Em seu novo livro, Borboletas e Lobisomens – Vidas, Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia (Francisco Alves, 660 páginas), lançado na última terça-feira (17/07), o jornalista Hugo Studart apresentou o relato de um militar, identificado apenas como “Robson”, que conta sobre um suposto envolvimento amoroso entre ele e a guerrilheira Áurea Eliza Pereira. O militar teria sido destacado para executar Áurea, mas, segundo Studart, se apaixonou por ela. O relato conta, de forma romântica, a história dos minutos anteriores à execução da combatente.
Para Criméia Alice Schmidt de Almeida, que também fez parte da guerrilha e hoje atua na Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, trata-se, na verdade, de um relato de estupro.
“Uma prisioneira condenada à morte não vai se apaixonar e beijar o seu assassino. Eu leio aquilo como estupro”, afirmou Criméia em entrevista a Opera Mundi (assista na íntegra abaixo). Segundo ela, Studart “não pode enaltecer os militares, então ele difama os opositores, porque aquilo ali nem história da Carochinha é. Não dá pra acreditar naquilo”.
Crimeia, então militante do PCdoB, entrou para a clandestinidade após o AI-5. A ex-combatente era responsável pela comunicação entre os guerrilheiros e o partido, em 1972, quando foi presa por ação da Operação Bandeirantes (Oban), enquanto estava em São Paulo. Grávida, foi levada ao DOI-Codi, onde passou por sessões de tortura. Depois foi levada a Brasília, onde permaneceu sendo torturada até dar à luz a João Carlos Grabois, o Joca, no Hospital Militar de Brasília.
No livro de Studart, o militar “Robson” diz que se apaixonou por Áurea Eliza e afirma “querer acreditar” que ela também se apaixonou por ele. “Quando um homem sabe que é sua última refeição, ou o último beijo, ele fica comovido e aproveita. Mas quando é o último beijo de uma mulher, ela se entrega inteira. Nunca conheci uma mulher com tanto amor quanto a Áurea”, afirma “Robson” em uma passagem do livro.
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Segundo Criméia, relatos como este servem para tentar “ humanizar a tortura, porque os militares agiram como monstros. Um militar que tem a incumbência de matar alguém não está na condição de pensar em fazer amor. E a pessoa que está condenada à morte, menos ainda”. A ex-guerrilheira também lembra que casos de estupro eram comuns.
A Guerrilha do Araguaia foi organizada pelo PCdoB na região do rio Araguaia, atuando na região de 1967 a 1974. Foi o mais longo movimento armado contra a ditadura militar e um dos mais duramente reprimidos pelas Forças Armadas.
Inconsistências
Criméia também comentou outras inconsistências presentes no livro de Studart. O autor relata uma suposta operação liderada pelo major Ronaldo Lira, do Centro de Informações do Exército (CIE). Batizada de “Operação Mortos Vivos” e classificada como “secreta”, a ação teria poupado guerrilheiros “arrependidos”. Os combatentes teriam recebido novas identidades e, embora dados como mortos, estariam na verdade vivos.
Criméia de Almeida: ‘cena de amor’ de soldado e guerrilheira é, na verdade, estupro (Foto: Reprodução)
Segundo Studart, a família do guerrilheiro Tobias Pereira Junior estaria tão convencida de que ele está vivo que nunca entrou com pedido de indenização contra o Estado. Mas para Criméia, “dizer que os mortos estão vivos é um absurdo”.
“No caso do Tobias – que ele diz que é um dos vivos e por isso a mãe dele não requereu à Comissão – isso é falso. Está aqui nos documentos da Comissão Especial da Verdade o requerimento da mãe, com a documentação. Inclusive ela pede a localização dos restos mortais e o esclarecimento sobre as condições da sua prisão e morte” afirmou Criméia, com o documento em mãos.
Studart também conta sobre um suposto relacionamento amoroso entre a própria Criméia e o sargento Joaquim Arthur Lopes Souza, o “Ivan”. Segundo o autor, o militar teria se infiltrado na guerrilha.
“Eu jamais me relacionaria, acho que nem por engano, com um torturador”, rebateu a ex-combatente. Segundo ela, não houve ninguém, com exceção de João Carlos Wisnesky, “que tenha entrado depois de ter começado a guerrilha. E não teve infiltração”.
“É muito chato um escritorzinho, que não sei que tipo de pesquisa ele faz, que não tem comprovação de nada e fica difamando as pessoas. Isso é muito ruim. Ele quer fazer uma defesa dos militares de uma coisa que é indefensável”, afirma.