Mesmo com uma grande popularidade (65%), fruto da recuperação política e econômica conquistada durante seu mandato (2003-2007), o presidente Néstor Kirchner decidiu não concorrer à reeleição, cedendo a candidatura à esposa, a senadora Cristina Fernández de Kirchner – famosa nos anos 1990 por lutar contra as políticas neoliberais de Carlos Menem (1989-1999).
Em outubro de 2007, Cristina conseguiu ser eleita no primeiro turno com 45,29% dos votos. Mas a análise dos resultados das eleições foi preocupante. Cristina ganhou nos subúrbios miseráveis, nas pequenas cidades e no campo. Nas grandes cidades, o desempenho da candidata foi ruim, lembrando o tradicional distanciamento das classes médias em relação ao movimento peronista, especialmente quando ele se declara “de “esquerda”.
Ricardo Stuckert/PR
Em 2003, o então presidente Néstor Kirchner e Cristina recebem o presidente Lula e a primeira-dama
Marisa Letícia em El Calafate, Argentina
Positiva durante os primeiros quatro meses de gestão, a popularidade da presidente caiu na primeira crise política, em março de 2008. Naquela época, ela decidiu aproveitar os preços historicamente elevados dos grãos produzidos no país para aumentar a taxação das exportações em até 45%. Enfurecidos, agricultores organizaram uma reação com a ajuda da grande mídia, cujos capitais são vinculados ao agronegócio. Caminhões foram mandados para bloquear a entrada de alimentos nas cidades, causando desabastecimento.
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Nas cidades, especialmente em Buenos Aires e Rosário, grande parte da classe média apoiou os agricultores. Milhares de argentinos saíram às ruas, com panelas na mão, para protestar contra o governo. A oposição pegou carona no descontentamento para tentar desgastar ainda mais Cristina. A inflexibilidade da presidente agravou a crise.
A queda de popularidade parecia paradoxal quando se atentava para os indicadores econômicos. No início de 2008, o crescimento ainda era forte, tal como a criação de empregos; os investimentos continuavam e o governo constituiu um confortável colchão de reservas internacionais, que protegia o país contra a turbulência internacional. No segundo semestre, enquanto a crise financeira mundial provocava uma severa recessão em muitos países, a Argentina resistia e voltava a crescer rapidamente.
No entanto, segundo pesquisas feitas em 2009, menos de 20% dos argentinos faziam uma avaliação positiva do governo. Como consequência, em junho de 2009, a presidente perdeu a maioria no Senado e no parlamento. A chapa que Néstor Kirchner liderava na província de Buenos Aires nas eleições legislativas perdeu para a de Francisco de Nárvaez. Alguns analistas diagnosticaram à época o colapso do governo, considerando que o casal Kirchner não tinham como reverter a tendência negativa antes da eleição presidencial de outubro de 2011.
Um dos principais assessores presidenciais, Rafael Follonier, afirma que este é apenas um momento ruim. “Temos problemas porque o país está indo bem. Fizemos muitas mudanças que não agradaram o establishment, que está desesperado para derrubar este governo”, explicou em entrevista ao Opera Mundi, em seu escritório, vizinho à sala de Cristina na Casa Rosada.
Follonier enumera o que considera como grandes realizações do governo: a política de direitos humanos, apesar das resistências do setor militar; a introdução da “gratificação universal”, um subsídio pago para cada criança de famílias pobres em troca da vacinação e de escolaridade e a decisão de nacionalizar o sistema de previdência privada, que abrangia 9,5 milhões de argentinos, tomada no final de 2008. “Foi uma reforma muito progressista que perturbou muito o setor financeiro”, analisou.
Efe (21/05/2010)
Cristina chuta uma bola de futebol em estande dedicado ao Brasil na avenida do
Bicentenário, em Buenos Aires
Batalha da mídia
O assessor inclui em sua lista de realizações também a aprovação de uma lei sobre os meios de comunicação, que tem como objetivo democratizar o setor audiovisual argentino, concentrado nas mãos de conglomerados (incluindo o grupo Clarín) e a política externa, voltada para os vizinhos latino-americanos, enquanto o grande capital continua a defender um tratado de livre comércio com os Estados Unidos.
Follonier denuncia a campanha sistemática da mídia contra o governo, reconhecendo, contudo, que a popularidade em declínio também se explica por uma “questão de estilo” da presidente. O sociólogo Roberto Marafioti, que analisou a semântica do discurso de Cristina, confirma a tese: “Ela procura o conflito permanentemente. É uma excelente oradora, mas uma comunicadora muito ruim. Não consegue perceber quando irrita e tem dificuldade em ganhar apoio. É exatamente o oposto de seu marido, que fala muito mal, mas consegue construir uma empatia junto com o público”.
