É fácil entender os motivos que levaram o então deputado Jair Bolsonaro a fazer parecer que tinha o apoio da comunidade judaica: desde que lançou-se presidenciável, precisava higienizar a própria imagem para tornar-se palatável a um público mais amplo. E nada mais convincente para desconstruir a acusação de afinidade com a ideologia nazista do que exibir a adesão das maiores vítimas do nazismo à sua candidatura.
Mais difícil de compreender são os motivos que levaram setores progressistas a cair nessa ladainha. Insistir na ideia de que “judeus brasileiros apoiam Bolsonaro” é equivocado e interessa apenas ao próprio presidente.
Há judeus que o apoiaram? Muitos! São figuras importantes? Algumas, sim. Mas boa parte ganhou proeminência só depois que Bolsonaro venceu as eleições. E ajudada pela própria ênfase que setores não judaicos deram a seu suposto protagonismo comunitário.
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A construção de narrativas baseia-se em lembranças e esquecimentos. Alguns episódios, porém, precisam habitar a memória quando o assunto é a relação entre Bolsonaro e a comunidade judaica. Vamos a eles.
1. Pouco antes do segundo turno, Fernando Haddad foi recebido com festa pela comunidade judaica na Associação Scholeim Aleichem, no Rio de Janeiro:
Às vésperas do segundo turno das eleições de 2018, o candidato Fernando Haddad (PT) foi recebido com festa por centenas de pessoas na Associação Scholem Aleichem (ASA), no Rio de Janeiro.
Lá estavam lideranças jovens, professores e artistas ilustres da comunidade judaica, entre os quais Caco Ciocler, Clarice Niskier, Eduardo Kac, Jonas e Débora Bloch, Michel Melamed, Silvio Tendler, Soraya Ravenle e Sura Berditchevsky.
Na ocasião, Haddad falou sobre o aprendizado com judeus em sua formação acadêmica e humana e contou com admiração sobre a visita que fez a Israel.
2. Judeus estiveram presentes e falaram ao público no ato da virada de Fernando Haddad no Tuca, em São Paulo:
No dia 22 de outubro de 2018, Amanda Hatzyrah, da Frente Feminista Judaica, e Celso Garbarz, ativista de Direitos Humanos, estiveram presentes no ato da virada do candidato Fernando Haddad (PT) no Tuca, em São Paulo, e falaram ao público.
“Para mim é muito importante, como mulher, judia e feminista, estar aqui representando parte da comunidade judaica na luta contra o fascismo e pela democracia”, afirmou Hatzyrah. “De Jeremias, ‘tzedek, tzedek, tirdof’ — ‘justiça, justiça, persiga’. Todos nós sabemos onde está a justiça. Justiça para todos”, completou Garbarz.
3. Antes do primeiro turno, os presidenciáveis Marcelo Freixo e Fernando Haddad defenderam suas candidaturas na Casa do Povo, em São Paulo:
No dia 15 de maio de 2017, pouco mais de um ano antes das eleições presidenciais, Marcelo Freixo (PSOL) e Fernando Haddad (PT) participaram de um debate na Casa do Povo, em São Paulo. A atividade reuniu dezenas de pessoas e foi organizada pelo grupo Quero Prévias, que tem por objetivo fortalecer candidaturas comprometidas com os valores de democracia, direitos e igualdade.
Fundada logo após a Segunda Guerra Mundial por judeus originários da Europa Oriental, politicamente engajados e instalados no bairro do Bom Retiro, a Casa do Povo é, hoje, um dos principais centros de reunião dos grupos judaicos progressistas no Brasil.
4. Comunidade judaica marcou presença nas manifestações #EleNão e foi considerada “um dos grupos mais ruidosos” pela imprensa:
No dia 28 de setembro de 2018, dezenas de judeus estiveram presentes na manifestação contra Bolsonaro no Largo da Batata, em São Paulo. Segundo matéria veiculada na Folha de S. Paulo, “portavam faixas com símbolos judaicos como a Estrela de David, lançavam dizeres alusivos ao ato e entoavam gritos de guerra como ‘Ô, Bolsonaro, vai se foder, eu sou judeu e não gosto de você’”.
