Milhares de argentinos seguem para as ruas hoje (25/5) para celebrar o Bicentenário de Independência da República Argentina. As grandes cidades se cobriram de azul celeste e branco – as cores da bandeira argentina – e desde o dia 21 de maio, uma maratona de atividades agita a capital, Buenos Aires. E em meio aos festejos, os argentinos também refletem sobre a longa recuperação pela qual passa o país. Nove anos depois da pior crise política e econômica, a Argentina tenta se reerguer.
Hoje, a presidente Cristina Kirchner disse que o governo está realizando um grande esforço para colocar a Argentina “em um lugar sólido, consolidado, reinserida no mundo. A realidade mostra que o caminho escolhido está dando resultados”. Ao abrir na sexta-feira (21/5) a inauguração oficial de todos os pavilhões na “avenida do Bicentenário”, na Nove de Julho, representando as 24 províncias do país, ela afirmou, às lágrimas: “Deus queria que eu fosse a presidente do bicentenário.”
Efe (24/05/2010)
Público celebra desfile na “avenida do Bicentenário”, inaugurada na avenida Nove de Julho, centro de Buenos Aires
Cristina assumiu em 2007, seis anos após a Argentina decretar a moratória de uma dívida externa calculada em 95 bilhões de dólares. E há exatamente um mês, o ministro da Economia, Amado Boudou, anunciou que o país estava pronto para continuar com o pagamento de sua dívida e tinha um plano para isso: há 15 dias o ministro iniciou uma série de viagens pelo mundo em busca de acordos com os credores. Até abril deste ano, o país ainda devia 20 bilhões de dólares em bônus emitidos no chamado “ano da vergonha”, 2001.
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A tarefa não vem sendo fácil, mas desde a eleição em 2003 de Néstor Kirchner – marido de Cristina e até então o desconhecido governador de Santa Cruz, na Patagônia – com menos de 25% dos votos, o político conseguiu ressuscitar a esperança de um futuro melhor para os argentinos. É verdade que seu governo aproveitou a recuperação da economia mundial, especialmente do Brasil, e da China, grande importador de matérias-primas. Mas o forte crescimento a partir de 2003 foi também consequência de sua política econômica, cujo objetivo declarado era estimular a produção local e o emprego.
A decisão de manter o câmbio desvalorizado aumentou a competitividade do país, cuja mão-de-obra já era considerada uma das melhores da América Latina. Os investidores voltaram a descobrir o potencial da agricultura argentina, com a carne, o vinho e, sobretudo, a soja. Enquanto as exportações aumentaram, o mercado doméstico recuperou-se, graças a uma política de apoio à demanda – por meio da distribuição de subsídios sociais, investimentos públicos e a consolidação dos sindicatos. Entre 2003 e 2008, o PIB da Argentina vem apresentando um crescimento médio anual superior a 8%.
Efe (21/05/2010)
Cristina, durante a abertura das comemorações: “Deus queria que eu fosse a presidente do bicentenário”
Com Néstor Kirchner, o governo anunciou claramente que o seu modelo era o de um capitalismo com forte intervenção do Estado e inclusão social. Paralelamente, o presidente impôs com sucesso uma renegociação da dívida pública – mais de 100 bilhões de dólares no final de 2001 – conseguindo uma redução de 75%. Logo depois, ordenou o reembolso do dinheiro emprestado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), considerado um dos responsáveis pelo colapso argentino.
Direitos humanos
A política de direitos humanos foi mais uma ruptura significativa. No dia da posse, em 25 de maio de 2003, Kirchner trocou o comando do estado-maior das forças armadas com o objetivo de se livrar dos oficiais da ditadura (1976-1983). Nos meses seguintes, propôs ao congresso, também com sucesso, a abolição das leis de anistia (lei de “obediência devida” e lei do “ponto final”), causando assim a reabertura de dezenas de ações judiciais contra os responsáveis pelas mortes e pelos desaparecimentos de 30 mil pessoas na ditadura.
Nenhum símbolo foi poupado: em 24 de março de 2004, data do 28º aniversário do golpe militar, o presidente selou um acordo com a prefeitura de Buenos Aires, determinando que os militares desocupassem a ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada), o principal centro de tortura na ditadura. No total, mais de 17 mil metros quadrados passaram a ser administrados por uma entidade tríplice, constituída pelo governo federal, a prefeitura da capital, e as associações de direitos humanos – entre as quais as Mães da Praça de Maio – e transformados um em museu.
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A reforma do Supremo Tribunal Federal foi também uma tentativa de respeitar mais os direitos dos cidadãos, após anos de violações. A instituição, até então considerada como corrupta e ligada ao poder, é hoje um órgão independente, formado por magistrados competentes.
