueles que testemunharam os dois turnos das eleições presidenciais do Brasil em Lisboa, já que o pleito também se deu nas dependências da faculdade.
A diferença é que agora boa parte dos que ocuparam os corredores da instituição portuguesa foi eleito através de brasileiros e brasileiras que optaram pelo resgate do país face a um cenário de degradação social e cooptação do poder pelo fascismo.
Mas, como sabemos, na democracia burguesa as contradições prevalecem.
O sentimento de reconstrução e fortalecimento do Estado de Direito baseado na soberania popular logo foi preenchido pelo sabor amargo da realidade. As presenças de figuras como Ronaldo Caiado, Tarcísio de Freitas, Arthur Lira e do “terrivelmente evangélico” André Mendonça combinaram muito mais com a canção ‘Divino Maravilhoso’ de Gilberto Gil e Caetano Veloso do que com os versos de Pessoa.
Liberdade degenerada
Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, Lira foi um dos convidados para a sessão de abertura. Sem o menor constrangimento por ter sido aliado de Jair Bolsonaro nos últimos anos, afirmou que a política brasileira esteve sob um estado de “natureza hobbesiana, onde a guerra de todos contra todos foi baseada na luta sectária da realidade e na polarização”. Nem sequer parecia ser o principal envolvido na operação da Polícia Federal que apura suposta fraude na compra do kit de robótica em escolas de Alagoas.
Lira e o seu ex-assessor Luciano Cavalcante são os principais alvos do inquérito da PF que investiga superfaturamento e lavagem de dinheiro com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Sem falar das acusações de violência e abuso sexual reveladas por sua ex-esposa, Jullyene Lins, à Agência Pública.
Sob a perspectiva de observador da política brasileira na tentativa de conter a ascensão da extrema direita em Portugal, Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República portuguesa, lembrou do gosto de ter recebido o presidente Lula no Parlamento no dia em que o país celebrou a Revolução dos Cravos, ressaltando a importante relação política e diplomática entre Brasília e Lisboa.
Em um período de “tentativas de ditadura”, Santos Silva reforçou que o investimento em educação e o reconhecimento social são imprescindíveis para que a democracia não entre em colapso.
Para Carlos Ivan, presidente da Fundação Getúlio Vargas, o fortalecimento da democracia também passa pelas alterações econômicas e climáticas provocadas por uma nova conjuntura geopolítica, principalmente no que diz respeito ao capital da classe média, que, segundo ele, sofreu uma queda por conta do aumento da inovação asiática. “Depois da pandemia, o consumo global de energia está aumentando. Subir o nível de vida é subir o gasto energético por mais poupanças que fizermos. E isso promove um impacto ambiental que precisa ser debatido”, complementou.
O elefante na sala
Afirmando não saber o motivo pelo qual foi convidado, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, foi um dos palestrantes do painel que se propôs a discutir os riscos para o Estado de Direito e a defesa da democracia. Elevando o antagonismo do tema, estava o ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino, que não perdeu a oportunidade de dizer que o aliado de Bolsonaro ficava “muito bem à esquerda” da mesa.
Porém, nem as risadas arrancadas da plateia foram capazes de explicar o convite de alguém que apoia abertamente o ex-presidente do Brasil, que pode perder os seus direitos políticos pelos crimes eleitorais.
Ao dizer que o velho está morrendo, mas o novo ainda não é capaz de nascer, Dino iniciou a sua intervenção utilizando o pensamento do filósofo marxista Antonio Gramsci para refletir a respeito dos cinco riscos à democracia e ao Estado de Direito. Curiosamente, a mudança na configuração geopolítica e o possível fim da hegemonia dos Estados Unidos para os países asiáticos foi a primeira ameaça apontada pelo ministro.
“Estamos em um momento de transição de hegemonia econômica e política que desafia o próprio conceito derivado das revoluções liberais dos séculos 17 e 18”, disse ele ao sustentar que os asiáticos não “utilizam” o multipartidarismo e a alternância de poder.