Já o jornal Valor Econômico noticiou que “um dos grupos mais ruidosos do Largo da Batata nesta tarde era formado por manifestantes de origem judaica”.
5. Após pressão dos sócios, palestra de Bolsonaro foi vetada no clube A Hebraica, em São Paulo:
O clube A Hebraica, em São Paulo, é o mais importante da comunidade judaica brasileira, com dezenas de milhares de sócios. Do anúncio de uma suposta “entrevista com plateia” com Jair Bolsonaro até o comunicado sobre sua suspensão foram pouco mais de 54 horas. O evento foi cancelado antes mesmo de ser oficializado, após intensos protestos de parte da comunidade judaica. Os detalhes da ação você pode conferir aqui.
Na época, o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista, a maior do Brasil, defendeu o cancelamento afirmando que “o judaísmo tem tradição de debate. Mas a liberdade de expressão não pode servir de plataforma para a propagação de ideologia discriminatória e apologética à ditadura”.
Não foi a primeira vez que uma instituição judaica fechou as portas para Bolsonaro. Em 2014, no Rio de Janeiro, uma palestra no clube Monte Sinai foi cancelada após manifestações da comunidade local. Mas foi o veto da Hebraica de São Paulo, com muito mais repercussão, que arranhou a imagem do pré-candidato. Só então surgiu a ideia de fazer a palestra no homônimo carioca. Bolsonaro avaliou corretamente que poucos perceberiam as diferenças de porte e representatividade entre os dois clubes — e, nesse processo, setores progressistas, que deixaram de apontá-las, contribuíram com a narrativa.
6. “#NãoEmNossoNome”: dezenas de judeus protestaram em frente à Hebraica do Rio de Janeiro durante a palestra de Bolsonaro:
Muito se fala da palestra de Bolsonaro na Hebraica do Rio de Janeiro e do suposto “apoio da comunidade judaica” ao que era dito. É importante lembrar duas coisas:
- Nem todos os que estavam ouvindo a palestra eram judeus. Entendendo a importância do momento, Bolsonaro levou sua claque, que puxou aplausos e gritos de “mito”.
- Em frente à Hebraica, dezenas de judeus protestavam contra a presença do pré-candidato no clube, em manifestação cujo mote era #NãoEmNossoNome.
E se você acha que os judeus tem uma obrigação moral maior do que os não judeus de fazer oposição ao Bolsonaro, sugiro a leitura dessa “carta de resposta dos judeus que não riram”.
7. Lideranças da comunidade judaica repudiaram, de imediato, falas de Bolsonaro no clube A Hebraica do Rio de Janeiro:
Foram inúmeras as manifestações contrárias ao convite e às falas de Bolsonaro no clube carioca. A Confederação Israelita do Brasil emitiu nota dizendo que “Nossa comunidade abriga uma grande diversidade de pensamento, e os dirigentes comunitários precisam ter isso claro para bem cumprirem seu papel (…) A comunidade judaica defende, de forma intransigente, os valores da democracia e da tolerância e o respeito absoluto a todas as minorias”.
A instituição judaica de direitos humanos B’nai B’rith foi mais contundente, registrando o seu “absoluto repudio e indignação pelos pronunciamentos de xenofobia, discriminação e racismo do Deputado Jair Bolsonaro efetuados na oportunidade do dia 3 de abril último no Clube A Hebraica do Rio de Janeiro”.
Já o rabino carioca Nilton Bonder, um dos mais importantes do Brasil, afirmou: “É muito chocante assistir a esses vídeos divulgados. É deplorável. Pior ainda com o rótulo de representatividade (da Hebraica) que não corresponde à opinião da grande maioria da comunidade judaica. É hoje um clube periférico. Não consigo imaginar nenhum material mais contrário aos fundamentos da tradição judaica. (…) É muito grave uma instituição, que, de certa maneira, se apresentou como espaço da comunidade e exibiu bandeiras de Israel, permitir uma situação dessa (…) Foi uma falsidade ideológica com repercussão enorme. A tradição judaica é de valores humanistas e ficou manchada pelos trechos que ficaram ali como sendo uma opinião da comunidade”.