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No entanto, Marafioti considera igualmente que Cristina está pagando o preço do machismo da sociedade argentina. “É verdade que outras mulheres foram eleitas e bem aceitas em outros países da região, como Michelle Bachelet [no Chile], mas com um perfil maternal, algo totalmente ausente em Cristina. Ela é muito dura, parece não ter nenhuma dúvida”, completou.
A questão da batalha midiática e da comunicação deficiente do governo não é secundária na Argentina, pois pode esconder o apoio real das classes humildes. O exemplo da “gratificação universal” é muito representativo desse problema. Em outubro de 2009, o Estado começou a pagar um subsídio de 180 pesos por criança para as famílias pobres. O programa, que vem sendo implementado gradualmente, já se estendeu a 3,5 milhões de crianças. Nas províncias mais pobres, como Catamarca, mais de 52% das famílias recebem o subsidio. “Este é o programa social mais importante da América Latina”, afirma o pesquisador Adrian Rozengardt, especialista em problemas sociais da infância.
“Argentina Trabalha”
Para estimular a geração de emprego e as economias locais, o governo lançou o plano “Argentina Trabalha”, que criou cerca de 100 mil empregos com obras de infraestrutura e de moradias populares. “Nos subúrbios de Buenos Aires, ambas as medidas têm um impacto enorme: são milhões de pesos que chegam a esses municípios, o que estimula o comércio local”, assegurou o pesquisador Adrian Rozengardt. Contudo, afirma, os principais jornais e canais de televisão não noticiaram nada.
Lamia Oualalou/Opera Mundi
Fachada do centro “Argentina Trabalha”, na cidade de Tigre, próximo a Buenos Aires
Uma visita ao município de Tigre, localizado a 28 km da capital, é suficiente para medir a importância do fenômeno. Com 350 mil habitantes, é uma das cidades mais injustas da Argentina, com a justaposição de condomínios fechados de alto luxo e de “vilas-miséria” – como são chamadas as favelas – com os piores indicadores sociais do país.
“Aqui, mais de 27% das crianças vivem na indigência, sem nada”, confirmou a ativista social Lizu Salcedo, encarregada dos programas sociais em Tigre. Muitos deles vivem na favela de San Pablo, hoje em grande mutação. “Seis meses atrás, todas as casas eram feitas de papelão e chapas de metal laminado. Agora, eles têm uma casa digna”, pontuou. Os moradores são progressivamente transladados para novas moradias, construídas graças ao “Argentina Trabalha”.
Maria Orosco, de 80 anos, foi uma das primeiras beneficiárias da medida. Empregada domestica até aos 72 anos, ela exibe com orgulho a nova casa, de três quartos, que ganhou já com móveis. “Mesa grande, sofá bonitinho, camas de madeira, tudo! As únicas coisas que eu tinha antes eram a geladeira e televisão”, contou, com um sorriso.
Maria divide a casa com a filha, Ilda, que tem pela primeira vez um trabalho com carteira assinada, em uma cooperativa do “Argentina Trabalha”. No apartamento em frente, a outra filha, Ester, conseguiu recuperar os filhos, até então no interior com o resto da família, graças à “gratificação universal”. “Antes, ela não tinha nada para dar a comer às crianças. Para nós, tudo mudou, graças a aquela senhora”, conta Maria, sem conseguir lembrar o nome da presidente.
A avó, porém, aponta uma deterioração do dia-a-dia da família, causada pela constante aumento dos preços. “No ano passado, um quilo de ‘milanesas’ custava 12 a 15 pesos; agora você tem de pagar entre 26 e 30 pesos. É a mesma coisa para o frango”, lamenta.
Lamia Oualalou/Opera Mundi
Maria Orosco, ao falar sobre a presidente: “Para nós, tudo mudou, graças a aquela senhora”
Inflação
A inflação, que ultrapassa 25%, é o calcanhar de Aquiles do governo. O que começou como um problema técnico e econômico virou o principal tema de uma batalha política, quando os Kirchner teriam maquiado os números. A partir de 2007, o Indec (instituto de estatísticas da Argentina) supostamente alterou os resultados das pesquisas, negando o aumento dos preços.
“Foi um erro grave”, na opinião do analista político Marcelo Leiras. “Essa decisão teve um impacto devastador sobre a credibilidade da opinião pública. O governo alegava que estava tudo bem, contrariando a percepção dos cidadãos que, com a mesma renda, compravam menos produtos”, explicou.
O empresário Ernesto Kritz, membro de uma consultoria especializada em questões salariais, calculou, por exemplo, que a “gratificação universal” já desvalorizou 20% desde que foi implantada, já que os alimentos são os mais afetados pela alta dos preços. “Se a tendência continuar, Cristina, que já tinha perdido o apoio da classe média, vai perder as classes populares”, avaliou.
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