O jurista argentino Luis Moreno Ocampo participou nesta semana de um debate no Cinusp Paulo Emílio, após a projeção do filme Argentina, 1985 (2022). Moreno foi um dos protagonistas do episódio focalizado no filme, o chamado Julgamento das Juntas, que condenou líderes da ditadura militar argentina iniciada em 1977 e encerrada em 1983.
No debate, Ocampo falou sobre diferenças históricas entre Argentina e Brasil que colaboraram para interromper os ciclos ditatoriais no país vizinho de 1983 até hoje, enquanto no Brasil a impunidade militar prevalece desde o encerramento oficial da ditadura (1964-1985) até os ciclos golpistas dos anos 2010 e o período do ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro no poder.
“A Argentina é um caso único, no sentido de que permitiu o debate público. E essa é a enorme diferença, que não aconteceu em país nenhum no mundo”, afirmou o jurista, ressaltando a ação do presidente Raúl Alfonsín (1983-1989) a partir da vitória nas eleições redemocratizadoras de 1983, com 52% dos votos, que, segundo ele, “apenas cumpriu sua promessa, instituindo a primeira Comissão Nacional da Verdade”.
Para o argentino, a transição democrática no Brasil seguiu um modelo de forma “que os professores de ciência política propunham como correto”, tendo o argumento central “de que não devemos desafiar que a história volte. Se queremos evitar isso, tenhamos democracia, e não ditadura.”
Argentina, 1985 retrata, de maneira ficcionalizada, o Julgamento das Juntas, liderado pelo então procurador-geral argentino, Júlio Strasser (interpretado por Ricardo Darín), e por Moreno (Peter Lanzani), então com 33 anos. Ambos tiveram de enfrentar suas contradições durante o processo.
Sobre o primeiro, pesava a suspeita de que “se fez de bobo” durante a vigência da ditadura; o segundo era descomprometido com o regime, mas pertencia a uma família de elite militar, e sua mãe frequentava a mesma igreja que Jorge Rafael Videla, tenente-general do Exército e ditador argentino entre 1976 e 1981.
“Me encanta essa coisa dura, real. Os militares de minha família são fascistas, mas boa gente. São fascistas, mas não mataram ninguém”, ironizou.
Outro elemento único a determinar o curso dos acontecimentos na Argentina, para Ocampo, foi a juventude da equipe de procuradores com quem ele trabalhou, explorada no filme de Santiago Mitre: “eram jovens de 22 ou 23 anos, e os jovens não têm apego ao sistema”, explicou, celebrando a juventude também predominante na plateia do Cinusp.
No filme, o personagem de Moreno Ocampo defende a escolha de jovens em vez de ativistas dos direitos humanos vistos como “comunistas” pela classe média. O objetivo, diz, é conquistar o apoio da classe média, que tem tendência a aceitar golpes militares e que dita os rumos da opinião pública.
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Ocampo apontou diferenças no enfrentamento às ditaduras militares na Argentina e Brasil
Em Argentina, 1985, é saborosa a sequência em que os candidatos a compor a equipe de Strassera são entrevistados e demonstram parcos conhecimentos ou interesses em política. O humor e a emoção são artifícios preferenciais usados por Mitre para fazer do filme uma experiência catártica.
Quando uma testemunha narra no julgamento as torturas e maus-tratos que sofreu durante a gravidez e o parto, a mãe de Moreno Ocampo, até então opositora ferrenha do processo, lhe telefona para dizer que ele tem razão. É uma senha de que a opinião pública está mais favorável aos procuradores que aos militares. Mitre parece usar o mesmo estratagema para angariar simpatias antifascistas em suas plateias.
Moreno Ocampo cita a ponderação que ouviu de um professor vietnamita durante um debate, de que “a guerra se vive primeiro no campo da batalha e depois na memória, que é o campo de batalha permanente”. “Nada pode mudar o que aconteceu nos anos 1970, mas é possível aprender, o que significa não somente reparar o passado, mas entendê-lo. A violência na América Latina dos anos 2010 não é majoritariamente política, é econômica. É preciso haver uma estratégia para combater, e não há”, interpretou.
E acrescentou: “golpe de Estado não é produzido pelos militares, mas pela elite que se utiliza dos militares”.
Na peça de denúncia contra generais, tenentes, almirantes e brigadeiros em 1985, o promotor Strassera classificou a resposta militar aos que definiam como “subversivos”, à base torturas, sequestros, estupros, desaparecimentos e homicídios, como “feroz, clandestina e covarde”.
Mitre filma esse momento como catarse, contrastando os semblantes graves dos comandantes militares durante a leitura da denúncia com a explosão de aprovação dos espectadores do julgamento quando ele termina. As condenações sumárias praticadas pelos militares contra os “subversivos” constituem, elas sim, uma “subversão jurídica”, argumentou, em sentido contrário, Strassera.
Na vida real, sua equipe amargou a absolvição de quatro dos comandantes militares julgados, mas conseguiu a condenação de outros cinco, alguns deles à prisão perpétua. Jorge Videla morreu na prisão em 2013, aos 87 anos.
Luis Moreno Ocampo, que mais tarde se tornaria o primeiro procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional de Haia, responde à pergunta de uma jovem espectadora sobre como se sente em relação à participação em um histórico inédito que concedeu condição de vanguarda à Argentina no enfrentamento às ditaduras e golpes de Estado: “é um privilégio”.