Patriotismo
E em meio ao clima frio da Buenos Aires no outono, pintada de branco e azul celeste, os argentinos se dividem entre os festejos da data nacional e também com os méritos da seleção argentina de futebol, liderada por Diego Armando Maradona. “El Pibe”, como é carinhosamente chamado pelo compatriotas, tentará levar para a Argentina o terceiro título da Copa do Mundo.
Na verdade, as chances da seleção argentina são o único assunto sobre o qual os cidadãos parecem concordar. “Olha, mesmo nestes dias de festa, não dá para esperar uma união entre os políticos. A presidente acabou de discutir com o prefeito de Buenos Aires”, lamenta o portenho Damián Rodríguez, depois de um passeio por barracas típicas nos estandes na Nove de Julho. De fato, poucas horas antes, Cristina havia anunciado que iria boicotar a festa de reabertura do Teatro Colón, o principal do país Isso porque o prefeito da capital, o oposicionista Mauricio Macri, teria se referido com desprezo ao ex-presidente Néstor Kirchner.
Efe (24/02/2010)
As esperanças estão depositadas no desempenho da seleção argentina na Copa. Ontem (24/05) o
time ganhou de 5 a 0 do Canadá em amistoso
“Não é fácil escolher os convidados para esse aniversário gigante: como colocar na mesma mesa unitários e federalistas, peronistas e radicais, torcedores do Boca Juniors e do River Plate?”, questiona o jornalista Rudy, responsável pelo suplemento humorístico do jornal Página 12.
O patriotismo não consegue esconder as profundas divisões. É menos com euforia e mais com perplexidade que os 40 milhões de argentinos comemoram os 200 anos do início do processo de independência.
Igualdade social
De fato, a Argentina foi, durante grande parte do século XX, o país mais igualitário da América Latina, especialmente a partir do primeiro governo de Juan Domingo Perón (1945-1955). Os sistemas públicos de educação e de saúde eram de alta qualidade. O desenvolvimento intelectual e científico não deixava nada a invejar das nações do “primeiro mundo”.
Em 1910, o porto de Buenos Aires recebia diariamente navios lotados de imigrantes europeus, que vinham tentar a sorte no autodenominado “celeiro do mundo”. Já em 2010, seus descendentes esperam durante horas nas portas dos consulados italianos e espanhóis para obter um passaporte europeu e sair do país. “Há que reconhecer que o nosso presente é muito preocupante. Após décadas de progresso, estamos perdendo tudo o que foi adquirido”, avalia Carlos Gabetta, editor da versão argentina da revista Le Monde Diplomatique.
Quase 20% dos argentinos vivem na indigência, ou seja, com menos de um dólar por dia. Três milhões de famílias sobrevivem apenas por meio do programa de renda mínima “chefe de família”, enquanto a qualidade dos serviços públicos desmoronou.
Lamia Oualalou/Opera Mundi
Buenos Aires se vestiu de azul a branco para celebrar o bicentenário da nação
Retrocesso
Foi a ditadura instaurada em 1976 que acabou com o processo de distribuição igualitária da renda, optando por uma financeirização da economia, contra as atividades produtivas. “Mas a restauração da democracia, há mais de 25 anos, não mudou nada; a situação social piorou”, pondera Gabetta.
Foi o peronista Carlos Menem quem orquestrou as privatizações obscuras das principais empresas públicas, abandonando os recursos naturais do país, como o petróleo, nas mãos de multinacionais estrangeiras. Foi também durante a década de 1990 que o sistema previdenciário foi privatizado, e que reformas na legislação trabalhista aumentaram o número de trabalhadores precários.
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Em 1974, 18,8% da população ativa argentina trabalhava sem carteira assinada. Em 2002, após a pior crise econômica da história do país, eram 39,6%. Uma deterioração semelhante ocorreu em relação à distribuição de renda. Em 1974, em Buenos Aires, os 20% mais pobres concentravam 6,1% da renda, enquanto os 10% mais ricos tinham 26,9%. Trinta anos depois, a fatia dos 20% mais pobres caiu para 3,2%, enquanto os 10% mais ricos captavam 42% da renda.
A cientista social Susana Torrado, da Universidade de Buenos Aires, resume a evolução do século XX com uma fórmula: “Foi o peronismo que começou a desenvolver o Estado de bem-estar social durante os anos 1940. Foi também o peronismo que realizou seu desmantelamento nos anos 1990”. E, para confundir ainda mais os historiadores, foi novamente o peronismo que, na década de 2000, tentou reverter a tendência, fazendo das classes populares o centro da agenda política. Dessa vez, o papel foi assumido pelo presidente Eduardo Duhalde (2002-2003), após a crise econômica de 2001 e, sobretudo, pelo casal Kirchner.
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