Leia outras partes da reportagem:
1 – Massacre de Curuguaty faz sete meses com irregularidades em processo judicial
3 – Investigação sobre massacre de Curuguaty apresenta série de furos
A Pública viajou até a região de Curuguaty para tentar entender o que se passou em 15 de junho. Ouviu diversas testemunhas – de um chefe policial a camponeses foragidos – e encontrou, em pouco mais de dois meses de investigação, um dos invólucros – que a Fiscalía afirma não existirem – de uma bala 5,56 usada em fuzis M16, que estava no local do conflito.
Para chegar até a humilde casa de uma família que tem três filhos entre os acusados da matança, é preciso comer terra. São quarenta minutos de estrada asfaltada e uma de chão batido em um pequeno ônibus que faz a rota local, e depois mais quarenta minutos de moto – o único transporte acessível aos moradores da pequena comunidade que conquistou o sonho da terra ao ocupar, no final da ditadura de Stroessner, terrenos que o Estado ditatorial havia doado a fazendeiros – as “terras mal havidas”.
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Policiais da GEO no momento do confronto. Um deles segura um fuzil automático
A dona do casebre de madeira, um enfermeira, levava comida até o acampamento conhecido como Marina Cué, onde dois dos seus filhos estava. Quando soube que haveria uma desocupação, apoiou o filho, “Pedro” (nome fictício), que decidiu ficar. A filha, uma moça bonita de 26 anos com nariz grosso e dentes separados, ficou só 15 dias na propriedade, e saiu. Ficou sabendo do massacre pelo rádio. Mesmo assim, por ter tido seu nome na lista encontrada pela polícia, está acusada de assassinato.
“Pedro”, que estava pouco afastado do local onde começou o tiroteio, lembra de ter escutado o primeiro disparo. “Ouvimos um barulho, demos uma volta e olhamos para o outro lado. Aí saímos correndo pelo pasto, nos escondemos na baixada ao lado de um riozinho”. Junto com outros sem-terra, ele então correu para um monte onde ficou até 5h da manhã do dia seguinte, quando retornou para casa e se tornou foragido da justiça.
A família não sabe, mas nos dias anteriores à desocupação travou-se uma pequena batalha dentro da Polícia Nacional, que acabaria selando seu destino. Segundo um chefe policial que participou da operação – cujo nome não será identificado a seu pedido – a polícia sabia que entre os camponeses havia escopetas. “Eu disse isso inclusive ao comandante (da Policia – Paulino Rojas), que se levasse mais tempo [para entrar ali] porque era perigoso, porque se morre um policial, a cabeça do comandante também cairia. E se morre um camponês, a mesma coisa”, explica o policial, que participou das discussões de cúpula.
“Eu lhe disse que enviasse mais gente de inteligência ao lugar para obter mais dados, para que houvesse mais informação [antes de agir]”. Segundo ele, outros chefes policiais também queriam protelar a desocupação, que ocorreu sob pressão da Fiscalía.
“Perguntei ao comandante: quem está por trás de isso? Por que querem tanto fazer isso se temos tempo para cumprir a ordem de desocupação? Podíamos ter levado um ano inclusive… Podíamos argumentar que a polícia não estava em condições de operar, podíamos dizer muitas coisas”. O seu relato é corroborado pelo depoimento de um policial do Grupo Especial Operativo, que consta na investigação oficial, à qual a Pública teve acesso (leia aqui).
Segundo ele, Erven Lovera, comandante da GEO (Grupo Especial Operativo), também queria protelar a desocupação. “O jefe Lovera não queria fazer esse procedimento, ele tinha esse fim de semana livre e queria passar o dia dos pais com seus filhos em Assunção. Procurou todos os lados para suspender, chamava de cá para lá, mas de todos os lados havia muita pressão de que se tinha que fazer esse procedimento de qualquer maneira”. Lovera foi o primeiro policial a ser morto. Era irmão do chefe de segurança pessoal do então presidente Fernando Lugo.
Do ponto de vista do governo, porém, a atenção deveria ter sido redobrada – e não foi. Isso porque havia informações sobre a possibilidade de armar-se um conflito, um teatro, na região que chegaria a altas autoridades do governo Lugo.
Miguel Lovera, então diretor da Senave (Serviço Nacional de Qualidade e Saúde Vegetal e Sementes), conta que recebeu informações já em abril. “Eu já havia ouvido rumores semelhantes antes, mas essa informação veio completa. Certos elementos de reputação muito negativa haviam sido vistos na zona. Matadores. Gente a serviço dos donos de terra. A questão não era apenas que havia ali elementos suspeitos: o rumor já era completo. A informação era: querem produzir um derramamento de sangue para levar Lugo a um juízo político e tirá-lo do poder”.
