O livro Amazônia no século XXI: trajetórias, dilemas e perspectivas (Editora Alameda) reúne diversos artigos de especialistas e entrevistas com ativistas e representantes de povos originários.
Organizado por Antônio Rossotto Ioris e Rafael Ioris, a coletânea traz uma entrevista com atual ministra dos Povos Indígenas do Brasil, Sônia Guajajara.
Durante a entrevista para o livro, realizada em 2021, Guajajara conversou com os autores sobre os impactos da covid-19 na região amazônica, a postura do governo de Jair Bolsonaro, a mobilização dos movimentos indígenas e o papel das comunidades acadêmica e internacional dentro das articulações que envolvem a Amazônia.
Leia entrevista na íntegra:
Antônio R. Ioris e Rafael Ioris: considerando tudo que está acontecendo hoje na Amazônia, todas as pressões e transformações, seria possível sintetizar o pensamento ou sentimento geral das populações indígenas na região?
Sônia Guajajara: hoje o sentimento que a gente tem é de estarmos no meio de uma guerra. É um cenário bem perigoso, todo mundo procurando um refúgio, mas que não é fácil encontrar. Tiro de tudo quanto é lado, do garimpo ilegal, do desmatamento, das doenças, da pandemia, e o tiro mais certeiro vem do governo federal. Procuramos abrigo para fugir dessas “balas”, mas não há muito lugar seguro. Às vezes dá uma sensação de impotência, porque é uma batalha muito desigual, de um lado estão os povos [indígenas] e as pessoas que acreditam que temos que proteger a Amazônia, e de outro lado está o trator, tá vindo o “tratoraço”, o governo como uma avalanche passando por cima de tudo, acreditando que desenvolvimento é sinônimo de destruição. Tudo isso cria um cenário muito tenso e perigoso, porque vivemos tudo isso e sabemos que é desastre certo, difícil de reverter.
O que a crise do covid-19 ensinou ou demonstrou em termos de agressões, ou mesmo de mobilização, que não era tão evidente antes?
O coronavírus despertou a sociedade para esse grau de desigualdade que há no país, desigualdade social e política. Dá para ver que a representação institucional está apenas a serviço dos interesses próprios de uma minoria e não da população em geral. Em plena pandemia, eles tentam de todas as formas aprovar medidas que retiram direitos, que exploram o meio ambiente, que negam os modos de vida. Enfim, é um governo totalmente negacionista, e a pandemia escancarou tudo isso. Um governo que nega os números do desmatamento, os dados da própria pandemia, as mortes.
Mesmo quando há evidências ou provas de algo que contrariem seus interesses, imediatamente tentam alterar essa verdade, essas comprovações.
Seja com exoneração de pessoas que estão trabalhando, ou com intimidação, perseguição das lideranças. Além disso, utilizam o autoritarismo, que é muito claro nesse governo em meio à pandemia. Essa situação é resultado de toda essa destruição, essa política de desenvolvimento baseada na exploração do meio ambiente, seja para agricultura, para mineração, para pecuária. Isso causa um desequilíbrio dos ecossistemas que facilita a contaminação pelos vírus, em razão da desarmonia na forma como as espécies interagem.
Se não houver um rompimento desse modelo econômico, outros vírus virão, e ainda mais fortes, com grandes riscos para as pessoas, possibilidade de grande caos, grande catástrofe.
Considerando que o governo atual do Brasil representa tantas novas ameaças, como tem sido a mobilização indígena na Amazônia e no país? Como tem sido a postura da APIB, comparando por exemplo com as ações nos anos 1980 e 1990?
Veja bem, o que estamos fazendo hoje no movimento indígena é uma continuidade dessa articulação que começou na pré-Constituinte. Podemos dividir esse período de trinta anos em três fases: primeiro, a articulação das lideranças indígenas com os constituintes e sua incidência muito importante na escrita da Constituição de 1988. Esse foi o momento pré-Constituinte, quando mesmo sem condições estruturais para atuar, o movimento
conseguiu garantir os artigos 231 e 232 da Constituição Federal. A fase seguinte foi a mobilização em macrorregiões para fazer cumprir aquele direito, entendo que o fato de estar escrito não era garantia de mobilização. Foi quando surgiu a COIAB, em 1989, e outras organizações em outras partes do Brasil, trabalhando de forma conjunta com as entidades que já existiam (como o CIR em Roraima e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, FOIRN). Foi uma luta conjunta pela implementação do direito.