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Insistir na ideia de que ‘judeus brasileiros apoiam Bolsonaro’ é equivocado e interessa apenas ao próprio presidente
8. Depois de vetar Bolsonaro, clube A Hebraica de São Paulo recebeu os ativistas do movimento negro Douglas Belchior e Erica Malunguinho para palestras:
Pouco tempo depois do cancelamento da palestra de Bolsonaro na Hebraica de São Paulo, o clube paulista recebeu o candidato a Deputado Federal Douglas Belchior (PSOL) e a candidata à Deputada Estadual Erica Malunguinho (PSOL) no Festival Aponte, organizado pelo grupo Jovens Sem Fronteiras.
Conhecido como Negro Belchior, Douglas é professor e fundador do Movimento Uneafro-Brasil, além de ativista pelo direito à educação e no movimento negro. Já Erica Malunguinho é criadora do quilombo urbano Aparelha Luzia e está vinculada às lutas antirracistas e de gênero. Erica foi eleita, tornado-se a primeira mulher transexual da Assembleia Legislativa de São Paulo.
A palestra dos dois no clube de São Paulo foi vista por muitos como uma resposta à presença de Bolsonaro na Hebraica do Rio.
9. Racha na comunidade judaica chegou, inclusive, ao empresariado:
Quando a revista Piauí publicou entrevista com Meyer Nigri, fundador da Tecnisa, em que ele dizia acreditar que “90% da comunidade judaica seja a favor de Bolsonaro”, a reação foi imediata.
A Confederação Israelita do Brasil (Conib), divulgou nota lamentando a “atitude de alguns de seus membros, que pretendem identificar a comunidade com um ou outro candidato”.
Claudio Lottenberg, ex-presidente da Conib e do Hospital Albert Einstein, disse que Nigri não tem “nenhuma legitimidade” para falar em nome dos judeus. “A comunidade é absolutamente plural, inclusive há vários judeus em diversos partidos, como Goldman, no PSDB e Jacques Wagner, no PT”, afirmou.
Já Henry Chmelnitsky, presidente do Conselho Geral das entidades ligadas à Federação Israelita do Rio Grande do Sul, ex-vice da Conib e ex-presidente da Federação Israelita gaúcha, lembrou: “Em toda minha vida, nunca vi uma reunião com mais de dez judeus, em que nove fossem a favor da direita. Ele não representa a média da comunidade, que sempre transitou pela diversidade e nunca teve lideranças ligadas aos extremos”.
Alberto Goldman e José Goldemberg também se manifestaram.
Meses depois, o embaixador de Israel, Yossi Shelley, recusou-se a participar de jantar oferecido pela Conib por discordar das críticas da entidade a Jair Bolsonaro. Os empresários Meyer Nigri (Tecnisa), Eli Horn, (Cyrella) e Fabio Wajngarten (secretário de Comunicação do governo federal) também não compareceram.
10. Foram diversos os manifestos da comunidade judaica contra Bolsonaro antes das eleições:
Foram muitos os abaixo-assinados e manifestos organizados por grupos da comunidade judaica. Um deles, assinado junto com grupos da comunidade muçulmana, dizia:
Nós, muçulmanos e judeus, que conhecemos os horrores da islamofobia e do antissemitismo, temos a sensibilidade aguçada para perceber que, entre todas as barbaridades proferidas por este candidato, a mais emblemática, por atingir vários segmentos, foi a de que as minorias devem se curvar à maioria. Essa frase ecoa fundo no coração daqueles que sofrem diariamente a brutalidade do preconceito e da não aceitação, contrariando a nossa Constituição, que nos garante o direito de vivermos em um Estado Laico. As minorias religiosas se sentem ameaçadas em seus direitos à prática de seus cultos, e até mesmo, nas suas existências.
O discurso de ódio fomentou a união de muitos subsetores existentes nas mesmas minorias, e nos une contra o inimigo comum. Manifestamos o nosso mais profundo repúdio a todas as formas de intolerância que possam comprometer o convívio salutar dos cidadãos com todas as suas diferenças, sejam religiosas, de gênero, de cor ou de ideologia política. Ressaltamos que nossa luta não se restringe apenas à figura pessoal do candidato, mas a tudo que ele representa e todos os que reproduzem o seu discurso.