Outras fontes no governo Lugo confirmam que, meses antes, houve situação semelhante, durante desocupação de terreno em Ñacunday, ocupado por cerca de 8 mil famílias sem-terra. Na ocasião, os camponeses foram transferidos para um terreno vizinho, sob intensa crítica da imprensa nacional. “Quando ocorreu o caso Ñacunday nós denunciamos que havia armas de guerra, grupos que se vinham infiltrando e que iam usar qualquer ação da polícia para responder. Gerou-se uma situação muito delicada que lamento não ter sido levada suficientemente a sério, porque faz tempo que gente que quer desestabilizar o governo está buscando provocar este tipo de fato”, afirmou à imprensa Miguel Lopez Perito, chefe do Gabinete de Lugo, no dia seguinte ao conflito de Curuguaty (clique aqui).
O líder camponês José Rodriguez, presidente da Liga Nacional de Carperos, confirma: “O Fiscal Geral do Estado, Javier Díaz Verón, e o próprio Presidente da República, Fernando Lugo, foram advertidos, mas não tomaram as precauções correspondentes”.
No Cado de Curuguaty, a reintegração foi realizada, embora não houvesse mandato legal para isso. A ordem, emitida pela fiscal Ninfa Aguilar, extrapolou a ordem judicial emitida pelo juiz José Benites, que era de “allanamiento”, um espécie de “averiguação” para verificar se havia pessoas armadas ou invasores. Ninfa Aguilar, que esteve durante anos à frente da Fiscalia regional, fez repetidos pedidos de reintegração de posse ao longo dos anos. Sua ligação com Don Blas é conhecida, segundo um relatório da organização Plataforma de Estudio e Investigación de Conflictos Campesinos. Ela teria atuado como advogada dele em processos de requisição de posse da terra.
O começo
Em 14 de junho de 2012 já estavam na região 324 oficiais da Polícia Nacional de quatro chefias de polícia locais, incluindo o GEO, da Fope (força de elite da polícia), a polícia montada, antimotins e um helicóptero Robinson, para cumprir a ordem de Ninfa Aguilar.
Às sete horas da manhã todo o contingente já estava a postos. Erven Lovera sobrevoou a área com o helicóptero para fazer o primeiro reconhecimento e averiguou que os camponeses tinham armas. Então a força entrou dividida em duas, cada uma por um lado do terreno ocupado.
Roberto (nome fictício), outro camponês procurado pela polícia, estava no assentamento para dar apoio a seu filho de 18 anos, que almejava um lote de terra. “Cedinho pela manhã o helicóptero já estava sobrevoando a estância. Havia um grupo com escopetas e outro com facões. Nós estávamos com facões. Quisemos falar com eles, mas não havia conversa possível”.
Do alto, o helicóptero gritava pelo megafone que saíssem do local e acionava uma sirene altíssima. “Me surpreendeu a quantidade de policiais porque havia muitas crianças e nós pensávamos que íamos só conversar”, diz Ruben Villalba, cuja esposa e o filho, então com três meses, estavam no local na hora em que começou a confusão.
“Roberto” se lembra do momento exato em que avistou a primeira fila de policiais. “Chegaram, abriram o portão e entraram. Eu não ouvi muito bem porque estava no meio, mas vi quando entraram. Teve um senhor que foi conversar com eles, pedindo para ver o título da terra. Nisso, escutei os disparos vindo o outro lado”.
O motivo da insistência dos sem-terra para ver o título da propriedade do terreno era simples: o tal título não existe. Desde 2004, o terreno é objeto de um tremendo imbróglio jurídico que tem de um lado a empresa Campos Morumbi SA, do falecido Blas Riquelme, e do outro o Indert, o Instituto de Terras paraguaio.
O terreno foi doado em 1967 para a Marinha do Paraguai pela empresa Industrial Paraguaya. Em 2004, a terra foi transferida oficialmente ao Indert. “É quando o Poder Executivo, através de um decreto, declara o terreno de interesse social, e se destina para reforma agrária”, explica Ignácio Vera, ex-diretor regional do Indert. Pouco depois a empresa Campos Morumbi entrou com um pedido de usucapião – e o pedido foi aceito na justiça local. Ao mesmo tempo, Blas Riquelme entrou com outro pedido na justiça, para transformar o terreno – totalmente desmatado e com plantações de soja – em uma reserva natural. Este pedido também foi aceito, e o terreno foi registrado como “Reserva Natural Campos Morumbi”.
