Alguma coisa mudou no Fórum Social Mundial. O evento que no início se recusava a receber chefes de Estado foi tomado por cinco presidentes sul-americanos na edição atual, realizada em Belém: Luiz Inácio Lula da Silva, Evo Morales (Bolívia), Fernando Lugo (Paraguai), Hugo Chávez (Venezuela) e Rafael Correa (Equador).
Eles se encontraram ontem (29) num evento, diante de uma platéia de mais de 8 mil pessoas. Lula foi o primeiro a enfatizar essa mudança: “Dez anos atrás, era impossível imaginar que um presidente fosse para o Fórum. Ele ia ser vaiado por vocês. Hoje é diferente. Nenhum de nós foi escolhido pelas elites. Somos os representantes dos movimentos sociais, sindicatos e grupos indígenas”, acrescentou, antes de lembrar a origem de cada presidente.
O economista esquerdista Rafael Correa conquistou o Equador, país que costumava ter banqueiros no Ministério da Fazenda. O ex-bispo Fernando Lugo, adepto da Teologia da Libertação, pôs fim a 70 anos de poder dos conservadores marcados pela ditadura mais longa da América Latina. O ex-tenente Hugo Chávez, que tentou chegar ao poder em 1992 através das armas, foi eleito em 1998 para lançar sua “revolução bolivariana” na Venezuela. O aimará Evo Morales, “com cara de índio e jeito de índio”, como disse Lula, entrou na história quando ganhou a presidência da Bolívia, em 2005. E, claro, o ex-torneiro mecânico que, depois de três tentativas, chegou ao Palácio do Planalto.
No palco, os cinco chefes de Estado competiram nos ataques contra o modelo econômico neoliberal. Ostentando cocares multicoloridos, arcos e flechas, com os corpos pintados, dezenas de indígenas de toda a América Latina saudavam cada declaração com longas sons emitidos por instrumentos tradicionais. O resto da platéia aplaudia.
Todos eles decidiram boicotar o Fórum Econômico Mundial de Davos (Suíça). Em 2003, um mês depois da sua posse, Lula cedeu às pressões e foi ao encontro dos poderosos assegurar que não adotaria uma política econômica heterodoxa. Seis anos mais tarde, o tom mudou.
“Cansei de ir para Nova York, cansei de ir para Londres, cansei de encontrar jovens banqueiros que explicam o que a gente tem que fazer no governo. Eles nunca meteram um pé no Brasil nem sabem onde fica a América Latina”, desabafou o presidente.
Lula criticou instituições financeiras internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, que costumavam exigir dos países em desenvolvimento a redução de gastos na área social, agravando ainda mais as desigualdades.
“Parecia que eles eram infalíveis e nós, incompetentes. Mas a crise não nasceu por causa do socialismo bolivariano do Hugo Chávez nem nasceu por causa da Constituição de Evo Morales. A crise nasceu porque durante os anos 80 e 90, eles defenderam a lógica de que o Estado não podia nada e que o ‘deus mercado’ ia desenvolver o país e fazer justiça social. Esse ‘deus mercado’ quebrou por falta de controle”, acrescentou o presidente brasileiro, cobrando das potências tradicionais uma reforma urgente do sistema financeiro mundial.
Para Rafael Correa, é necessário o “socialismo do século 21”, termo cunhado por Hugo Chávez, mas desde que se diferencie do socialismo tradicional, para ele “pouco eficiente”. “[O socialismo] era mais justo que o capitalismo, mas com a mesma idéia de consumo de massa. A gente tem que pensar uma economia menos consumista, menos agressiva com o meio-ambiente e a natureza, em acordo com os princípios da mãe-terra Pachamama”, afirmou, em referência direta ao legado indígena.
Lula exaltou as semelhanças entre os cinco chefes de Estado em suas trajetórias políticas até chegarem à Presidência e o projeto comum de integração do continente, diante uma platéia constituída, em sua maioria, por militantes do Partido dos Trabalhadores e sindicatos.
Lula fora do Woodstock bolivariano
Mas durante a tarde, o presidente brasileiro havia sido excluído de um evento promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Os quatro outros presidentes foram convidados para discutir a “integração popular” na América Latina num verdadeiro ambiente de Woodstock bolivariano. O mentor do evento foi o presidente venezuelano, que quis mostrar que, mesmo no Brasil, tem prestígio entre os movimentos sociais.
O evento começou descontraído. À espera de Chávez, Correa resolveu pegar o microfone para demonstrar seu dom de cantor. Junto com um grupo cubano, começou a entoar as letras das canções de Pablo Milanés antes de pedir para eles tocarem “hasta siempre, comandante”. Quase toda a mesa acompanhou. Mais tarde, Fernando Lugo lembrou “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, um dos hinos da resistência à ditadura no Brasil. O presidente do Paraguai trouxe à tona as disputas com Brasília em torno do preço da energia de Itaipu. “Não acredito que um tratado leonino firmado no tempo da ditadura pode nos separar. Lula não pode dizer ‘não’ a um preço justo e também à livre disponibilidade dessa energia”.
Os movimentos sociais não pouparam de críticas os presidentes. João Pedro Stedile, um dos líderes do MST, falou da decepção provocada pela reunião dos chefes de Estado da América do Sul e do Caribe em Salvador, em dezembro. “Não decidiram nada e foram à praia, quando nós aqui tínhamos a expectativa de mudança”, criticou.
As políticas sociais dos governos não são suficientes, na visão dele. “Esperamos mais de vocês, queremos mudanças estruturais, não remédios para o capital. Nas próximas cúpulas regionais, convidem os movimentos de seus países”, disse Stédile. Antes disso, Evo Morales tinha confessado seu pavor de perder o contato com os movimentos sociais: “Não quero que me convidem, mas me convoquem para seguir na luta. Por favor, não me abandonem, não me esqueçam”, pediu a uma platéia já conquistada.
Tradicionalmente reticentes à presença de políticos, os organizadores do Fórum Social Mundial quiseram decifrar um sinal positivo nesta concorrência de palestras entre chefes de Estado.
“É um marco de reconhecimento, ainda mais porque ninguém foi a Davos”, avaliou Raffaele Salinari, membro do conselho internacional do Fórum. Ele se disse surpreso diante do número de participantes nesta edição: “A gente achava que com a crise, haveria um número bem menor. Mas foi o oposto. Talvez justamente por causa da crise, as pessoas precisavam respirar um pouco de ar fresco”. O número estimado é de 120 mil representantes de 150 países.
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