Stefani Costa
11ª edição do Fórum Jurídico reuniu diversas personalidades políticas, como Geraldo Alckmin, Gilmar Mendes e Orlando Silva
No entanto, mesmo uma fala que para muitos é caracterizada como imperialista, baseada em conceitos rasos sobre os sistemas políticos não ocidentais, o ministro criticou o capitalismo ao citar o paradigma material provocado pelo ultra individualismo como sendo o segundo risco.
Como terceiro perigo, apontou a influência que as redes sociais possuem na formação de pensamento das pessoas por meio da manipulação algorítmica, seguido pela alta capacidade dos mercados de se autorregularem, desafiando e ameaçando a soberania dos países. Para completar, o ministro da Justiça acrescentou a polarização política e o uso da religião como parâmetros de organização da sociedade, esclarecendo que as redes sociais não são neutras e que, ao atingir a consciência das pessoas, elas ganham materialidade.
“Esse viés pode colonizar pessoas sem controle judicial e democrático. Talvez estejamos vivenciando o fim da convergência ao centro”, disse.
Na contramão do debate sobre o fortalecimento das instituições brasileiras, o governador de São Paulo resolveu trazer como pauta a sua preocupação com o excesso de judicialização na política. Freitas disse ser um “otimista por natureza” e afirmou que “a democracia brasileira é forte, vibrante e está “revigorada”. Antes de revelar que “tenta estudar mais” sobre o Estado de Direito e defender a reforma política através do uso da “energia popular”, o bolsonarista também garantiu que, no momento, não há “grandes riscos” de ruptura democrática.
De volta à realidade dos fatos, Marcus Vinicius, presidente da Comissão Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e representante do Senado Federal no Conselho da República, que também esteve na mesa, fez questão de certificar-se de que o Estado de Direito não pode ser apenas das “elites” e que a sua existência tem o dever de proteger dos excessos constitucionais às pessoas desprovidas de poder.
O advogado recordou ainda do AI-5 (Ato Institucional n.º 5 da ditadura militar brasileira (1964-1985) e trouxe à tona os abusos judiciais cometidos contra Lula, alegando que o atual presidente foi vítima de uma armação e de um conluio.
Estefânia Maria seguiu defendendo que, para além da contenção e separação de poderes, é preciso contar com órgãos institucionais voltados à autonomia e à liberdade, revendo questões do Direito administrativo que facilitam o nepotismo e a cooptação de entidades públicas. “Liberdade de expressão sem acesso a direitos básicos é algo que coloca a democracia em risco”, pontuou.
A professora de direito afirmou ser contra o modelo presidencial e defendeu que as decisões colegiadas podem tirar da esfera um ministro que esteja sob ataque nessa âmbito de desinformação, além de corroborar o importante papel que os partidos menores podem exercer nesses excessos judiciais dentro da política.
Finalizando a sua fala, Estefânia advertiu a respeito da violência sofrida pela imprensa ao trazer como referência o programa de Proteção das Mulheres Jornalistas criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e a sua preocupação sobre o uso da religião no espaço político, onde se consegue justificar ataques à democracia e aos direitos humanos por meio do medo e da intimidação.
Regulamentação das redes e soberania nacional
No segundo dia do Fórum Jurídico de Lisboa, o destaque ficou por conta do painel “Responsabilidade das Plataformas por Conteúdos Ilícitos e Riscos Sistêmicos”, em um momento onde o Congresso Nacional brasileiro discute o projeto de lei 2630/20, que tem como objetivo regulamentar e fiscalizar as atividades das plataformas digitais, a exemplo das big techs.
Além do próprio relator do projeto, o deputado federal Orlando Silva, a mesa contou ainda com a participação do ministro do STF, Luís Roberto Barroso.