“Houve uma cumplicidade de vários funcionários do Indert e da Escrivania Maior do governo para adquirir a terra de maneira irregular e depois encobrir a manobra”, diz Vera. Desde então, o Indert recorre da decisão, tendo feito reiterados pedidos para que não se expulsasse os sem-terra, pois o terreno já deveria ter sido destinado à reforma agrária – como mostra documento dirigido pelo assessor jurídico à Fiscalia em agosto de 2011 (veja aqui).
Os pedidos do Indert seguiam sendo ignorados pela justiça local, e a pretensa propriedade de Riquelme era evocada em todas as ordens de desocupação, como mostram documentos revisados pela Pública (veja aqui, aqui e aqui).
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No dia 4 de janeiro de 2012, a comissão permanente da Câmara dos Deputados, em sessão ordinária, emitiu uma decisão instando o Ministro do Interior do governo Lugo, Carlos Filizzola, a cumprir a demanda da mesma fiscal Ninfa Aguilar, que pedia a descoupação do terreno de dois mil hectares que, segundo ela, pertencia à empresa Campos Morumbi.
A decisão – clique aqui para ler – foi resultado de um pedido feito pelo deputado colorado Oscar Tuma para que o Congresso desse uma forcinha. O motivo alegado para uma intervenção – engatilhada pelo próprio Congresso Nacional – seria a preservação do meio ambiente. “Quero ressaltar que essa massa de bosque é valiosa para a República do Paraguai, porque na zona se geram 60% dos mananciais do Rio Acaray”, escreveu Tuma, no requerimento (clique aqui e aqui para ler).
Seis meses depois, o mesmo Tuma foi o principal advogado da acusação a Lugo realizada pelo Congresso. “Um juízo político geralmente se faz quando há mortes”, declarou ele na televisão na véspera do impeachment. “Nós podemos aguentar muita coisa, viemos aguentando muitas coisas que estão entre as causas da acusação, que se deram anos atrás. Mas quando existem mortes…”.
O Estado, cativo
Na região de Canindeyú, o então diretor do Indert Ignácio Vera era próximo dos movimentos camponeses – próximo demais, na visão da polícia e de fazendeiros da região. Tanto que, no dia 15 de junho, em que ocorreu o confronto, teve que sair fugido do local, sob ameaça de morte. O relato oficial que Vera enviou ao seu superior no Indert – veja aqui o documento – revela a fragilidade do Estado paraguaio, que pouca autoridade mantém na região fronteiriça.
“Fui fazer a verificação no lugar mencionado, chegando aproximadamente às 11h. Em um controle policial sobre a estrada de asfalto perguntei a direção exata para chegar ao lugar dos fatos juntamente com um veículo do Ministério da Saúde”, escreve Ignacio Vera. “Ao sair em um caminho transversal tomamos um atalho que não era correto e neste ínterim recebi uma chamada pelo telefone para que saísse da zona porque os policiais estavam planejando me matar, especificamente a GEO. Fomos ao acampamento deles e comentamos com uma policial mulher a gravidade do caso, que se tinha que evitar o enfrentamento entre paraguaios; ao sair da propriedade, onde havia várias pessoas e policiais, apontaram-me as escopetas e disseram-me que saísse dali porque era por minha culpa que estava acontecendo este enfrentamento”.
Vera relembra que saiu correndo do local, com o consentimento de seus superiores no governo federal. Teve que deixar a caminhonete do Indert na sua casa e contar com a ajuda do seu irmão, que o levou, junto com a família, ao município de Caaguazú.
“Estava muito preocupado com a situação porque compreendi que era um problema de perseguição política, e que podia haver violência em qualquer parte”, disse em entrevista à Pública. Vera ficou alguns dias escondido até poder voltar à região. Um mês depois, já sob o novo governo, do liberal Federico Franco, foi afastado da direção do Indert.
Miguel Lovera, diretor da Senave, também visitou a região no mesmo dia – e também teve que ir embora rapidamente. “Me comuniquei com os outros ministros, e consultei se devia ir pra Curuguaty. Como não tive respostas, fui para lá e me reuni com dirigentes camponeses. Eles estavam com muito medo, acreditavam que a matança ia continuar. Temiam muito por minha integridade física. Pediam para que não saísse às ruas”.
Pouco depois, a Ministra de Saúde Esperanza Martines, considerada forte no governo Lugo, chegou a Curuguaty para prestar assistência às vítimas. O cenário que encontrou, segundo contou em entrevista à Pública, era desolador. “Quando cheguei, a polícia estava rodeando o hospital porque havia uma ameaça de que os camponeses iam invadir para levar os corpos dos seus parentes. Os jornalistas andavam livremente nos corredores”, lembra ela. “Os cadáveres dos camponeses estavam todos jogados, ao lado da entrada, e os dos policiais estavam em um quarto nos fundos, resguardados. Depois me inteirei que a polícia somente transportou, nos aviões que chegaram de tardezinha, os policiais feridos e mortos até Assunção, onde se faria a autópsia”.