Nossa bandeira comum, como muçulmanos e judeus é barrar toda forma de violência, de preconceito e qualquer outro elemento que dê base ao projeto fascista desse homem e de seus seguidores.
11. Judeus participaram de ato em São Bernardo do Campo quando foi anunciada a prisão de Lula:
Em abril de 2018, judeus estiveram presentes no ato inter-religioso realizado no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em protesto contra a ordem de prisão do ex-presidente Lula.
Na ocasião, Nelson Nisenbaum afirmou: “A liberdade e a justiça são valores fundamentais para nós, judeus… Nós sofremos com o nazismo na Alemanha, e nós estamos sentindo o cheiro do fascismo aqui no Brasil. Onde houver fascismo, o judeu estará ferido. Não interessa contra quem. Se o negro está ferido, o judeu está ferido, se o muçulmano está ferido, o judeu está ferido”.
12. Às vésperas das eleições, um rabino visitou Lula na prisão, em Curitiba:
Impedido de concorrer nas eleições presidenciais de 2018, o ex-presidente Lula recebeu a visita do rabino Jayme Fucs Bar na prisão, em Curitiba.
Integrando uma comitiva de cerca de 35 judeus e judias de vários estados do Brasil, o rabino, radicado em Israel, deixou o kibutz Nachshon, onde vive, especialmente para a visita.
“Entrei e me apresentei: ‘Meu nome é Jayme Fucs Bar’. Para quebrar a formalidade, rapidamente acrescentei: ‘Sou um rabino vermelho’ e o abracei fortemente. ‘Este abraço não é somente meu, mas de milhões de brasileiros que apoiam e rezam por você’”, contou o rabino.
13. Glenn Greenwald é judeu:
Entre todos os opositores de Bolsonaro no Brasil, talvez o que mais tenha contribuído para abalar um dos alicerces do atual governo seja Glenn Greenwald.
Fundador do The Intercept, site que publicou as conversas vazadas entre procuradores e juízes da Lava Jato, Greenwald é judeu — e não esconde esse fato.
14. Protestos contra Bolsonaro em Israel fizeram presidente antecipar volta ao Brasil:
Desde a primeira viagem que fez a Israel, em maio de 2016, Bolsonaro enfrentou protestos de judeus que moram no país. Na ocasião, foram preparados cartazes ironizando a visita ao Museu do Holocausto, dizendo: “Visita o Yad Vashem mas apoia a tortura”.
E assim foi também quando Bolsonaro, depois de eleito, voltou ao país. Um ato convocado pela ONG israelense Associação Pró-LGBT em frente à embaixada do Brasil em Tel Aviv foi programado para apenas horas depois da chegada do presidente, no dia 31 de março. Um dia antes da partida, em 2 de abril, novo protesto, dessa vez no Centro de Jerusalém, organizado por judeus brasileiros. Durante a estada de Bolsonaro em Israel, foram penduradas faixas com os dizeres “A Terra Santa não quer homofóbicos aqui” e “Bolsonaro stop Amazon destruction”, esta última pelo Greenpeace.
Segundo a revista Veja, o medo de novos protestos levou, inclusive, o presidente a antecipar o retorno ao Brasil, cancelando um encontro com brasileiros que vivem na cidade de Ranana.
15. Comunidade fundou o grupo “Judeus pela Democracia”:
O repúdio a Bolsonaro aproximou judeus em grupos de Facebook reunindo milhares de pessoas, que deram origem a uma série de coletivos. Parte desses coletivos tinha objetivos pontuais e já foi desfeita. Outros, como o Judeus pela Democracia, perduram e têm liderado a oposição judaica ao atual governo. Vale acompanhar.
“Mas e os judeus que apoiaram?!”
Muito judeus apoiaram e seguem apoiando Bolsonaro. Um, inclusive, integra o alto escalão do governo. Mas eles não são a comunidade judaica. A comunidade judaica é plural e só não vê quem não quer. Quer cobrar os que apoiaram? Provavelmente verá a adesão de todo esse pessoal listado acima.
Contudo, atribuir a vitória de Bolsonaro, que recebeu 57 milhões de votos, aos judeus brasileiros, que são 120 mil pessoas, é mais do que um erro: é a tentativa de encobrir os verdadeiros motivos e grupos responsáveis pela vitória do presidente.