A Assembleia Constituinte do Chile completou nesta segunda-feira (04/10) três meses de trabalho. Desde sua instalação, já se sabia que a missão de criar uma nova Carta Magna que permita o país andino superar a imposta por Augusto Pinochet em 1980 enfrentaria muitos desafios, mas se esperava contar com pelo menos uma certeza: um forte apoio popular, especialmente dos setores sociais que participaram da revolta popular de 2019. No entanto, o processo vem sofrendo ataques de diversos setores, inclusive nas redes sociais.
Em reportagem recente, o meio investigativo digital Ciper Chile abordou a forte campanha digital contra a constituinte e mostrou como as redes sociais se tornaram palco de ataques sistemáticos contra a Assembleia, especialmente o Twitter.
O estudo que baseou a reportagem analisou as principais tendências entre os usuários chilenos durante dez semanas (de 1º de julho a 8 de setembro de 2021) e verificou a existência de contas que atuaram de forma organizada durante esse período para promover hashtags negativas sobre a Assembleia Constituinte de uma forma geral, ou contra partidos e pessoas específicas ligadas a ela – a maioria desses alvos são partidos, movimentos e pessoas de esquerda, ou da bancada dos povos originários.
Segundo o estudo, existe um grupo organizado que utiliza cerca de 50 mil contas diferentes, muitas delas consideradas “bots”, que se dedica a reproduzir comentários que se repetem entre diferentes publicações, além de difundir hashtags críticas à Assembleia Constituinte, como “#constityentesflaites” (constituintes vagabundos), “#circoconstituyente” (circo constituinte) e “#basuraconstituinte” (lixo constituinte).
Outro termo muito estimulado por esse grupo, especialmente desde meados de agosto, é “#rechazodesalida” (rechaço de saída), que faz referência ao chamado “plebiscito de saída”, a votação popular que a nova Carta Magna deverá ser submetida depois da sua conclusão e que definirá se a população aprova ou rechaça a nova Constituição.
Também se verificou que os partidos e movimentos de esquerda são os principais alvos dos ataques, sendo o Partido Comunista mencionado em 47% das publicações – o partido de direita que mais recebeu críticas, a UDI, teve só 10%, apesar de ser contrário à constituinte e à ideia de uma nova constituição.
Nesse mesmo sentido, também chama a atenção que muitas das contas envolvidas publicam mensagens de apoio aos constituintes de direita, justamente o setor político que defendeu o “rechaço” no plebiscito de entrada. Entre os nomes mais elogiados estão os de Teresa Marinovic e Arturo Zúñiga, ambos de extrema direita.
Umas das deputadas que se tornou alvo dos ataques foi a presidente da Assembleia, Elisa Loncón, mulher indígena de origem mapuche. Perfis em redes sociais chegaram a pedir abertamente a destituição de Loncón: a hashtag #DestitucionElisaLoncon já circula há mais de dois meses e os usuários que a mantém entre as mais usadas costumam repetir críticas sobre sua suposta subserviência ao vice-presidente Jaime Bassa, ou teorias de que ela pretende criar uma nação mapuche independente do Chile – uma tergiversação a respeito de um dos projetos mais esperados da convenção, que poderia estabelecer o país como um Estado Plurinacional, similar ao que existe na Bolívia, o que significa reconhecer as etnias, culturas e idiomas dos povos originários como oficiais, mas sem dividir o território para isso.
Convención Constitucional/Reprodução
Estudo identificou a atuação de cerca de 50 mil contas bots responsáveis por difundir comentários e hashtags negativas ao processo constitui
Alguns ataques contra constituintes de esquerda também se aproveitaram de erros cometidos pelo setor, de problemas que o processo vem enfrentando e de algumas polêmicas que surgiram como, por exemplo, o fato de a Assembleia ter demorado três meses para aprovar seu regimento interno, iniciando só agora o debate sobre os temas reais que deverão ser incluídos na nova Carta Magna.
Uma pesquisa publicada em meados de setembro mostrou que a Assembleia Constituinte conta com a confiança de apenas 24% da população. Também se verificou que 49% dos entrevistados acredita que a nova Carta Magna ajudará a resolver os principais problemas do país – em dezembro de 2020, dois meses depois do plebiscito que deu origem à constituinte, o percentual favorável a essa pergunta era de 56%.
A polêmica do falso câncer
Quando a Assembleia completou dois meses da sua instalação e começou a vislumbrar a aprovação do seu regulamento interno, o constituinte Rodrigo Rojas Vade, eleito pela grupo de esquerda Lista del Pueblo, admitiu que não tinha câncer, que padecia de outra doença, mas que não se tratava de uma enfermidade terminal. .
A notícia causou grande repercussão porque Rojas Vade foi uma das figuras que ganhou mais notoriedade durante a revolta social de 2019, se colocando como porta-voz dos movimentos pelo direito à saúde, afirmando que a falta de um sistema público prejudicava pessoas que precisavam de tratamentos permanentes e caros, o que seria o caso dele, que afirmava sofrer de leucemia.
O caso ficou mais complicado quando o advogado do constituinte foi a um programa de televisão e explicou que o tratamento que ele fazia era para uma doença sexualmente transmissível em especificar qual enfermidade Rojas Vade tem.
O caso foi um dos mais aproveitados pela campanha de desprestígio contra a Assembleia Constituinte. Nos últimos quatro dias do estudo revelado pelo Ciper Chile, posteriores à publicação da entrevista, observou-se que as hashtags mais utilizadas no país eram #RenunciaPelaoVade e #PelaoChanta – o constituinte era conhecido como “Pelao Vade”, porque “pelao” é o termo com o qual os chilenos costumam se referir aos carecas, e “chanta” é uma gíria chilena que significa “farsante”.
Outra hashtag muito utilizada desde então é #ListaDelFraude, em referência à Lista del Pueblo, um novo setor que vem surgindo na política chilena desde a revolta social de outubro de 2019 que reúne coletivos, movimentos sociais e representantes de povos originários. Rodrigo Rojas Vade se candidatou como constituinte por essa lista.
A Lista del Pueblo foi a terceira coalizão mais votada nas eleições constituintes e elegeu 26 parlamentares. Após as revelações envolvendo Rojas Vade e por disputas internas visando as eleições gerais de novembro, 17 dos 26 integrantes deixaram a lista e se uniram em um novo grupo.
No dia 20 de setembro, Rodrigo Rojas Vade renunciou à Assembleia Constituinte e a mesa diretiva da entidade anunciou que trabalhará em uma fórmula legal para substituí-lo.