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A propriedade onde ocorreu a matança registrada como Reserva Natural Campos Morumbi
Esperanza lembra do pânico de um funcionário do seu ministério. “Um profissional de saúde me ligou, ‘vai escurecer, ficaram para trás todos os cadáveres dos camponeses e eu tenho medo que sejam levados embora’”, lembra. “Aí eu liguei para o Procurador Geral do Estado e lhe disse que me parecia muito suspeito que somente se levassem os cadáveres dos policiais e não dos camponeses. Como se vai investigar? Disse que eu ia fazer uma denúncia internacional”. Ao final, os cadáveres dos camponeses foram levados nas ambulâncias do Ministério para poderem passar pela autópsia no dia seguinte. Porém, até meados de novembro, os resultados não eram conhecidos.
Naquele mesmo dia, Esperanza teve que voltar correndo a Assunção – “já se estava falando do juízo político no Congresso”, diz – mas tentou, ainda, ajudar alguns moradores com quem teve uma rápida reunião. “Falamos com camponeses, e eles diziam que muita gente estava sendo presa simplesmente por perguntar sobre os feridos”. Não conseguiu fazer nada nos dias seguintes, engajada nas negociações políticas para evitar a destituição de Lugo. Esperanza foi, junto com o chefe de gabinete Lopes Perito, a única ministra a ser mencionada nominalmente no libelo acusatório apresentado pelo Congresso para destituir Lugo. Os deputados afirmaram que os ministros agiram de forma “absolutamente equivocada” em Curuguaty, ao “tratar de maneira igual policiais covardemente assassinados e aqueles que foram protagonistas destes crimes” – ou seja, os camponeses.
Ainda em Curuguaty, na tarde do dia 15, o jovem Miguel Ángel Correa, de 20 anos, técnico do ministério de Agricultura, foi preso ao chegar ao hospital municipal, onde buscava saber sobre o parente de um amigo seu, ferido durante o conflito.
Segundo denúncia da Anistia Internacional, Miguel Ángel não foi só preso, mas torturado pela polícia: na Cadeia Coronel Oviedo, apanhou e foi ameaçado de morte.
Embora não tenha colocado os pés no local onde ocorreu o crime, seu nome consta no duvidoso relato policial como tendo sido detido por ter relação com a ocupação (clique aqui, aqui e aqui para ver). Por conta disso, os primeiros pedidos do seu advogado para que fosse solto – por não ter absolutamente nada a ver com o fato – foram negados pelo juiz. Ele só foi solto um mês depois.
Leia a parte 2 do especial Paraguai:
As últimas horas do governo Fernando Lugo, vistas pelo palácio e pelas ruas
Em menos de um ano, governo de Franco paralisa reformas iniciadas por Lugo
Outros camponeses presos pela polícia tiveram sorte pior, como Felipe Neri Urbina, detido quando tentou acudir um sem-terra que havia sido baleado no tórax e que tentava escapar pela estrada Rota 10. Ou Lúcia Aguero Romero, empregada doméstica que passava alguns dias com seu irmão em um casebre de madeira no terreno ocupado, cuidando do trabalho doméstico. Os dois permanecem presos. “Por volta das 8h, vi que vinham muitos policiais ao longe e saí de casa por curiosidade; encontrei um senhor com seu filhinho cujo nome não lembro que perguntou se eu podia cuidar da criança para ele ir escutar o que os policiais diziam, deixando comigo o menino”, contou ela em depoimento que consta da investigação da Fiscalía. “Em meia hora escutei vários disparos, jogando o menino no matagal (…) quando quis me aproximar me feriram na coxa esquerda e quando me atirei em cima do menino para protegê-lo a polícia chegou e me agarrou” (clique aqui, aqui e aqui para ler).
Lúcia, junto com outros camponeses, permaneceu em greve de fome por quase 60 dias, em protesto contra a prisão preventiva sem provas nem julgamento, que se prolongou por cinco meses. O estado de saúde dos grevistas é débil – alguns perderam mais de 20 quilos – e, na última semana, eles foram transferidos para um hospital para receber tratamento forçado. Pouco depois, foram autorizados a cumprir sua prisão em domicílio. A situação dos presos gerou protestos na capital Assunção, em que dezenas de manifestantes acamparam diante da Fiscalía Geral. Às quatro da madrugada do dia 22 de novembro, os manifestantes foram acordados com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, e expulsos do local. Em nota, a polícia afirmou que a ação se realizou porque “uma via pública não pode ser bloqueada”.