Um terremoto político e social é o que se está produzindo no Chile durante estes dias. Nem estados de emergência, nem toques de recolher conseguiram aplacá-lo. O que começou como um problema de alta da tarifa do metrô de Santiago, coalhou – à mercê de um caldo de cultivo existente há tempos e a uma péssima condução política do governo – em uma “inflexão” histórica, entre o que o sistema oferece a seus cidadãos e o que requer um pacto social justo.
Os historiadores também chamam este tipo de ação de inflexão, no qual tudo converge para um turbilhão de mal-estar acumulado, frustrações, emoções, irracionalidade e fúria, que muda o sentido das coisas e o curso da vida de uma sociedade, exista ou não uma direção certa ou racional. Neste caso, tudo indica que é um processo fundamentalmente espontâneo e sem um rumo claro, nem sequer com líderes ou condutores do processo, para além de coordenações espontâneas pelas redes sociais ou de alguns grupos menores previamente organizados (tudo indica que são pouco significativos).
Depois que isso ocorre, é quase impossível que as coisas voltem a seu ponto de origem, e se requerem novos conceitos significantes e, inclusive, simbologia e linguagem política diferentes para que possa haver controle mínimo da situação.
É isso o que o governo não é capaz de compreender e interpretar em suas mensagens e ações, insistindo em um discurso delinquencial para se referir a feitos que, apesar de alguns terem um componente desta natureza, são fundamentalmente uma crítica pacífica e legítima ao sistema, que perdeu legitimidade por muitos fatores.
Entre as conclusões preliminares do que está acontecendo – muitas sequelas se manifestarão com efeito retardado – fica a sensação de que no centro dos feitos está o rechaço cidadão a essa espécie de rendição incondicional a que o sistema submete os cidadãos, especialmente em matéria econômica. Explodiu um caldeirão de mal-estar social acumulado de maneira massiva, espontânea e, muitas vezes, violenta, que não se nutre do tema tarifário do metrô, mas sim de um sistema de imposições e injustiças que se tornaram insuportáveis para a maioria.
@Ejercito_Chile/Reprodução
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À acumulação das altas tarifárias na eletricidade, energia em geral e transportes, se agregaram as falhas nos sistemas e infraestruturas concessionadas. A isso, se devem agregar a crise nos sistemas de previdência social, fundamentalmente as aposentadorias, a perda de horizontes de bem-estar dos trabalhadores à medida que se aproxima sua idade de aposentadoria, as deficiências na saúde e, inclusive, o afastamento do direito de propriedade, todos os quais golpeiam de maneira crua e simultânea os setores médios e baixos da escala social nacional.
O significado de fundo está em muitos atos que convergem a uma fogueira, e, no momento de explodir, os feitos se traduzem em uma palavra: “SAIA”. Essa palavra já tinha, quando começou a ser escrita, um metassignificado referido à classe política, aos infratores de terno e gravata e à iniquidade que todo o sistema projeta, incluídas a impunidade política e a corrupção.
O discurso governamental só se sustenta por um tempo razoável, mas requer evidentes ações corretivas, tendentes a prever coisas como a que começou na semana passada. Isso não se fez nos últimos 14 anos de governo da dupla Bachelet/Piñera. Com o agravante de que Sebastián Piñera recorreu – discurso e ações – a toda a simbologia autoritária, colocando os militares na rua e justificando a repressão com a delinquência. Em 48 horas, sua imperícia política fez escalar um conflito que poderia ser controlado, deteriorar a imagem do Chile, lambuzar de lodo toda sua estratégia internacional, e nos tornar capa internacional da ingovernabilidade.
Mas o ocorrido é uma derrota não só do governo, mas também de toda a elite política, incluída a oposição. Porque, tal como já se disse até cansar, o ocorrido é, em essência, um estouro de mal-estar social acumulado, que não se soluciona com força pura, nem com militares na rua, nem toque de recolher e, menos, com a exposição das Forças Armadas à tensão de ultimar seus concidadãos.
Frente à onda social que pressiona, o governo deve avançar em retificações notórias em matéria econômica e de igualdade social, e dar sinais claros disso, para poder separar o mal-estar real da população de sua exposição ou inclusão involuntária a feitos de violência que, efetivamente, são delitivos.