Essa segunda fase durou de 1989 até mais ou menos 2010. Em 2005 surgiu a APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
A terceira fase, em que estamos agora, é lutar para não perder o direito adquirido. Hoje há claras ameaças por parte de um governo anti-indígena, muito bem articulado com as bancadas parlamentares que também são anti-indígenas, as bancadas ruralista, evangélica, da segurança etc. Eles têm muita força. Portanto, o que fazemos hoje é uma continuidade, batalhamos para garantir esses direitos, em respeito às lideranças que lutaram, que fizeram essa conquista. Mas está muito difícil manter o pouco que conseguimos. Por exemplo, está agora em análise o PL 490, que pretende alterar o uso exclusivo dos territórios dos povos indígenas, acaba com a demarcação ao transferir para o Congresso Nacional essa responsabilidade (onde é muito mais difícil podermos exercer pressão), traz o marco temporal para dentro da legislação, ignorando a história de violência e uso da terra antes de 1988.
Está em discussão na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e temos muito receio que, se for aprovado ali, será finalmente aprovado pelo Congresso. Hoje mesmo há uma reunião crucial no parlamento e que poderá ter um resultado histórico e muito perverso. Com tudo isso, nossa bandeira de luta principal é o direito territorial, o que não é diferente do que se buscava na década de 1980 ou 1990.
Nosso ponto central é a demarcação dos territórios indígenas, colocando em prática o que já está reconhecido constitucionalmente. Esse papel cabe à União, mas esse governo tem uma decisão política de não demarcar nada, o governo se declara inimigo e porta-voz de todos aqueles que querem o acesso facilitado para explorar esses territórios.
O que as novas gerações do movimento indígena acrescentaram em termos de formas de mobilização ou pautas de luta? Questões de gênero, por exemplo? A sua atuação como uma liderança feminina demonstra isso?
Hoje temos três formas de articulação. Primeiro, o fortalecimento da participação dos povos indígenas na política institucional. Temos buscado muito ocupar esse espaço por meio disputa eleitoral. Em 2017, a APIB lançou o chamado “por um parlamento cada vez mais indígena”. Em muitas reuniões nos estados, articulamos candidaturas de lideranças indígenas e 2018 foi um marco em razão do número expressivo de candidatas e candidatos para o poder legislativo e até mesmo para a Presidência da República. Foi nesse contexto que eu pude compor uma chapa presidencial (como candidata a vice-presidente). Isso foi representativo, porque 518 anos depois tivemos a primeira presença indígena em uma chapa presidencial e com uma candidata mulher, feminina. Conseguimos bons resultados, como a eleição da deputada Joênia Wapichana, primeira mulher indígena eleita, também com Chirley Pankara, eleita primeira codeputada estadual indígena em São Paulo, em mandato coletivo.
Em 2019, realizamos a primeira marcha das mulheres indígenas no Brasil e no mundo, que serviu de exemplo para o resto do planeta, contou com muitas companheiras de outros países, que levaram a mensagem de volta para sua terra influenciadas com o nosso protagonismo. Nas eleições de 2020, conseguimos eleger 44 mulheres, entre vereadoras e vice-prefeitas. Estamos presentes na política de forma expressiva. Também temos mulheres na coordenação do movimento indígena, como na coordenação da APIB e ainda na coordenação-geral da COIAB, que tem da mesma forma uma coordenação paritária (duas mulheres e dois homens).
O mesmo em várias outras coordenações estaduais. Em 8 de março desse ano (2021), lançamos a ANMIGA, Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. Tudo isso não é fácil, muitos povos têm restrições à participação das mulheres, uma questão cultural, mas temos já muitas companheiras que se colocam, enfrentam e ocupam seus espaços. Podemos até dizer que hoje no Brasil as principais lideranças que têm feito um enfrentamento direto são mulheres. Temos deputadas e vereadoras eleitas. Claro que há também muitos homens eleitos, em número até maior, que fazem seu papel, mas temos que reconhecer que as mulheres têm cumprido seu papel e feito uma grande diferença. Não queremos apenas ocupar o lugar, trazer a transformação, apresentar um projeto de país, garantir a igualdade de gênero.
