A nova força internacional que será formada para atuar no Haiti não é exatamente uma missão de paz das Nações Unidas, como aquela que o Brasil liderou de 2004 a 2017, conhecida como Minustah. Mas o aval da organização, formalizado nesta segunda-feira (02/10) por seu Conselho de Segurança, era considerado essencial para dar segurança jurídica aos países envolvidos.
Afinal, o cenário é nebuloso. O Haiti vive um colapso das instituições e grande parte da capital, Porto Príncipe, está sob controle de gangues. Ao menos 2 mil homicídios e mil sequestros foram registrados apenas no primeiro semestre de 2023, segundo estimativas da ONU.
O Brasil foi consultado sobre a possibilidade de voltar a atuar no Haiti. E o governo concordou em fazê-lo, mas sem mandar tropas das Forças Armadas dessa vez. Segundo fontes da diplomacia brasileira, o país está disposto a fornecer apoio logístico e de inteligência, por meio de treinamento à Polícia Nacional do Haiti (PNH). A expectativa é que uma equipe da Polícia Federal visite Porto Príncipe na segunda quinzena de outubro para fazer um diagnóstico sobre as principais necessidades e definir o escopo do trabalho.
Em vez de combater a criminalidade local, como fez durante 13 anos, o Brasil pretende contribuir para que possa haver redução da criminalidade local operada pelo policiamento haitiano. “(Queremos) formar policiais que sejam multiplicadores, para que rapidamente isso alcance o maior número possível de policiais haitianos”, disse o delegado Valdecy Urquiza, diretor de Cooperação Internacional da Polícia Federal (PF), à BBC News Brasil.
O fato de o Brasil ter vetado o envio de tropas tem relação com um mal-estar entre uma parte dos generais e o governo Lula, segundo avaliação da cúpula do Palácio do Planalto tornada pública pelo jornalista Jamil Chade. O clima pouco propício, notado desde os primeiros dias da gestão Lula, teria ganhado dimensão após as revelações de que o ex-presidente Jair Bolsonaro teria debatido a possibilidade de um golpe com a cúpula das Forças Armadas. Seria preciso esclarecer essa situação doméstica antes de cogitar enviar tropas ao exterior.
Muitos comandantes brasileiros que lideraram a Minustah, considerada na própria ONU como um equívoco em termos de política externa, tiveram papel importante no governo Bolsonaro, caso de Augusto Heleno, Fernando Azevedo e Silva, Tarcísio de Freitas e Carlos Alberto dos Santos Cruz.
Além da situação doméstica, o governo brasileiro considera que qualquer operação deve ter como foco o desenvolvimento do Haiti, a fim de propiciar resultados concretos. Caso contrário, em poucos anos, a crise voltará. Tem sido assim desde 2017, quando o fim da presença da ONU abriu uma nova etapa de desestabilização, com a explosão de violência e uma disputa pelo poder.
Sem a opção do Brasil, a ONU solicitou que o Canadá assumisse a tarefa. O plano foi estudado. Mas o governo concluiu que o envio de tropas era arriscado e acabou também desistindo.
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Lula com soldados brasileiros pela Minustah durante seu primeiro mandato, em 2004
O governo dos Estados Unidos, principal destino dos haitianos que emigram atualmente para fugir da violência, também já anunciou que não enviará soldados. Mas ofereceu apoio médico, de transporte e de inteligência à equipe internacional. O chefe da diplomacia, Anthony Blinken, anunciou que o governo solicitaria ao Congresso um pacote de US$ 100 milhões para apoiar a missão.
Em seguida, decidiu-se pelo Quênia, que se ofereceu para liderar a força internacional e enviar mil homens. Jamaica, Bahamas e Antígua e Barbuda também indicaram que podem contribuir.
Após a decisão da ONU, o primeiro-ministro haitiano, Ariel Henry afirmou por meio das redes sociais que “o povo haitiano agradece muito ao Conselho de Segurança e ao Secretário-Geral das Nações Unidas”.
Segundo o jornal Al Jazeera, Henry também agradeceu ao Quênia por assumir a liderança no envio de tropas para seu país.
Envolvimento do Quênia
Segundo a reportagem da Al Jazeera, o país africano tem um “histórico” de envio de tropas para “´países voláteis”. Além de assumir o envio das forças na missão da ONU, em julho ofereceu-se a enviar 1000 militares para Porto Príncipe.
“Nairobi diz que quer participar na reconstrução do país, que há anos é governado por autoridades não eleitas”, afirmou a publicação que também entrevistou analistas sobre os ganhos do Quênia neste envolvimento.
“A nível global, o envio das suas forças para o Haiti dá ao Quênia um capital político muito sério. Aos olhos do mundo, o Quênia torna-se um aliado confiável que está disposto a ajudar outros países”, disse o analista Dismas Mokua à Al Jazeera.
De acordo com o especialista, o envio também beneficia as tropas quenianas antes mesmo da missão, quando receberem equipamentos especializados, por exemplo.
A situação do Haiti
Ao menos desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021, o Haiti vive uma situação de colapso. Os últimos mandatos de deputados e senadores expiraram no começo de 2023 e não há representantes eleitos nem para o Congresso, nem para a Presidência.
O governo provisório do primeiro-ministro Ariel Henry não vê condições de fazer eleições, dada a falta de segurança. O país possui cerca de dez mil policiais para uma população de quase 12 milhões de pessoas, ou seja, 1.200 cidadãos para cada policial — no estado de São Paulo, a razão é de 556 para 1: são 80 mil PMs para 44,5 milhões de habitantes.
Além disso, quase 5 milhões de pessoas passam fome atualmente. As condições de desabastecimento são agravadas pela atuação das gangues, que dificultam o escoamento da produção agrícola de uma região para a outra do Haiti. No ano passado, uma das facções tomou o controle do principal terminal portuário do país e passou a impedir a chegada de combustível e até mesmo de água potável ao Haiti, que naquele momento enfrentava uma epidemia de cólera.
(*) Com Brasil de Fato