A Rússia reorienta a sua política externa para os países do chamado Sul Global e o grupo Brics, que em 2023 ganhou seis novos membros. A expectativa é que em 2024 os países não alinhados ao Ocidente sejam uma plataforma para Moscou alavancar a estratégia de promover a multipolaridade e transformação da ordem política mundial como forma de conter seu isolamento na arena internacional.
O Brasil de Fato traz um balanço sobre os principais movimentos da política externa russa em 2023, indicando o que podemos esperar de novo na política internacional em 2024.
O presidente russo, Vladimir Putin, assinou no último 25 de dezembro uma lei que permite ao governo reduzir taxas dos direitos aduaneiros de exportação para países que Moscou considera “amigáveis”. A medida é simbólica no sentido de apontar que a Rússia priorizará em 2024 relações com países não alinhados com as sanções do Ocidente contra Moscou, com destaque para o grupo Brics, a União Euroasiática e o Sul global de uma maneira geral.
A estratégia de promover a multipolaridade para combater a hegemonia dos EUA no mundo foi a tônica da política externa russa para romper o seu isolamento do Ocidente durante 2023: “O mundo está mudando rapidamente diante de nossos olhos”. Foi assim que a representante oficial do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, abriu a entrevista exclusiva que concedeu ao Brasil de Fato, em agosto deste ano, dando o tom da visão da diplomacia russa.
“Está se acelerando a irreversível formação de uma ordem internacional policêntrica mais justa. A ordem mundial unipolar, baseada na criação de privilégios para um círculo restrito de países, impondo a todos os outros as suas próprias regras e padrões de comportamento egoístas sob o disfarce de normas universais, está ficando no passado. Isso definitivamente representa uma tendência positiva, na qual o papel do Brics realmente só aumenta”, disse a porta-voz na ocasião.
Ou como afirmou o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, em turnê pela América Latina, em abril: “A multipolaridade é o imperativo destes tempos, é um processo histórico objetivo. Não pode ser interrompido. Embora o Ocidente coletivo, reunido sob o ‘guarda-chuva’ do assim chamado excepcionalismo americano, esteja tentando fazê-lo”.
Esse direcionamento ganhou um novo impulso já no primeiro dia de 2024, com a entrada oficial de novos membros no Brics: Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã. A Argentina também se juntou ao bloco, mas o novo governo Milei indica que recusará a adesão.
A expansão do bloco dos países emergentes é tida por Moscou como uma vitória diplomática, pois, na prática, amplia e formaliza uma aliança de países que antagonizam a política do Ocidente em relação a Moscou no contexto da guerra da Ucrânia. Como afirma o professor de Relações Internacionais da Faculdade de São Petersburgo, Victor Jeifets, a Rússia durante muitos anos “foi tida como uma força política na América Latina, e não só entre os governos de esquerda, como uma alternativa ao Ocidente e, acima de tudo, os EUA”.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Jeifets aponta que o início da guerra da Ucrânia em fevereiro de 2022 abalou essa proximidade, na medida em que muitos países do Sul global hesitaram sobre como reagir à invasão russa. No entanto, o antagonismo em relação aos EUA continuou exercendo um papel importante.
“As possibilidades para a Rússia estão ligadas ao fato de que em geral, para muitos países da América Latina, a imagem do Ocidente e dos EUA permanece bastante negativa. Então o que o Sul Global observa nas ações do Norte Global é uma demonstração do que o Sul global condena. Por exemplo, o conflito no Oriente Médio mostrou a diferença de abordagens entre o Sul global e o Norte global”, argumenta.
Flickr/Putin Brics
Com grupo Brics expandido, Rússia aposta no reforço de um bloco não alinhado com o Ocidente
Crise no Oriente Médio agrava diferenças geopolíticas
O agravamento do conflito no Oriente Médio também exerceu um importante papel neste processo. A escalada da guerra de Israel contra Gaza não só deixou o conflito ucraniano em segundo plano, diluindo a ajuda militar norte-americana e, sobretudo, a atenção da mídia internacional, mas também explicitou posicionamentos antagônicos entre o Norte e o Sul Global no que diz respeito à Palestina e Israel.
Neste contexto, o fim do ano também ficou marcado por uma demonstração simbólica do fortalecimento da parceria junto ao Sul Global. Em uma breve turnê por países do mundo árabe, Vladimir Putin teve uma suntuosa recepção nos Emirados Árabes e na Arábia Saudita, dois tradicionais parceiros dos EUA, no início de dezembro. A rara viagem internacional do presidente russo foi um indicativo do alinhamento de Moscou com os países árabes no apoio à Palestina. A expectativa é que, em 2024, estes movimentos geopolíticos ganhem cada vez mais força na contenção dos interesses hegemônicos dos EUA.
Ao Brasil de Fato, o chefe do Centro de Análise e Previsão Política da Bielorrússia, Pavel Usov, observa que nos últimos tempos há uma série de manifestações favoráveis à Rússia nos países da África e do Oriente Médio, além da América Latina, e os países do Brics. De acordo com ele, são países que veem a Rússia com um “ator-chave contra o Ocidente e os EUA”.
“[Esses países] veem na Rússia uma espécie de apoio para uma retórica anti-Ocidente, uma política anti-Ocidente daqui pra frente. E aqui surge também a China. Na questão da guerra [no Oriente Médio] a China e a Rússia adotam a mesma postura. Hoje nós podemos falar em um novo eixo geopolítico: Pequim-Moscou-Teerã. É um novo triângulo geopolítico que vai determinar processos globais no futuro próximo. Por isso essa atual tríade será um desafio-chave para os países do Ocidente”, analisa.
O cientista político também vincula a escalada da tensão no Oriente Médio com uma percepção dos países árabes sobre o enfraquecimento dos EUA. De acordo com Usov, a intervenção de larga escala do Hamas em Israel “foi em algum grau o resultado de um entendimento no mundo árabe da fraqueza dos EUA, da incapacidade de reagir a ameaças”. O analista identifica uma crise na política externa norte-americana, que hoje hesita na continuidade da ajuda financeira à Ucrânia.
“O fato de que o Ocidente permitiu a guerra da Ucrânia também é um atestado de sua fraqueza, pois a princípio ela foi possível porque a Rússia estava certa de que o Ocidente não reagiria – e o ataque do Hamas também foi o resultado da certeza dos países árabes, sobretudo o Irã, de que o Ocidente não será capaz de reagir. Quanto mais a guerra no Oriente Médio se prolongar, maior a probabilidade de que o conflito na Ucrânia seja congelado, e isso quer dizer que a Rússia deve vencer”, completa o cientista político.