O que o olhar da mulher indígena traz de novo e que precisa ser inserido na pauta?
Nós, povos indígenas, temos toda uma relação com a mãe-natureza, de respeito pela mão-terra, são as mulheres que sentem a dor de dar à luz e de criar e cuidar. Por sentir a dor, a gente sabe cuidar melhor. Então, temos o olhar de não só confrontar, mas de apresentar um projeto concreto para as relações sociais, culturais e para essa mudança de consciência. Estamos discutindo entre nós e queremos lançar uma iniciativa este ano chamada “Reflorestamente”, voltado à recuperação e reflorestamento dos territórios.
Valter Campanato/Agência Brasil
Em entrevista de 2021, Guajajara destaca impactos da gestão Bolsonaro aos povos originários e meio ambiente
É um projeto não só de país, mas de mundo, uma questão urgente. Mas, para proteger o meio ambiente, é necessário proteger as culturas, a diversidade dos povos, os modos de vida. O nosso futuro depende de escolhas políticas e dessa consciência ecológica, que não são questões dissociadas, separadas, mas são uma só. A gente traz essa proposta de um projeto concreto e um chamado global para ação, não somente esperando que os governos façam, mas nós também territorialmente podemos provocar uma mudança.
Dentro da diversidade dos povos indígenas, existe alguma proposta comum para o futuro? E como se engajar com outros movimentos sociais para atingi-la?
Existe muita articulação entre diferentes grupos e movimentos da Amazônia, até porque temos que ter uma luta conectada. Não dá para cada um fazer a sua luta. Mas também é chave que haja a valorização das diferentes culturas, dos diferentes modos de vida da Amazônia. Valorização das diversas iniciativas que já existem até porque nossa biodiversidade está totalmente ameaçada. E especialmente quem olha de fora tem que entender que são os povos indígenas, acima de tudo, que protegem essa biodiversidade.
O equilíbrio climático que o mundo busca hoje será promovido pelos povos indígenas. Não adianta achar que altas tecnologias, como as que estão sendo propostas pelos Estados Unidos, por exemplo, vão dar conta. Isso não vai dar certo se não houver apoio às comunidades tradicionais da Amazônia. E isso passa, antes de tudo, pelo reconhecimento e pela regularização dos seus territórios. Comparadas com as outras áreas públicas, as terras indígenas são as mais preservadas. E não é que existe nelas uma maior repressão ao desmatamento por parte das autoridades, como alguns pensam, até porque hoje nem existe uma política de proteção. Quem garante essa proteção são, de fato, povos tradicionais da
Amazônia, com seus diversos modos de vida. Mas o discurso do governo atual não reconhece e ataca essa diversidade. Promove-se o falso discurso de que somos todos brasileiros, mas com direitos, de fato, diferentes porque as condições de existência são totalmente desiguais.
Então, temos que valorizar as diferentes culturas da Amazônia, garantindo a preservação de seus territórios para que se garanta a preservação da natureza, da floresta que está ali em pé, garantindo, assim, o ar, a água, o alimento etc. E tudo isso passa, primeiro, pela conscientização do papel dos povos dos territórios tradicionais.
Até que ponto a pauta indígena pode ter sinergia com outros movimentos sociais?
A principal sinergia se dá na luta pela terra. Mesmo que povos diferentes possam utilizar a terra de modos diferentes, tudo passa pela garantia da terra. Hoje o modelo da monocultura centraliza o uso da terra e exclui os outros povos e seus modos de existir. Então nossa luta passa, acima de tudo, pela garantia da democratização do uso da terra. A terra não pode ter só um modelo de utilização. Até para se garantir a produção dos alimentos que se comem, não somente a produção voltada para a exportação.
E é possível haver diálogo com o agronegócio que quer cultivar soja nas áreas indígenas?
Isso é muito difícil porque eles somente querem o lucro da exportação, querem sempre produzir mais e mais. E, para nós, o que importa é garantir a vida, o viver bem das nossas comunidades. Mas o que eles propõem é que a gente seja cada vez mais expulso da terra. Essa concepção é sinônimo de destruição, é uma visão de progresso a partir da destruição. Ou seja, é uma visão irreconciliável pois nossa visão é a da proteção.
E qual o papel dos atores internacionais e da academia nesse processo?
