Depois de meses de reviravoltas, a Assembleia Nacional francesa rejeitou nesta segunda-feira (11/12) um controverso projeto de lei sobre a imigração, defendido pelo ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, e apoiado pelo presidente Emmanuel Macron.
Após a derrota, Darmanin colocou seu cargo a disposição. A rejeição foi um duro golpe para o governo, depois de mais de um ano de negociações.
A moção de rejeição do projeto de lei, apresentada pelo grupo ambientalista, foi aprovada por 270 votos contra 265, da esquerda, da direita e da ultradireita. A rejeição implica a interrupção da análise do texto antes mesmo de a discussão da proposta ser iniciada na câmara baixa.
O projeto, segundo o governo, visava facilitar a expulsão “daqueles que se comportam mal” e a integração “daqueles que se comportam bem”.
O governo apresentará o projeto em fevereiro, como um compromisso que incluiria medidas para agradar tanto a esquerda como a direita. Contudo a tendência era de que o projeto, criticado por defensores dos direitos humanos, fosse endurecido ainda mais após um atentado em outubro cometido contra um professor de liceu por um antigo aluno de origem russa na cidade de Arras. O ataque reacendeu temores entre a população francesa de atentados cometidos por terroristas estrangeiros.
“Nós fazemos o trabalho pesado”
As milhares de pessoas que protestaram contra a nova lei nas proximidades da estação de Montparnasse, no sul de Paris, alguns dias atrás, gritavam slogans como “não somos perigosos”. O grupo era formado majoritariamente por trabalhadores imigrantes sem documentos, a maioria do Mali, na África Ocidental.
À frente deles, com um megafone na mão, estava o malinês Ahmada Siby, de 33 anos. Ele chegou à França quase cinco anos atrás. Usando uma brecha na legislação, ele vem utilizando os documentos de outras pessoas para trabalhar em serviços de limpeza, como camareiro ou, mais recentemente, lavando pratos em restaurantes.
“Muitos de nós, imigrantes sem documentos, estão se valendo dessa opção, mas isso significa que nós pagamos impostos e taxas de previdência social sem nos beneficiarmos dos serviços, como saúde, ao contrário dos cidadãos franceses”, disse à DW.
“O governo do presidente Emmanuel Macron nos trata como se não valêssemos nada, apesar de estarmos fazendo todo o trabalho pesado – em obras, incluindo as dos próximos Jogos Olímpicos, em restaurantes e nos serviços de limpeza”, acrescentou.
Direita tornou proposta mais dura
A versão final do projeto ainda não estava pronta. O Senado, que tem uma maioria conservadora, recentemente endureceu a proposta. E esperava-se que o governo mantivesse algumas dessas mudanças para conseguir aprovar a lei na Assembleia Nacional.
O partido de Macron e aliados não têm maioria absoluta na câmara baixa do Parlamento e precisavam do apoio dos conservadores do partido Les Républicains para aprovar o projeto de lei, o que não aconteceu.
Entre os pontos mais polêmicos, a lei pretendia acelerar os procedimentos de refúgio e encurtar os prazos de recurso, dificultar o reagrupamento familiar e tornar mais rigorosas as condições para vistos de tratamento médico na França.
Também seria possível deportar pessoas que tivessem menos de 13 anos ao chegarem à França, ou pais estrangeiros cujos filhos tivessem nacionalidade francesa.
O principal aceno à esquerda incluído no projeto original poderia ser diluído. Pelo projeto original, trabalhadores em setores com escassez de pessoal deveriam obter uma autorização de trabalho automática de um ano, mas a versão atual dava mais poder às autoridades locais, que poderão aplicar seus próprios critérios para decidir quem recebe a permissão.
Nova dimensão de dureza com os imigrantes
A redação do projeto de lei foi criticada pela ativista Lisa Faron, da ONG parisiense Cimade, de apoio a refugiados e imigrantes. “O governo prometeu um projeto de lei equilibrado e, no entanto, as novas regras vão quase exclusivamente restringir direitos dos imigrantes e tornar mais complicada a legalização da situação deles, o que resultará em ainda mais imigrantes sem documentos”, disse ela à DW, antes de o projeto ser rejeitado.
