No dia em que o golpe civil-militar brasileiro completa 51 anos, a multinacional automobilística alemã Daimler S.A., fabricante da Mercedes-Benz, foi questionada nesta quarta-feira (01/04) pela Associação de Acionistas Críticos a respeito de seu envolvimento com a ditadura brasileira (1964-1985). As perguntas direcionadas à empresa repercutem o relatório final da CNV (Comissão Nacional da Verdade), que cita a firma como uma das financiadoras da Oban (Opreação Bandeirante), o órgão que, de 1969 até meados dos anos 1970, era o braço militar da repressão política e, anos mais tarde, daria origem ao DOI-Codi, principal centro de tortura e morte do regime. A empresa nega envolvimento com a ditadura.
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“O Conselho Diretor da Daimler falhou ao não investigar e esclarecer de imediato esses eventos [envolvimento com a ditadura brasileira]. A Daimler deve encarar e reconhecer sua responsabilidade histórica”, dizia a moção movida pelos Acionistas Críticos, grupo sem fins lucrativos que possui ações em mais de 25 das maiores empresas da Alemanha.
A Mercedes-Benz é citada em duas passagens no volume II do relatório final da CNV, documento entregue à presidente Dilma Rousseff no mês de dezembro:
Outro caso de graves violações de direitos humanos aconteceu com Lúcio Bellentani, na Volkswagen de São Bernardo do Campo, em 1972.53 Segundo seu depoimento, ele “estava trabalhando e chegaram dois indivíduos com metralhadora, encostaram nas minhas costas, já me algemaram. Na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco”. Foram presos no mesmo episódio mais de 20 metalúrgicos, a maioria da Volkswagen e o restante da Mercedes, da Perkins e da Metal Leve. (p. 70)
Ao lado dos banqueiros, diversas multinacionais financiaram a formação da Oban, como os grupos Ultra, Ford, General Motors, Camargo Corrêa, Objetivo e Folha. Também colaboraram multinacionais como a Nestlé, General Eletric, Mercedes Benz, Siemens e Light. (p. 320)
Reprodução/AcionistasCríticos
Evento aconteceu na capital da Alemanha, Berlim, embora sede da empresa seja em Stuttgart
Antes da reunião desta quarta, a empresa já havia respondido textualmente aos questionamentos, negando envolvimento com a ditadura e afirmando não ter sido comunicada das acusações pela CNV brasileira.
Estamos acompanhando o trabalho da comissão e começamos nossa própria investigação há algum tempo. Nossos pesquisadores ainda não revelaram quaisquer indicações de apoio da empresa ao regime militar brasileiro. Não encontramos evidências para as acusações de que a Mercedes-Benz teria financiado a Oban. Também não encontramos tais evidências no relatório da CNV. Respeitar e proteger os direitos humanos são de princípios de muita importância para a Daimler. Certamente estamos dispostos a dar apoio às autoridades brasileiras para o esclarecimento dos fatos.
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Na reunião anual de hoje, em Berlim, com a presença de mais de 3 mil acionistas da empresa, a Daimler reiterou verbalmente sua posição, o que não foi suficiente para os Acionistas Críticos.
“Como a maior parte dos documentos e arquivos no Brasil não existe mais, a Daimler deveria primeiro contatar, conversar e escutar as testemunhas e vítimas, para primeiramente recuperar a memória”, sugeriu Christan Russau, membro da diretoria dos Acionistas Críticos. “Em um segundo passo, a Daimler deverá assumir responsabilidade frente às vitimas, os parentes deles e à sociedade brasileira”, completa.
Russau relatou também que o CEO da Daimler, Dieter Zetsche, afirmou que a Daimler chegou a procurar ex-funcionários alemães da época para perguntar sobre se havia notícias da colaboração da filial brasileira com o regime militar — todos disseram que não sabiam de nada.
Pressionado novamente, Zetsche afirmou que está nos planos da Daimler colher depoimentos de ex-funcionários brasileiros. O executivo, entretanto, não especificou quem seria responsável pelo trabalho de investigação e resgate da memória. Os Acionistas Críticos sugeriram que a empresa indicasse para o trabalho Valter Sanches, brasileiro, sindicalista e membro do Conselho de Administração da Daimler. Ainda não houve resposta da diretoria.
Reprodução/ AcionistasCríticos
Diretor executivo da Daimler, Dieter Zetsche, falou hoje na reunião anual da companhia em Berlim
Papel de outras empresas alemãs na ditadura
Uma das principais concorrentes da Daimler no mercado automobilístico é a Volkswagen, que também já foi questionada pelos Acionistas Críticos durante reunião de prestação de contas da companhia em Hannover, em maio de 2014.
Na ocasião, a Volkswagen respondeu que esclareceria sua relação com a ditadura brasileira caso a Comissão Nacional da Verdade revelasse provas de que houve violação dos direitos humanos por parte da empresa no período em que os militares comandavam o Brasil.
No último mês, a Volkswagen fez parte de uma audiência pública para esclarecer a colaboração do empresariado paulista na repressão aos trabalhadores durante o período militar. A sessão no auditório da Assembleia Legislativa de São Paulo teve a presença de ex-funcionários da montadora que relataram experiências de repressão dentro da fábrica.
“A Volkswagen veio com estrutura fantástica à sessão. Mas acho que eles saíram muito mal na foto. Não responderam às perguntas, tinham uma tremenda de uma blindagem. O depoimento em si foi muito fraco e vazio, querendo proteger acima de tudo a imagem da empresa”, relatou a Opera Mundi Adriano Diogo, deputado estadual e presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. “Lá, os alemães estão abrindo tudo e analisando todos os arquivos com vínculos ao nazismo. Aqui, a Volkswagen diz que é tudo mentira”, completou Diogo.
Além da Daimler e da Volkswagen, outra empresa alemã questionada pelos acionistas foi a multinacional Siemens. “O Conselho de Supervisão da Siemens se negou a investigar e esclarecer estes incidentes, nem mesmo tendo em vista o contexto do aniversário de 50 anos do golpe militar no Brasil. A Siemens deve encarar sua responsabilidade histórica e admitir os atos que cometeu”, assinala o documento entregue pela associação e lido diante dos demais acionistas e diretores da multinacional na reunião anual da firma, em 27 de janeiro de 2015.
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Durante Passeata dos Cem Mil organizada contra a ditadura, em junho de 1968, manifestantes tombam Kombi no centro do Rio