Apesar do tema complexo, Barroso fez uma intervenção com tom bem humorado, chamando atenção em relação à urgência em aprovar o marco regulatório para as plataformas digitais no Brasil. Segundo o ministro, a revolução tecnológica e digital, a massificação do uso de smartphones e a expansão do uso da internet vêm transformando o modo de vida da sociedade contemporânea. “Algoritmo, que é uma palavra que a gente não conhecia até outro dia, vai se tornando o conceito mais importante do nosso tempo”, complementou.
O ministro lembrou ainda que a principal riqueza já não é a física e que empresas que exploram petróleo ou as grandes montadoras de automóveis já não possuem o mesmo poder econômico de antes. Quem figura entre as mais valiosas corporações do mundo são as big techs, como o Google, Amazon ou a Meta (ex-Facebook).
Barroso também citou a importância do impacto da internet sobre a comunicação social e interpessoal, dizendo que ela foi capaz de “mudar o curso da história” e ampliar exponencialmente o acesso ao conhecimento, à informação e ao espaço público. Do mesmo modo, esse acesso também abriu espaço para a desinformação, os discursos de ódio, à destruição de reputações, às teorias conspiratórias e à difusão de “mentiras deliberadas”.
“Um jornal no Brasil como O Globo ou a Folha de S.Paulo têm cerca de 300 mil assinantes. A Economist, que talvez seja a revista mais assinada do mundo, tem 1,5 milhões de assinantes. O New York Times, que é bem excepcional, tem 10 milhões. Já o Facebook tem 3 bilhões de usuários, Youtube conta com 2,5 bilhões e o WhatsApp 2 bilhões. Portanto, nós tivemos uma mudança na escala que foi de centenas de milhares para alguns bilhões, e, evidentemente, isso impacta a comunicação social e abala gravemente o modelo de negócio do jornalismo tradicional, pois boa parte da publicidade migrou para as plataformas digitais”, disse.
Em uma rápida referência às divulgações criminosas de tratamentos falsos pelo ex-presidente Bolsonaro durante a pandemia, Barroso defende que a regulamentação será fundamental para controlar a amplificação artificial de uma mentira.
Depois de explanar a respeito do projeto de lei, conhecido popularmente como “o PL das Fake News”, o relator, mais uma vez, esclareceu sobre o projeto. “Esse assunto não é um tema do governo. A regulação de plataformas digitais é um desafio do Brasil como país. É um debate que o mundo inteiro faz, é um debate que interessa ao governo, à sociedade civil, à indústria, aos usuários, e, sobretudo, aos cidadãos brasileiros. A caracterização deste projeto como sendo do governo é prejudicial, pois muitas lideranças de partidos de oposição podem somar na aprovação do PL”, explicou.
Além de assegurar o desejo de começar já no início do segundo semestre a votação do PL 2630/20, o deputado pelo PCdoB de São Paulo frisou que o intervalo de tempo oportunizou e facilitou importantes esclarecimentos sobre o não risco de censura e o não envolvimento do Estado em ações de controle de conteúdos.
“Conversamos com várias lideranças evangélicas demonstrando que não há hipótese alguma de restrição da atividade religiosa no Brasil. Também falamos sobre a remuneração ou não de conteúdo jornalístico utilizado por plataformas digitais. Acredito que é natural que haja divergências, e essas polêmicas devem chegar ao plenário para que a maioria dos deputados possa decidir o desfecho”, destacou.
No projeto de Silva, as soluções para a regulamentação das big techs são baseadas no modelo adotado na União Europeia intitulado “Regulação Auto Regulada”, onde, para além da existência de um arcabouço geral de princípios estatais, as plataformas também têm o dever de especificarem termos de uso para conteúdos não aceitos por elas próprias.
A ideia, que também é defendida pelo ministro Barroso, é a de que exista um órgão externo, independente e não governamental que faça esse monitoramento das redes e, eventualmente, a aplicação de sanções. “No Brasil ninguém quer governo se metendo em conteúdo de expressão porque nessa matéria, infelizmente, o passado nos condena”, finalizou.