Ela afirmou que, com a nova lei, a França estaria alcançando uma nova dimensão de dureza no tratamento de imigrantes, por exemplo ao facilitar a expulsão de pais estrangeiros de crianças francesas, o que hoje só é possível se eles tiverem cometido crimes graves.
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Partido de Macron e aliados não têm maioria absoluta no Parlamento e precisam do apoio dos conservadores
Para o professor de sociologia política Vincent Tiberj, da Universidade Sciences Po Bordeaux, o projeto de lei reflete uma guinada à direita no debate político. “Muitos políticos franceses estão descrevendo os imigrantes como uma carga e uma ameaça – eles esquecem totalmente que muitos imigrantes, também das gerações mais recentes, contribuíram muito para a nossa sociedade”, afirma.
Ele avalia que os políticos estão de olho nos votos do eleitorado mais à direita. Pesquisas mostram que o partido de ultradireita Rassemblement National, liderado por Marine Le Pen, deverá chegar à frente nas eleições europeias, marcadas para junho de 2024.
“Partidos como o Renaissance [de Macron] deveriam saber que essa estratégia não funciona – ela apenas legitima as ideias da extrema direita e lhes dá impulso”, sublinha.
“Essas leis são inúteis”
Mas o parlamentar do departemento Essonne Alexis Izard, do partido Renaissance, afirmou que a lei a ser aprovada seria equilibrada. “Deveríamos ser capazes de expulsar da França cerca de 4 mil imigrantes ilegais que cometem crimes todos os anos – e isso passará a ser possível. Os procedimentos de expulsão levarão apenas um ano em vez de dois”, disse ele à DW.
“Ao mesmo tempo, será mais fácil para quem quiser trabalhar vir para França”, argumentou. Dessa forma a lei será altamente eficaz, disse.
O historiador e demógrafo Hervé le Bras, da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais de Paris, questiona essa argumentação. Segundo ele, os dados históricos mostram claramente que não há relação entre leis e os números da imigração.
“Assim como as outras mais de cem leis de imigração que a França já aprovou desde 1945, também esta será inútil e não terá praticamente nenhum impacto no número anual de imigrantes”, afirmou. “Trata-se apenas de dar palanque para políticos – da extrema direita à extrema esquerda – expressarem suas posições.”
“Se você olhar para os números da imigração em governos anteriores, verá que eles não estão relacionados com medidas políticas”, assegurou.
“Não podemos viver sem estrangeiros”
O empresário Alain Fontaine, proprietário do restaurante parisiense Le Mesturet e presidente da Associação Francesa de Proprietários de Restaurantes (AFMR), ainda esperava que a autorização de trabalho automática de um ano fosse aprovada.
“Um quarto dos funcionários de pubs e restaurantes da França são estrangeiros – não podemos viver sem eles”, afirmou. No restaurante dele, 12 dos 27 funcionários são estrangeiros. “Precisamos da imigração – também porque os nossos jovens preferem trabalhar na economia digital ou na proteção ambiental e não querem os trabalhos pesados”, acrescentou.
Mas o malinês Ahmada Siby não acha que a autorização de residência e trabalho de um ano – se fosse mesmo aprovada – fosse uma boa ideia.
“Isso consagraria o princípio da escravatura moderna na lei. Você teria que trabalhar num determinado setor ou perderia o direito de ficar. Você ficaria à mercê de seu chefe”, argumentou ele, sentado na sua cama num quarto de 15 metros quadrados no subúrbio de Montreuil, no leste de Paris, que ele divide com um tio e um primo.
“Queremos que o governo legalize a todos nós para que possamos escolher nosso próprio trabalho”, disse. Ele então olhou para as fotos dele mesmo na parede. Elas o mostram cinco anos atrás, depois de atravessar o Mediterrâneo num bote inflável, vindo do Marrocos, e chegar à Espanha.
Ele disse que a travessia, que durou quase um dia, foi o momento mais difícil da sua vida e que quase morreu, junto com os outros imigrantes. “Éramos 64 pessoas naquele bote, incluindo 14 mulheres e crianças de 3 e 5 anos, e todos pensamos que era isso, que nunca mais veríamos as nossas famílias”, lembrou.
“Depois que você sobreviveu a isso, você não simplesmente desiste – estou determinado a lutar por um futuro melhor”, afirmou.