Procuradores da Lava Jato peruana voltarão ao Brasil nesta terça-feira (23/04) para ouvir um novo depoimento do ex-diretor da Odebrecht no Peru, Jorge Barata, cujos depoimentos anteriores implicaram todos os últimos quatro presidentes eleitos no país andino, incluindo Alan García, que se suicidou na última quarta (17/04) pouco antes de ser preso. Mesmo diante do trágico acontecimento, a operação, que dizimou a classe política do Peru, pretende dar continuidade às investigações em meio ao apoio popular angariado e às ainda tímidas críticas e questionamentos sobre os métodos empregados ao longo da força-tarefa.
García, prestes a completar 70 anos, sempre alegou inocência frente às acusações de recebimento de coimas (propinas)no valor de 4 milhões de dólares provenientes da brasileira Odebrecht na licitação do metrô de Lima e da estrada Interoceânica, duas megaobras que marcaram sua gestão de 2006 a 2011. A delação do brasileiro Barata, implicando pessoas do entorno do ex-presidente, incluindo seu ex-ministro e secretário pessoal Luis Nava, foram as bases da decisão da Justiça peruana que determinou a detenção de García, sem a demonstração de provas materiais.
O ex-mandatário havia pedido ao Uruguai asilo político, denunciando ser vítima de perseguição, argumento rejeitado pelos uruguaios no início do ano.
“O presidente sempre assumiu suas responsabilidades frente ao povo e à história, não frente à polícia fascista que deseja exibir troféus. Estabeleceu-se um mecanismo de perseguição e busca de popularidade de pessoas imbuídas de poder que querem passar para a história como carcereiros, mas suas biografias ficarão escritas em páginas muito escondidas e com letras bem pequenas”, afirmou o deputado do Aliança Popular Revolucionária Americana (Apra) Mauricio Mulder, amigo pessoal de García e um dos poucos críticos dos métodos empregados ao largo dos processos e suas consequentes sentenças.
“A visão crítica é por parte da população, a qual considera que se está abusando de duas figuras jurídicas: a detenção preliminar, que permite o encarceramento do investigado por até dez dias e a prisão preventiva, quando a reclusão pode alcançar 36 meses. Nós, os analistas políticos, dizemos que a justiça é igual para todos”, diz o analista peruano Luis Fernando Nunez.
No ano em que elegeu o combate à corrupção como tema da República para 2019, a Justiça decretou a prisão preventiva do último presidente eleito, Pedro Pablo Kuczynski, de 80 anos, que renunciou ao cargo devido a supostos delitos de corrupção em 2018, além da compra de votos de parlamentares para evitar sua destituição. Na mesma condição, desde o ano passado, está a opositora Keiko Fujimori, líder do fujimorismo, corrente majoritária no Congresso através da Fuerza Popular. Ollanta Humala (2011-2016), presidente que permaneceu privado de sua liberdade por quase um ano, segue investigado e há ainda a demanda para extradição do ex-presidente Alejandro Toledo (2001-2006), atualmente vivendo nos Estados Unidos, todos por conta de possíveis desvios relacionados às atividades da Odebrecht.
Os conflitos de García
Apesar da montanha russa que caracterizou a atuação política do líder do movimento aprista, o suicídio chocou aliados e adversários, uma vez que o enfrentamento de crises era recorrente na carreira do político, eleito pela primeira vez à presidência com 35 anos. Embora surpresos com a notícia de que o ex-mandatário havia atirado contra a própria cabeça no momento em que a polícia entrava em sua casa, o sentimento expressado por muitos demonstrava pouca resignação diante do ocorrido, senão um tom revanchista, conforme expressam peruanos ouvidos pela reportagem. O atual presidente Martín Vizacarra expressou suas condolências.
Da tentativa de nacionalização de setores da economia durante o primeiro mandato de 1985 a 1990, quando chegou a ser considerado uma liderança do campo de esquerda na região, ao alinhamento às práticas neoliberais nos anos 2000, época em que voltou à presidência, García manteve-se por décadas na dianteira de um dos movimentos políticos maios longevos do Peru, o Apra, apesar das contestações. “Em 1985, o partido Aprista, que havia sido proscrito em décadas anteriores ao ser vinculado com a extrema-esquerda, tinha entre suas bandeiras a luta contra o imperialismo. Sob essa perspectiva, García representava o social cristianismo e vinculava-se à Internacional Socialista”, diz Luis Poma, assessor parlamentar da Frente Ampla peruana.
“Seu governo tenta expropriar os bancos privados, razão do confronto com as oligarquias, desencadeando hiperinflação e o descalabro econômico. Essa posição inicial de estatizar os meios de produção se contradizia com a política que atentava contra os direitos humanos em sua luta contra o Sendero Luminoso, grupo guerrilheiro”, complementa. As evidências de violações possuem uma síntese da violência empregada pelo Estado no episódio da Matança de El Frontón, quando cem presos que seriam ligados à guerrilha foram assassinados durante um suposto motim na ilha prisão localizada nas proximidades de Lima, em 1986.
Exílio e volta
Logo após deixar o Executivo, o ex-presidente considerou-se ameaçado pelo regime de Fujimori, que governaria entre 1990 a 2000, e exilou-se por oito anos entre a Colômbia e a França – García evitava repetir a experiência vivida por seu pai, preso político durante a ditadura de 1950 por trabalhar como secretário do Apra. De volta ao Peru com a prescrição de processos que enfrentava, perderia a eleição de 2001 para Alejandro Toledo. Cinco anos mais tarde, em aliança com as oligarquias que antes enfrentara, derrotaria Ollanta Humala, associando o adversário ao chavismo, ao mesmo tempo em que se apresentava como moderado e capaz de fazer o país avançar.
O arrojo discursivo e a moderação bastaram para que o eleitorado relevasse as denúncias de violação e as dificuldades financeiras da primeira gestão, colocando uma vez mais Alan García no principal posto da República em 2006.O chamado superciclo econômico experimentado com o subida do preço dos minerais, sobretudo do cobre, fizeram o PIB peruano deslanchar, possibilitando a realização de obras e alguns programas sociais como o Água para Todos. A sensação, no entanto, era de que a bonança pertencia às empresas e investidores e não à massa dos trabalhadores.
A última eleição comprovou o espaço perdido. García fez menos de 5% dos votos no primeiro turno da disputa presidencial e o movimento aprista elegia uma de suas menores bancadas para o Parlamento, com apenas cinco deputados. Pesquisa divulgada pela Ipsos em 2018 apontou que 90% da população desaprovava o ex-presidente, números que foram de alguma maneira amenizados com o comparecimento expressivo de apoiadores ao funeral público do líder, que deixou uma carta lida por sua filha Lucia na qual expõe as razões para o seu ato.
“Se reverterá (essa rejeição), porque, ao final da história, onde está a propriedade, as minhas contas correntes? Não existem. O que me interessa é que o Peru avance e o partido aprista se mantenha. Passarão os anos para entenderem que o meu interesse é pela história e não a opinião imediatista e pequena dos que agora vivem”, declarou Alan García em entrevista à TV peruana, um dia antes de seu suicídio.
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Concentração no funeral de Alan García, que era investigado pela Lava Jato; procuradores voltam ao Brasil