Muitos de fora acham que entendem a Amazônia embora ainda tenham uma visão tida como ambientalista, mas que na verdade concebe a Amazônia somente como bicho e mato. Nessa visão, proteger a Amazônia seria somente proteger animal e planta. É fundamental que se entenda que na Amazônia tem gente.
De fato, uma enorme variedade de gente, de culturas, de modos de vida. E essas pessoas estão hoje sendo brutalmente atacadas. Veja que de todos os assassinatos na América Latina hoje, metade está na Amazônia, e dessa metade, metade é composta por indígenas.
E tudo por causa de conflitos ligadas à nossa defesa e luta pela terra.
Hoje o Brasil é um dos piores países para os defensores dos direitos humanos e do meio ambiente. E é essencial que se entenda que para proteger a Amazônia, há que se proteger as culturas tradicionais da Amazônia. Que se compreenda que na sua diversidade, essas populações são centrais para a proteção da Amazônia. Nesse processo, a academia tem um papel fundamental, especialmente promovendo essa conscientização, especialmente junto aos mais jovens que poderão fazer mais.
A comunidade internacional como um tudo também tem um papel importante, especialmente com relação às empresas internacionais que atuam na Amazônia. Os consumidores dos outros países de onde vem essas empresas tem que ter ciência de como os produtos são produzidos na Amazônia, tem que exigir um selo de qualidade com respeito dos direitos ambientais e direitos humanos. E a sociedade civil desses países também pode pressionar suas lideranças políticas criar novas leis, ou mesmo impor sanções que obriguem suas empresas locais a cumprir regras de produção de produtos que respeitem esses direitos humanos. Nós temos trabalhado muito para que isso ocorra.
E isso vem ocorrendo?
Sônia: Sim. Mesmo hoje quando o agronegócio tem tantos aliados no governo, percebemos uma maior adesão de várias pessoas e grupos querendo apoiar nossa luta.
E o que mais te dá esperança?
Primeiro, o fato de termos mais lideranças indígenas em várias esferas da política. Além disso, o fortalecimento das cadeias produtivas locais, pois isso cria alternativas para que possamos enfrentar os grandes interesses empresariais. É urgente que repensemos nossa atual lógica de produção e consumo, tão agressiva, tão destrutiva.
Nos últimos dois anos, a APIB, junto com a Amazon Watch, produziu dois estudos que mapeiam as empresas que violam direitos ambientais e direitos humanos, os relatórios Cumplicidade na Destruição. O primeiro mapeou a Amazônia, o segundo incluiu o Cerrado e a Mata Atlântica, e estamos fazendo agora um terceiro que será sobre o país todo. Recentemente muitos indígenas têm se formado em universidades. Como se deu isso e seus impactos?
Isso foi fruto das políticas afirmativas do governo Lula, que infelizmente estão sendo totalmente destruídas. Foi um processo muito positivo, pois fez uma enorme contribuição tanto para nossas comunidades quanto para a sociedade em geral. Temos que parar de achar que para ser indígena tem de estar na aldeia. Os indígenas têm que ser aceitos, como indígenas, em todos os lugares onde estiverem. Precisamos deixar de criar estranheza quando chegamos em algum lugar. Isso tem que ser superado.
Existe alguma articulação entre indígenas dos outros países da Amazônia?
Sim, temos uma articulação forte com a COICA (Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica), que congrega nove países, e com a AMPB (dos indígenas da Meso-América), e juntos trabalhamos com indígenas da Indonésia em diversas ações de coordenação de políticas que buscamos promover em escala global.
O que os indígenas reivindicariam em um novo governo, popular e democrático?
Primeiramente, demarcação já. Algo que foi falho no último governo democrático que tivemos, que poderia ter avançado muito mais. Depois disso, que é a nossa principal bandeira de luta, reivindicamos também a participação dos povos indígenas na construção de um novo projeto de pais.
Por fim, o que é a Amazônia para a senhora e como deveríamos pensar a Amazônia?
A Amazônia é vida no mundo. Muito mais do que o pulmão do mundo, é vida. E pensar a Amazônia é pensar toda a sua diversidade, muito além.
da floresta. Temos que pensar a Amazônia respeitando suas culturas, seus povos e seus territórios. Pensar que essa diversidade é uma contribuição que a Amazônia dá ao planeta como um todo.