Este ano marca o 75º aniversário da fundação da República Popular da China (RPC). Excelente oportunidade para reafirmar slogans como “Unidade e luta é a única forma para que o povo chinês crie uma grande causa histórica” (Zhao Leji, presidente- APN) e relembrar aquela frase de Napoleão: “A China é um gigante adormecido. Deixe-a dormir, porque quando acordar vai abalar o mundo.” 200 anos depois, a realidade prova que o conquistador tinha razão.
CONTEXTO
A ordem geopolítica mundial está em crise desde o início do século XXI. Depois que o multilateralismo parecia uma alternativa à hegemonia norte-americana, o que vemos é a consolidação de uma disputa bipolar pela hegemonia mundial entre a China e os Estados Unidos.
Nesta lógica, os EUA apressaram a criação do TPP (Parceria Transpacífica) e do TTIP (Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento), conseguindo ter influência na zona euro-asiática e, ao mesmo tempo, erodindo a influência China-Rússia. Os avanços do Ocidente com a OTAN em direção ao leste europeu vão nessa mesma direção.
Em resposta, a China lança a RCEP (Parceria Regional Econômica Abrangente), considerada o maior acordo de comércio livre do mundo. Depois, após um acordo com a Rússia, lançou o Projeto “Iniciativa do Cinturão e Rota”, cujo âmbito é global.
ASSEMBLEIA POPULAR NACIONAL (APN)
Em 6 de março de 2024, a APN, o mais alto órgão legislativo da República Popular da China (RPC), concordou que o PIB/2024 cresceria 5%. Numa situação em que o crescimento global está se desacelerando (crescimento de 2,4% segundo o Banco Mundial), agravado por políticas monetárias e financeiras restritivas, o objetivo chinês parece ambicioso. No entanto, os seus 40 anos de crescimento médio de 9% e os 5,2% registrados em 2023 indicam que a meta chinesa se qualifica como realista e desprovida de otimismo.
Apesar disso, para os Think Tanks ocidentais ainda é “uma meta ambiciosa” e, sem o dizer, esperariam um fiasco (https://www.swissinfo.ch/spa/). Isto poderia ser contraditório com o que o Ocidente esperava da expansão da classe média e, em geral, do maior poder de compra da população chinesa. Esperavam, na lógica do consumismo nas sociedades capitalistas, a “gentrificação” de um importante segmento da sociedade chinesa convertida numa grande máquina consumista. Mas não foi assim pela simples razão de que o consumismo não faz parte da idiossincrasia chinesa.
O que foi dito não liberta a RPC dos desafios que terá de enfrentar no futuro, não só para atingir a meta de 5%, mas para manter a sua estratégia de compartilhar a hegemonia mundial. Vejamos alguns desses desafios:
- Embora o consumismo não seja uma “virtude” chinesa, comprimi-lo em demasia pode convertê-lo num risco para atingir a meta de 5%. A ninguém convém ter produção – interna ou importada – em estoque. E, por outro lado, não será suficiente contar com a força inercial da dinâmica exportadora. Embora a procura interna dependa de políticas internas, as exportações dependem da capacidade de compra do Ocidente, que, com situações de crise recorrentes (econômicas e de dívida), estão sendo gravemente afetadas.
- A política de exportação baseada no IED (Investimento Estrangeiro Direto) gerou desigualdades e bolsas significativas de pobreza que merecem atenção urgente. Esse é o resultado, entre outros, de ter escolhido “qualquer cor de gato” se estiver de acordo com “caçar o rato” (Deng Xiaoping). Agora a tarefa é procurar a “sociedade da prosperidade” (Xi Jinping) que permita ter a “casa em ordem” e, ao mesmo tempo, manter o seu impacto no plano internacional.
- O período de mão-de-obra barata que apoiou o modelo chinês podia estar terminando. Se o interesse de Xi Jinping é avançar para a “sociedade da prosperidade” com indicadores semelhantes aos dos países mais avançados do Ocidente, terá de elevar o nível de consumo interno. Para isso, será imperativo abordar o paralelismo dos três sistemas que operam na China: a) a China do terceiro mundo, composta por regiões atrasadas; b) a China socialista, basicamente gerida pelo Estado e regulando o funcionamento do mercado; e, c) a China exportadora, cujo sucesso permitiu uma rápida industrialização vinculada ao mercado internacional.
- A missão mais desafiadora da China, sem subestimar as anteriores, é a poluição ambiental derivada da industrialização acelerada durante mais de três décadas, período em que se tornou um dos maiores emissores de CO2. Não é apenas uma contribuição desastrosa para o aquecimento global, mas também uma ameaça à saúde da população chinesa.
- Papel das empresas estatais. Dificilmente se pode afirmar que estão livres de corrupção e má gestão, mas as empresas estatais permitem ao Estado chinês lidar com um mercado que pretende dominar. Até a data, estas empresas detêm mais de um terço da produção nacional e são beneficiárias de volumes consideráveis de crédito bancário. O que for decidido sobre eles terá grande repercussão na economia nacional.
- A “armadilha do rendimento médio” é um problema que a China deve resolver hoje. O BM descreve esta situação como aquela em que “os países que conseguiram atingir rendimentos per capita semelhantes aos do segmento inferior dos países desenvolvidos permanecem estagnados”. No caso da China, os 12.500 dólares alcançados até 2023 a colocam na situação descrita e, se as condições se mantiverem, poderá permanecer nessa situação (se não atingir o nível de rendimento per capita do segmento superior dos países ocidentais desenvolvidos).
Os desafios mencionados não são todos, mas revelam que há problemas que a China terá de enfrentar. Como? Entre outros, com os acordos da recente APN:
- Priorizar o investimento em defesa e segurança. Para tal, a dotação orçamentária disponível em 2023 será aumentada em 7,2%. Com isso, haverá uma despesa anual de 231 bilhões de dólares, próximo do nível de gastos dos EUA em defesa. Embora estas despesas tenham um efeito multiplicador limitado, a medida apoia objetivos geopolíticos de interesse crucial para a China.
- Por outro lado, foi descartada qualquer medida de “resgate financeiro” solicitada pelos bancos privados no mais puro estilo ocidental. Os bancos privados terão de assumir os desafios que lhes correspondem neste período sem ajuda do Estado.
- As taxas alfandegárias serão reduzidas em alguns produtos tecnológicos e foram anunciadas novas vias para o comércio exterior. Procura-se favorecer a agricultura e a indústria transformadora com a importação de equipamentos e máquinas de última geração. Estes ajustamentos incluem isenções tarifárias para produtos médicos essenciais.
- Se procurará reduzir as desigualdades entre as suas quatro macrorregiões, dando prioridade à agricultura e à manufatura que, devido à forma como a economia chinesa foi integrada no mundo, foram adiadas.
- Aumentar o rendimento médio (12.500-15.000 dólares) até se aproximar do rendimento per capita dos países desenvolvidos de nível médio no Ocidente (entre 20.000 e 25.000 dólares).